Por Barbara Spaggiari
Camilo Pessanha nasceu em Coimbra, a 7 de setembro de 1867, filho ilegítimo de Francisco António de Almeida Pessanha, então estudante de Direito, e de Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira, natural da Beira Alta. O pai, também filho natural, perfilhado aos vinte e cinco anos de idade, residia na Rua da Trindade; a mãe, que provinha de uma família pobre e plebeia, vivia sozinha retirada no Casal do Leão, no Bairro de Santana. Durante mais de trinta anos, transcorridos até à sua morte, Maria do Espírito Santo serviu solicitamente o futuro magistrado como doméstica e governanta, cuidando da casa e dos filhos, em precárias condições económicas. Em boa verdade, Francisco António e Maria do Espírito Santo nunca se uniriam por vínculo conjugal, muito embora logo depois de Camilo Pessanha outros filhos viessem à luz, nomeadamente, Francisco (1872), Madalena da Purificação (1875) e Manuel (1878). Uma primeira irmã, Madalena, nascida em 1870, foi colhida na flor da idade, com apenas cinco anos. Uma terceira, Madalena da Paixão, nascida em 1887, seria muito provavelmente meia-irmã de Camilo por parte do pai.
Quando era ainda criança, Camilo sofreu uma paralisia hemifacial, causando-lhe no lado direito um ligeiro estrabismo; por conseguinte, a fim de dissimular a imperfeição, Pessanha mostrava preferivelmente ao fotógrafo o lado oposto do rosto, como podemos avaliar nos escassos retratos que se conservam. Pouco sabemos da formação escolar de Camilo, somente que frequentou o Colégio de Lamego, cidade para onde a mãe se mudara pouco depois que Francisco António fora nomeado juiz nos Açores. Durante as morosas ausências do recém-empossado juiz, era um amigo, o Dr. Cassiano Neves, advogado e padrinho do Manuel, que por sua vez cuidava da família, acompanhando de perto a educação dos mancebos, recebendo para o efeito a pensão enviada por Francisco António. Com dezassete anos de idade, Camilo foi aprovado nos exames finais no Liceu Central de Coimbra, garantindo assim o acesso à Universidade. No mesmo ano de 1884, antes de ingressar na Faculdade de Direito, foi enfim perfilhado, através de uma legitimação tardia por certo vinculada ao seu estatuto de estudante universitário. Ao ano de 1885 remonta a composição de Lúbrica, que foi provavelmente o seu primeiro poema. Ao longo de sete anos, Camilo Pessanha cursou Direito — sem brilho — na Universidade de Coimbra, tendo sido até reprovado no quarto ano. Alcançou a formatura somente em junho de 1891. Entrementes, ao longo da vida estudantil, marcada pelos primeiros escritos e por namoros não correspondidos, Pessanha teve a oportunidade de participar em tertúlias que animavam o meio cultural coimbrão, com o intento de recriar, na austera sede universitária, uma atmosfera bohémienne análoga ao paradigma parisiense.
Foi neste lapso de tempo que encetou convivência com vários letrados que ulteriormente inaugurariam um novo caminho na poesia portuguesa, desde Eugénio de Castro, corifeu do Nefelibatismo, a António Nobre, seu condiscípulo nas aulas de Direito. Pelo seu caráter esquivo, e rebelde a qualquer método que lhe fosse imposto por uma corrente literária, não participou nos círculos onde habitualmente se reuniam os simpatizantes das duas revistas rivais, Bohemia Nova e Os Insubmissos. Em 1888, começou a publicar versos e algumas prosas na Gazeta de Coimbra, depois em outros jornais ou periódicos, tal como A Crítica, de Coimbra, ou O Intermezzo, do Porto. A partir de 1889 colaborou, com crónicas e poemas, no jornal O Novo Tempo de Mangualde, dirigido por Alberto Osório de Castro, também seu companheiro universitário. Nesses anos, aprofundavam-se paulatinamente os vínculos de amizade com o próprio Alberto Osório de Castro, que era não só íntimo amigo e confidente, mas também irmão de Ana de Castro Osório, figura feminina que, além da mãe, viria a ter um papel primacial na existência do poeta.
Era na casa do pai de ambos, o juiz João Baptista de Castro, onde Pessanha costumava passar parte das férias, primeiramente em Mangualde, depois em Setúbal, para onde o juiz tinha sido transferido. Conforme as palavras de Alberto Osório de Castro, o jovem Camilo já então se assemelhava a um «esqueleto ambulante, só com os nervos a viver». Ao período estudantil remonta, com efeito, a primeira «grave doença nervosa», de que nos dá testemunho o amigo de sempre. O receio da loucura foi, aliás, uma das obsessões constantes de Camilo, como ele próprio confessou em várias cartas, pelo facto de serem quer a avó materna, quer o irmão Manuel, ambos afligidos de insanidade severa. Do mesmo ramo materno tinha herdado também a epilepsia, como ele próprio revelou numa missiva, acrescentando que a mãe já se tinha «debatido longos períodos no cárcere tenebroso da loucura». No ambiente coimbrão Pessanha começou também a enveredar pelo vício do absinto, na esteira da moda decadente, com efeitos que haviam de ultrapassar largamente o mero aspeto estético-literário. Desde então, na vida de Camilo, a instabilidade psíquica ia de mão dada com a fragilidade física. Terminada a aventura universitária em 1891, Pessanha iniciou — sem vislumbre de entusiasmo — a carreira jurídica. Foi subdelegado do Procurador de Mirandela, em 1892.
No ano seguinte, transferiu-se para Óbidos a fim de exercer advocacia. Teve assim a oportunidade de reencontrar Alberto Osório de Castro, que aí tinha o cargo de juiz municipal; poucos meses depois retomou a convivência habitual com o amigo e com a sua família, que naquele dado momento se encontrava em Setúbal. Este ano de 1893 assinala uma viragem na história pessoal de Camilo Pessanha. Data de 9 de outubro a carta que enviou a Ana de Castro Osório, então com vinte anos de idade, escusando‑se‑lhe por ter declarado com palavras «tão inoportunas e desastradas», o seu «velho desígnio» de tê-la por sua «companheira». Essa declaração amorosa, bem como a eventual vida em comum, não logrou assentimento, visto que Ana já tinha sido prometida ao poeta Paulino de Oliveira, com quem casou, de facto, em 1898. Com terno pudor e recíproca franqueza, os dois jovens encerraram o seu segredo em três cartas, que vieram a lume apenas no ano 2000, exumadas do espólio da viúva de João de Castro Osório. Apaixonado e desiludido, Pessanha respeitou o desejo expresso por Ana, que permanecesse amigo como o era de sua irmã. Assumiu, então, sob o sigilo do silêncio, um pacto de amizade fraterna que o uniria para sempre a D. Ana de Castro Osório, futura editora dos seus poemas. Essa amizade, nutrida, como era, pela mútua estima e pela profunda afeição, destinava-se a resistir durante toda a vida. Alguns meses antes de escrever a carta supracitada, Pessanha tinha concorrido a um lugar de professor de Liceu em Macau, onde veio a ser nomeado, em dezembro desse mesmo ano de 1893, para a disciplina de Filosofia. A recusa da proposta de casamento não foi, portanto, o motivo da sua partida para o Oriente, já de antemão planificada. Na primavera de 1894, Pessanha chegou a Macau, onde passaria, salvo raras intermitências, o resto da sua vida. Na longínqua colónia, exerceu várias atividades como professor, funcionário, advogado e, finalmente, juiz. Apesar disso, nunca conseguiu adaptar-se ao ambiente de Macau, que numa carta ao pai definiu como uma «montureira».
A partir de 1895, instalou-se na casa da Boa-Vista, onde atendia às suas necessidades uma concubina chinesa, de beleza ímpar, que teria adquirido de um corretor chinês. Desta relação, no ano seguinte, veio ao mundo João Manuel, único filho reconhecido de Camilo Pessanha. Durante estes vinte e seis anos de exílio voluntário, Pessanha voltou à metrópole apenas quatro vezes, para usufruir de períodos de licença, ou então, por causa de doenças. A sua saúde, desde sempre débil, ia declinando progressivamente no clima inclemente da colónia. No primeiro retorno, compreendido entre agosto de 1896 e o começo de 1897, vinha prostrado por uma «astenia geral». Depois de ter recuperado as forças em Lamego, junto aos familiares, passou o resto da licença em Lisboa, com amigos e intelectuais que se reuniam frequentemente nas mesas do restaurante Londres, ou no Café Royal, ou mesmo no Martinho, onde a sua companhia «era extraordinariamente disputada» (António Dias Miguel). O segundo regresso a Portugal, por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, permitiu-lhe demorar-se sete meses, do outono de 1899 à primavera de 1900. Foi a última ocasião que teve de ver a mãe, que viria a falecer pouco tempo depois da sua partida para o Oriente, em dezembro do mesmo ano. A terceira estadia durou mais de três anos, de setembro de 1905 a janeiro de 1909. Pessanha veio mais uma vez para Portugal por causa de uma doença («anemia», segundo declarou a Junta Médica), necessitando um longo tratamento. Ao mês de março de 1908 remonta a declaração de loucura do irmão Manuel Luís, prontamente internado, provocando uma profunda e durável aflição no Poeta. Só já nos últimos tempos, pouco antes da partida, Pessanha pôde retomar o hábito dos encontros em cafés lisboetas, mormente, com Carlos Amaro.
A sua lenda de poeta havia já começado a tomar forma. Por ocasião da derradeira vinda a Portugal, entre os últimos meses de 1915 e inícios de 1916, reatou-se o convívio entre Camilo Pessanha e Ana de Castro Osório, que se encontrava viúva desde 1914. Vinte e três anos tinham passado entre a declaração amorosa e este reencontro. Entretanto, Ana viera a ser escritora de literatura infantil e responsável da casa editora por si fundada; a essas atividades culturais, juntava-se um empenhamento dinâmico em prol das mulheres portuguesas. É durante esta última permanência em Portugal que Pessanha «jantava e seroava» na casa de Ana de Castro Osório «invariavelmente duas vezes por semana», segundo testemunha o filho maior, João de Castro Osório. Apenas já no término de 1915, a pedido de D. Ana, Pessanha começou a recitar ou ditar os seus poemas a fim de os dar à estampa na edição da Clepsidra. Nessa fase elaborou também o «plano» do volume a publicar. Um grupo de dezasseis poemas, núcleo da futura Clepsidra, foi publicado em outubro de 1916 na revista Centauro, dirigida por Luís de Montalvor, ao qual Ana de Castro Osório transmitiu amavelmente os manuscritos em sua posse. Graças à essa publicação no orgão do primeiro Modernismo, Pessanha obteve o reconhecimento oficial da influência que exercia sobre os poetas daquela geração, a começar por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Em março de 1916, solicitou ao Ministério da Marinha e do Ultramar a interrupção da licença.
Chegou a Macau no mês de maio; em 6 de junho, foi recebido na Loja Maçónica de Macau (Grande Oriente Lusitano Unido), no grau 15.° de Cavaleiro do Oriente ou da Espada e, logo depois, em 22 de julho, no grau 18.° de Cavaleiro Rosa-Cruz. Três anos depois, atingiria o 30.° grau do «Rito Escocês Antigo e Aceito». Na colónia, retomou a vida e os vícios de sempre, inclusive a sua notória dependência do ópio. Após o passamento da primeira concubina chinesa, envolveu-se numa relação com a filha dela, Águia de Prata, que viria a ser a principal beneficiária do seu testamento, em prejuízo do filho João Manuel Pessanha, pelo qual o Poeta nunca nutrira particular afeição (consta, que lhe chamava «malau»). Entre os poucos que tiveram a oportunidade de visitá-lo, na sua casa da Rua da Praia Grande, vários testemunham as condições deploráveis em que viveu os últimos anos, prostrado na cama, com o ópio a fumegar na cabeceira, sob o olhar negligente de Águia de Prata, entretanto ligada a outro amante. Um dos últimos desgostos da sua vida foi o malogrado destino da coleção de arte chinesa, por ele amorosamente recolhida ao longo dos anos.
A primeira doação de cem peças ao Estado português, em 1915, fora recebida com total indiferença pelo diretor do Museu de Arte Nacional, e, dez anos depois, ainda não tinha lugar «por falta de vitrines». Só em 1926 foi em boa hora entregue ao Museu Machado de Castro de Coimbra. Camilo Pessanha faleceu no primeiro dia de março de 1926, com apenas 59 anos de idade, consumido pela tuberculose pulmonar e pela sua vida desregrada. Sendo ateu e mação, exprimiu a última vontade de ter um funeral civil, de simples aparato, sem música nem coroas. Quis tão-só que o seu caixão fosse transportado num armão militar, coberto pela bandeira portuguesa. A obra de Camilo Pessanha circunscreve-se a um só livro, Clepsidra, publicado ainda em vida do autor, pelos cuidados de Ana de Castro Osório, na Editora Lusitânia de que era proprietária.
Preparado durante a última estadia de Pessanha em Portugal, entre 1915 e 1916, o livro viria a lume no mês de outubro de 1920, tendo a aprovação subsequente do poeta que, em carta de 3 de junho de 1921, escreve à editora: «Não quero deixar de agradecer-lhe, penhoradíssimo, a publicação da esquecida Clepsidra e os cuidados da disposição (que é como eu próprio a faria) e da ortografia». A primeira edição da Clepsidra é um volume deveras simples, de sobriedade quase frugal — não tem introdução, nem tão-pouco comentário ou notas sobre os organizadores. A segunda edição da Clepsidra foi publicada pela Ática, em 1945, quase vinte anos depois da morte do poeta. O responsável pela edição, João de Castro Osório, filho de Ana de Castro Osório, é aquele jovem entusiasta que, com apenas dezassete anos de idade, tivera o privilégio de acompanhar, na casa materna, a preparação dos materiais da futura Clepsidra, entre 1915 e 1916. Numa «Nota explicativa», em abertura ao volume, João de Castro Osório expõe, pela primeira vez, as singulares condições que levaram à publicação da Clepsidra de 1920. Esta segunda edição saiu do prelo acrescentada por onze «novos» poemas, recuperados posteriormente pelo próprio João de Castro Osório, que dedicou o lastro de uma vida à salvação e ao culto da obra de Pessanha. A última edição da Clepsidra saiu à praça do mundo, como sempre, pelos tipos da Ática, em 1969. Compreende, no total, 54 poemas, mais dois fragmentos, ou seja, o corpus que até hoje sabemos fidedignamente constituir as opera omnia poéticas de Camilo Pessanha.
Apesar de aparentes (re)descobertas e de revelações mais ou menos mediatizadas, nenhum novo poema foi integrado naquele acervo que, pela primeira vez, João de Castro Osório fixou em 1969. Os méritos de João de Castro Osório superam, evidentemente, os deméritos que críticos às vezes impiedosos lhe impendem como ónus. É, no entanto, nítida a perda crescente de qualidade do texto de uma edição para a outra. O resultado do moroso e tormentoso empenho de João de Castro Osório foi, de facto, a edição de 1969, imponderada e inexata, pelo facto de os textos terem sido alterados na lição dos versos, corrigidos e integrados na pontuação, e dispostos numa ordem diferente no que diz respeito quer à Clepsidra de 1920, quer à segunda edição de 1945. A produção remanescente de Camilo Pessanha, designadamente, os escritos sobre a civilização e a literatura chinesas, bem como a tradução de oito Elegias chinesas, algumas conferências e o catálogo pormenorizado da coleção oferecida ao Estado português, foram coligidos no livro China, publicado pela Agência Geral das Colónias, em 1944. As outras prosas, que abrangem contos, crónicas, artigos de assunto vário, dispersos em jornais, periódicos ou revistas literárias, ainda não foram convenientemente reunidas em volume, pelo menos de forma sistemática.
O seu valor não é, contudo, totalmente despiciendo para podermos acompanhar a evolução de Pessanha, quer no plano das reflexões estéticas, quer no que diz respeito à contextualização de determinados poemas. Por fim, subsiste a incontornável epistolografia, cujo papel é realmente essencial para a compreensão tanto da personalidade de Camilo Pessanha, como das relações que o ligam à família, aos (poucos) amigos, ao «país perdido» e à colónia do seu exílio voluntário. Nessas cartas, deparamo-nos muitas vezes com passagens que permitem decifrar alguns versos, ou mesmo, iluminar a circunstância autobiográfica da qual um poema emergiu. Uma parte substancial destas cartas foi reunida em volumes, começando pela correspondência com os Osórios, de elementar importância. Outras publicações parciais estão disponíveis, ao passo que continuam a surgir, dos arquivos particulares, documentos longamente esquecidos, ou então, protegidos por escrúpulo de privacidade.
Para um primeiro contacto com Camilo Pessanha, está hoje disponível na rede um site da Biblioteca Nacional de Portugal (http://purl.pt/14369), onde se podem encontrar não apenas informações concernentes à vida e à obra do poeta, organizadas por Daniel Pires, mas também reproduções digitalizadas de manuscritos, quer do próprio autor quer alheios, inclusivamente os autógrafos do Espólio da BN e algumas cartas. Uma secção iconográfica complementa a série de documentos, enquanto o link para o Catálogo da mesma Biblioteca Nacional permite indagar sobre a bibliografia ativa e passiva do poeta. [Acrescente-se agora o volume Camilo Pessanha, Correspondência, dedicatórias e outros textos, org. pref. cronologia e notas de Daniel Pires, Biblioteca Nacional de Portugal, 2012] Além das três edições históricas da Clepsidra (1920, 1945 e 1969), é imprescindível assinalar que, a partir dos anos 80 do século passado, renasceu o interesse da crítica para com o poeta e a sua obra. Essa renovada atenção deu origem a uma série de estudos, ensaios, artigos, ou até números especiais de revistas; mas, na verdade, produziu uma quantidade, algo impressionante, de Clepsidra(s), ou seja, de livros que apresentam os poemas de Camilo Pessanha nas formas mais variadas, e segundo critérios editoriais normalmente arbitrários. O êxito de uma obra nem sempre é suficiente para protegê-la do amadorismo, quando a paixão ou a sensibilidade poética do organizador prevalecem sobre uma idónea atitude científica.
Barbara Spaggiari, in «Nota biobibliográfica», Clepsidra, INCM, 2014