[Texto da autoria de Rui Zink, a propósito da apresentação de Erros Meus. Poesia Incompleta, de Nuno Artur Silva]
“Há um amigo meu que não gosta de poesia.”
(Conto dedicado a Herman, p. 323)
Começo por pedir desculpa ao Nuno Artur Silva por não lhe chamar Nuno Artur Silva.
Este livro de textos curtos, avulsos, poemas em verso, poemas em prosa, contos em verso e em prosa, ensaios em verso e em prosa, tem muito de novo, apesar de percorrer quarenta anos de poesia e outros palavreares. É natural, a maturidade faz-nos desdenhar de muito do que escrevemos em jovens. A ingenuidade, a presunção, a hesitação, o excesso de ambição e também excesso de humildade. Em jovens, falha-nos um pouco a noção. E, com o tempo, com a distância crítica (ou aquilo a que chamamos distância crítica), não muito do que fizemos em jovem nos parece digno de ser reeditado. Por outro lado, em relação às coisas mais recentes, também não é claro que sejam melhores. Temos é menos distância temporal e, por conseguinte, também menos distância crítica. É a vida.
No caso de Nuno Artur, é mesmo a vida. Este livro pode ler-se de quatro maneiras (pelo menos):
- Como um relicário de poemas
- Como um diário
- Como um longo e peripatético ensaio
- Como uma contemplação quase zen da vida acontecendo à nossa frente.
E pode ser lido de muitas maneiras. Eu recomendo que se veja o livro como um jogo de futebol e se vá logo às balizas, ao mapa no princípio e ao mapa no fim. Mapas lúdicos e até enganadores, para melhor desfrutarmos do jardim, mas mapas ainda assim. Depois é fazer como os outros mamíferos marinhos, ir mergulhando e vindo à tona.
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De todas as pessoas que conheço, o Nuno é bem capaz de ser a mais corajosa. Numa hecatombe (não a da esquerda a semana passada, uma mais a sério, tipo sermos invadidos por marcianos, ou um terramoto provocar um tsunami), eu gostaria de ter o Nuno ao meu lado. Duvido que ele entrasse em pânico. Ele não seria o mais engraçado nem o mais intenso nem o melhor a fabricar uma corda a partir de pelos de gato, à McGyver, mas seria talvez o que nos ajudaria a todos a manter a calma, a olhar para o lindo sarilho em que estaríamos metidos com a devida, serena e até humorada distância. Apesar de ter já escrito textos “de rir à gargalhada”, o Nuno Artur sempre foi mais sorriso do que riso. Ele é menino para, num campo de concentração se aproximar de nós e dizer, sorridente: “Então, também estás por cá?” Ou: “Também te apanharam?” Ou: “Também te cravaram para vires para aqui?” Isto tudo terminando por rematar, bonacheirão: “Bom, desta é que estamos feitos.”
E, a cereja no bolo: “O que achas?”
Pois é. Para mal dos nossos pecados, o Nuno termina sempre com um irritantemente sorridente: “O que achas?”.
Isto quando não é assim que começa: “O que achas?”
E, surpreendentemente, espantosamente, espantasticamante, é um genuíno interesse pelo que achamos. Ele interessa-se genuinamente pelo que os leitores acham.
“Estou curioso”, acrescenta, “de saber o que achaste.”
E está mesmo. Está sempre curioso. E a perguntar o que é que achámos, achamos, acharemos. Se para Fernando Pessoa o poeta é um fingidor, para o Nuno Artur o poeta é um achador.
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Depois, há o meta-meta-meta-discurso. Não só o primeiro grau, também o segundo, o terceiro e o quarto degrau. É difícil analisar criticamente um livro cujo autor se nos adianta a analisá-lo criticamente. É que o Nuno Artur é ao mesmo tempo poeta, ensaísta, humorista, escritor e crítico literário dos próprios textos. E baralha estas qualidades de forma peculiar – ainda ele era um jovem aprendiz de escritor e já o fazia. Desde que se conhece, o Nuno Artur escreve poesia humorada, faz humor poeticamente, escreve ensaios zigomáticos.
Por falar nisso, ele gosta tanto da palavra zigomático que tive de ir confirmar ao dicionário:
- “Parte do osso craniano onde a órbita dos nossos olhos encaixa;
- “ciência, técnica ou diversão de voar em aeronaves desprovidas de aparelhos de propulsão, cuja sustentação se faz mediante reação aerodinâmica em superfícies que se conservam fixas durante o voo (planadores, p.ex.); voo a vela.”
Creio que o segundo significado está mais próximo do que interessa ao Nuno. Voar (ou escrever) sem rumo e sem motor de propulsão.
Mas suspeito que ele gosta também da palavra pela sua quase ausência de sentido, ou por muita gente não saber qual o sentido. Gosta do zigomático por ser uma palavra com um sabor cómico, daí até ter feito um livro chamado O Grande Zigomático.
(Muitas leituras da revista Tintin, onde trabalhava o seu amigo para a vida Dinis Machado, dão nisto. Se calhar, o Nuno ainda se lembra do Grande Zirubudon, num número de 1968, e houve quiçá involuntária influência.)
O Nuno Artur dá bom nome à palavra “diletante”. José Gomes Ferreira dizia-se poeta militante, o Nuno é um poeta diletante. Aliás, como poderá confirmar quem ler o livro – pela ordem que lhe apetecer, como ao outro Livro do Desassossego.
É que o Nuno não é bem poeta. É ele próprio, o que é outra coisa. Tradicionalmente, um escritor define-se pela voz, o Nuno Artur Silva define-se pela atitude. Toda a sua estética é uma estética da disponibilidade. Quanto à poesia, para muitos era insuspeita. Imagino os vizinhos dele, de pijama e roupão, estremunhados, falando para a polícia e as televisões: “Ele parecia tão bom rapaz… Era muito bem-educado… Nunca me passou pela cabeça que fosse poeta.”
Erros meus. Diz no subtítulo que é “Poesia Incompleta”. Pudera, até o título está incompleto. É um livro em aberto, como tudo o que o Nuno faz, não um livro em fechado. É um livro que não só assume o erro, também valoriza o erro. Aliás, “errar” tinha no século XVI não só o sentido de fazer uma asneira mas também o de ir à deriva mundo fora, o de ver aonde nos levam as canetas.
(E talvez por isso ler Erros Meus seja hoje mais necessário, e útil – até como autodefesa. Num tempo de portas que se fecham, é bom ler um livro escrito por alguém para quem uma porta é sempre para abrir.)
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Apesar de volumoso, este volume não é nada chato nem pesado, porque tudo o que o Nuno escreve é leve, mesmo quando há nuvens carregadas sobre a sua cabeça.
E se não gostarmos do que o Nuno escreve não tem mal, o livro está sempre a remeter-nos para outros livros e, sobretudo, para as palavras dos outros. Porque, como todos os grandes escritores, o Nuno ante de mais um Leitor. E os seus textos são sempre respostas quer à realidade dos outros, quer à realidade que lhe acontece, quer às palavras dos outros. Podemos ver aqui muitos jogadores a serem convocados, num rodízio das afinidades electivas do Nuno, de gente com quem conviveu pessoalmente ou como leitor. Umas mais óbvias, Diniz Machado, Jorge Luís Borges, Laurie Anderson. Outros nem tanto.
Tem também muitos poemas dedicados a pessoas concretas. Pelo que percebi, o poema é melhor ou pior consoante o Nuno gosta mais ou menos da pessoa a quem o dedica.
Este é bom e, embora dedicado ao Rui Cardoso Martins, creio que evoca também Fernando Assis Pacheco:
Por vezes,
para lá das feiras, das peneiras
das vaidades e vacuidades
dos grémios, dos prémios, dos génios
do trimestre, dos mestres
dos salamaleques literários vários,
dos universitários professores,
dos otários autores…
Por vezes, ah, por vezes
acontece, quando ninguém esperava:
um golo
no último minuto.
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Esta obra incompleta é obviamente – não vamos fugir às evidências – um balanço da vida. E uma pessoa faz um balanço da vida quando se sente a morrer. O Nuno há uns anos esteve quase a morrer. Enfim, todos estamos quase a morrer desde que nascemos, é a nossa condição humana, e o compadre a quem o Nuno pediu emprestada parte de um verso sabia isso (o verso continua com má fortuna, amor ardente, mas o Nuno nunca gostou de dramatismos). Mas há momentos da vida em que, por doenças e desaires, nos calha estarmos “quase a morrer” um bocadinho mais do que de costume.
(Ao dizer isto pensei que pudesse estar a ser intrusivo e a ter falta de pudor, mas o Nuno Artur Silva fez uma conferência stand-up onde ele próprio fala desse assunto, e com pormenores escabrosos, por isso sinto-me à vontade.)
O Nuno recuperou mas a ideia deve ter ficado: “E se eu começasse já a fazer uma recolha das coisas esparsas que fiz, feito poeta diletante, aqui e ali ao longo de – bolas, tanto – mais de quarenta anos?”
Que eventualmente tenha sido o editor a surgir com a ideia tem pouca relevância para mim. Até porque aí usarei, contra o Nuno e o seu editor, um palavrão em inglês de que o Nuno muito gosta: serendipity. Em português é menos bonito mas quem já leu o Nuno reconhece a tradução aproximada. Acaso. Acaso feliz, mais exactamente. Coincidência, comunhão, encontro errado que dá certo, harmonia zen, acidente feliz.
Ou serendipidade. Tanta palavra que é sacada do inglês, e logo aquela que nos daria jeito tarda em se tornar popular. Serendipidade. Como dizia mesmo o centenário Luiz Pacheco da palavra “promiscuidade”? “Promiscuidade? Eu gosto.” A versão do Nuno é mais suave mas também certeira: “Serendipidade? Eu gosto.”
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Já agora, só por acaso: em 1989, o Nuno publicou, em co-autoria com o Miguel Viterbo, um livro chamado A Elaboração dos Acasos.
Em 1993 criou, com o António Jorge Gonçalves, As Aventuras de Filipe Seems, um detective que se passeia por uma Lisboa utópica a resolver casos que não lhe apetece resolver e a encontrar amigos e a resolver os casos misteriosos por acaso. Ou, melhor ainda, a não resolver.
Para alguém que fez tanta coisa, desde escrever para o Herman José até escrever para o António Costa, o Nuno parece-se muito com o seu herói de BD: curioso, disponível, atento fingindo-se desatento, flâneur, alguém aberto ao mundo e aos outros. E se um dia fizer uma autobiografia, talvez possa intitulá-la: Um Cosmonauta Diletante ao Sabor do Acaso.
Mas Erros Meus também não está mal.