O dramaturgo Jaime Salazar Sampaio caracteriza-se por diversas expressões muito próprias e por uma também muito própria maneira de criar a sua obra. Desde logo, o caráter divinatório da sua estética, ligada ao Absurdo. Mas não é só o critério estético, aliás essencial, que singulariza o teatro de Jaime Salazar Sampaio. Ele singulariza-se desde logo pela qualidade, mesmo que se queiram reconhecer óbvias preferências ou oscilações. Singulariza-se pela quantidade, cerca de 60 peças — reunidas em cinco volumes de Teatro Completo — e mais alguns ensaios dramáticos escritos, publicados e quase todos representados até hoje. Mas singulariza-se ainda pela coerência estética, com variantes, e pela ideologia, aí com sinais das conjunturas, mas sem qualquer oscilação ao longo de dezenas de anos. E, finalmente, caracteriza-se pela ligação e articulação com uma obra poética, com ficção, com ensaísmo, tradução, com grafismo… e até, no ponto de vista de uma visão social da economia, com estudos de economia agrária e florestal, ou não fosse Jaime Salazar Sampaio engenheiro.
Nascido em 5 de Maio de 1925 e engenheiro silvicultor de formação, com um doutoramento tirado na Sorbonne, em Paris, Jaime Augusto Salazar Sampaio descobriu o teatro quase por acaso, quando Artur Ramos lhe pediu uma peça curta para o espetáculo que estava a preparar para o Teatro Nacional D. Maria II. Recorda em Percursos de um Dramaturgo:
Um dia — mais concretamente, uma manhã — escrevo (a lápis?) umas quantas linhas que pretendiam ser o início de uma peça de teatro: «A cena representa um vasto compartimento, talvez um armazém.» […] A folha de papel onde estas coisas ficaram escritas, guardei-a numa gaveta. De vez em quando abria a gaveta e lia o que lá estava. E, ao longo de muitos meses, foi esse — e apenas esse! — o meu trabalho. Certo dia recebo um telefonema do Artur Ramos a perguntar se eu não teria, por acaso, uma peça em um ato, para incluir num espetáculo que ele andava a organizar: «Teatro de Novos para Novos», destinado a ir à cena no D. Maria II. Descaradamente, disse-lhe que sim. … E uma semana mais tarde, estimulado pelo convite do Artur, a peçazita estava mesmo escrita. Deste episódio, para mim importante, pois foi a minha «rampa de lançamento», tirei um certo número de conclusões. Nomeadamente, as seguintes: Para que a peça pudesse finalmente (e rapidamente) ser escrita, eu tinha precisado, como vimos, de um longo período de «incubação», durante o qual me limitara a «conviver» com o protagonista, deixando-o deslizar, sem palavras, por um vago espaço. Esta tendência, com apenas meia dúzia de exceções, iria repetir-se, ao longo dos anos e das peças, fazendo de mim um dramaturgo «ruminante».
O teatro constitui a grande linha de criação de Jaime Salazar Sampaio. Curiosamente, desde 1945, com a sua primeira peça, Aproximação, até 1961, com O Pescador à Linha, o autor não escreveu teatro, dedicando-se à poesia e à narrativa. Por estes anos traz-nos Em rodagem, Poemas Propostos, Palavras para um Livro de Versos, O Silêncio de um Homem e O Ramal de Sintra. É o próprio autor que nos revela, muitos anos passados sobre essa fase dominantemente poética, não só a génese como a ligação com a dramaturgia subsequente:
Eu costumava escrever umas coisitas curtas, uns talvez-poemas, que não passavam do assim-assim. Por outro lado, no que se refere à facilidade de comunicação com o mundo exterior, estava muito longe de ser um perito… Timidez, pois. Mas em larga escala, ocasionando um sem-número de situações dolorosas, para não dizer — mas afinal digo, porque ainda me lembro! — momentos de pânico, mau génio e angústia.
A partir da década de 1960 a produção teatral de Salazar Sampaio é exemplar na constância. Em 1969 viu encenada a peça Os Visigodos, pelo Teatro Nacional, e em 1970 A Batalha Naval, pela Casa da Comédia. E depois, só com a mudança de regime, em 1974, é que as suas peças regressariam aos palcos.
Constante, a partir dos anos 60, é também a sua atividade de tradutor de teatro, desempenhada por vezes em colaboração com outros tradutores, de que resultaram versões em português de peças de Beckett, Artur Miller, Gorki, Pinter ou Fuggard, entre tantos outros. Em Teatro III, Jaime Salazar Sampaio inclui uma reflexão sobre traduções, sob a designação «Ser dramaturgo, tradutor e traduzido». E esclarece:
Traduzir um texto de teatro não é apenas traduzir as palavras desse texto. Todos sabemos que um texto seja ou não seja de teatro é composto por palavras e silêncios. E esses silêncios também devem, na medida do possível, ser traduzidos.
Como dissemos, a primeira peça de Jaime Salazar Sampaio é Aproximação e foi publicada numa revista episódica dos anos 1940, logo apreendida pela Censura. Chamava-se O Bloco — Teatro, Poesia e Conto, uma iniciativa levada a cabo, como o próprio explica: «sem dinheiro mas com o entusiasmo, o trabalho e o descaramento do Luís Pacheco».
É interessante recordar os companheiros de «trabalho e descaramento de Salazar Sampaio. São eles: Luís Pacheco, José Cardoso Pires, Ferro Rodrigues, Mário Ruivo, Matilde Rosa Araújo e Duarte Silva. Jaime Salazar Sampaio prenuncia uma geração que trouxe para Portugal ou aqui criou a renovação de novas correntes da cena e da dramaturgia, oriundas sobretudo do pós-guerra. Geração que assume algumas experiências surrealistas ou expressionistas e concentra no teatro do absurdo. Temos Jaime Salazar Sampaio como referência do teatro do absurdo português, mas vale a pena alertar para as oscilações de estilo que, ao longo da sua vasta obra, vão aparecer. É preferível dar a palavra ao próprio autor:
Suponho que a Arte não tem por objetivo principal imitar a realidade mas sim acrescentá-la. Neste sentido, um quadro de Picasso é tão real como um rabanete, muito embora situando-se, como é óbvio, num plano diferente. E sem o quadro de Picasso — ou sem o rabanete — a Realidade ficaria mais pequena… Por outro lado, segundo creio, o artista não precisa de prometer solenemente focar a realidade, pois focar a realidade é a única coisa que ele pode fazer. Assim sendo, no plano do espetáculo teatral, que é o que nos ocupa, não vejo muito bem como se possa opor um Teatro dito realista a um outro, dito do absurdo. Com efeito, se olharmos à nossa volta ou espreitarmos para dentro de nós próprios, não seremos levados a admitir que o absurdo é uma fatia — e uma fatia substancial — daquilo a que chamamos, arbitrariamente, a Realidade? É claro que se a distinção entre teatro realista e teatro do absurdo não passar de uma tentativa de rotularem, mais ou menos académica, o mal, não é grande… Mas se quisermos com ela empurrar uma destas alegadas tendências para um gueto — por hipótese, fazer isso ao teatro do absurdo — então é que já não me parece uma atitude — como dizer? — muito realista…
A matriz teatral de Jaime Salazar Sampaio passa por Strindberg, Beckett e muito particularmente por Pessoa e por Pirandello, que surgem entre os autores de eleição do dramaturgo. Pessoa é diretamente citado em O Sobrinho, na peça infantojuvenil Olá Fernando mas sobretudo no belíssimo texto, Fernando (talvez) Pessoa, de 1978. A peça O Meu Irmão Augusto, de 1997, tem em epígrafe um texto de Pirandello.
A coerência ideológica no teatro de Jaime Salazar Sampaio, não se quer referir um alinhamento específico a posições políticas, mas sobretudo uma defesa constante de ideais humanísticos de liberdade e de combate a todas as opressões. O que também não significa uma menor circunstancialidade de época, ou mesmo de conjuntura política, em algumas das peças. Existe uma linha dramatúrgica de maior fôlego de dimensão, por vezes mais ligada ao circunstancialismo político e epocal concreto, com implicações temáticas expressas ou alegóricas, mas diretamente referenciáveis.
Por exemplo, Nos Jardins de Alto Maior, de 62, Salazar Sampaio coloca o problema na sua alegoria de repressão exercida pelos Lavadores em relação a crimes agravados pela circunstância de terem sido cometidos à luz dos projetores e a coberto da escuridão da sala. O Falhanço (1964) é atual na alegoria futebolística: a confusão entre a honra conjugal e a Divisão de Honra por que luta o «modesto clube desportivo». Agora, Olha… e Nesta Hora Grave (de 64, mas refeita em 1974) apertam a malha alegórica. De 74 é também A Inauguração da Estátua, com o seu «orador pomposo». Na mesma linha temos Os Preços (de 76), um espetáculo para 33 personagens. Em 92 Salazar Sampaio adotou também à cena o Portugal dos Pequeninos de Maria Angelina e Raul Brandão, com o título poético — o que não é habitual nesta dramaturgia — de Chegaram as Andorinhas. E Árvores, Verdes Árvores (de 79), é atualíssima na defesa ecológica contra o desordenamento do território.
A conotação política mantém-se, portanto, para lá do imediatismo conjuntural, dentro do plano de transversalidade estilística e da intemporalidade temática. Assim, peças como A Irmandade, de 98, e O Peixinho Grelhado, de 2001, inscrevem-se com facilidade nesta linha, a primeira numa alegoria mais intimista de relações familiares, a segunda num diálogo de vagabundos ou quase, que também questionam uma relação com a autoridade.
O Veredicto, de 2002, atravessa os rótulos e oscila entre o vazio de um absurdo intemporal e o desconhecimento/reconhecimento alternado dos personagens. Já A Esperança, de 2003, concentra a ação na situação de domínio do Sr. Rocha e nas injustiças sociais decorrentes.
Em Algumas Palavras numa Sala de Espera, de 2004, três personagens, Júlia, Pedro e José, de perfil inicialmente realista, afastam-se da lógica pelos caminhos do absurdo, assumem o medo das suas dúvidas existenciais. No entanto, neste conjunto de alegorias da análise dos mecanismos do poder, a mais forte, violenta e iconoclasta será A Ínclita Geração, de 1998, com os sinais da perspetiva do rótulo histórico, por um lado, e do holocausto vazio do «Bunker sinistro» em que a ação decorre, entre violências, prepotências e revoluções.
De referir que o teatro de Jaime Salazar Sampaio assume derivas poéticas que oscilam entre o lirismo e a violência de expressão. Encontramos o «sonho» surreal, por exemplo, na peça Aqui, de Passagem. Já O Professor de Piano acentua o caráter onírico e a oscilação entre sonho e realidade, em falas e ideias que aparecem também em Um Homem Dividido, de 1995. Lição de Amor num Aeroporto, de 2003, está mais para o pesadelo, sendo certo que pesadelo também é sonho.
Este dramaturgo constante e copioso, mestre do diálogo, autor de Magdalena Lê uma Carta, mostra-se coerente na variedade e heterogeneidade da obra e minucioso e escrupuloso na fundamentação estética e teórica da prática teatral. E é o próprio Jaime Salazar Sampaio que nos esclarece:
Sou um dramaturgo de baixa velocidade. A minha escrita é, desde sempre e cada vez mais, laboriosa e plena de hesitações: escrevo, risco, barafusto, emendo. Mas tenho uma carta na manga e alguma sorte: mal a carroça da Imaginação, por qualquer motivo, se recusa a seguir em frente, entram em cena — é esta a regra! — os Meus Companheiros de Escrita. E tudo se passa, não direi no melhor dos mundos, mas sem grandes dramas. A mão que segurava o lápis para escrever a peça desvia-se para uma outra página que ainda esteja em branco — há sempre algumas à minha volta — e faz um «boneco» ou rabisca um pequeno texto. À partida, esses «bonecos» e esses textos que me vão acontecendo, para além de serem coisas pouco valiosas, não evidenciam qualquer grau de parentesco com as peças que eu estava a tentar escrever. Mas, por um processo que eu não conheço, nem preciso de vir a conhecer, ajudam-me — e ajudam muito! — a ultrapassar aquelas situações de crise em que as personagens se recusam a falar comigo, encravando a escrita.
E elucida-nos sobre a própria feitura das peças em si:
Para começar: sei muito pouco sobre o meu teatro. E se esta ignorância é boa ou má para as peças que vou escrevendo, não o sei ao certo. Mas de uma coisa tenho a certeza: para mim, que sou «um dramaturgo não premeditado, saber tão pouco sobre as minhas peças é muito agradável, apimentando-me o prazer da escrita. O pior é que as minhas falhas de conhecimento espalham-se, qual mancha de óleo, por uma área bem mais vasta que a do Teatro. «Sabemos tão pouco sobre todas as coisas», disse, certa vez… não me lembro quem. E eu acrescento: pelo menos para mim, a vida foi uma viagem entre duas ignorâncias, a inicial, plena de esperança e de exaltação, e esta outra, no fim do percurso, um tanto mais amarga, mas, paradoxalmente, bastante mais rica. E mais serena.
Em 1999 Jaime Salazar Sampaio recebeu o Grande Prémio de Teatro da Associação Portuguesa de Escritores pela obra Um Homem Dividido. Em 2005 foi distinguido com a medalha de honra da Sociedade Portuguesa de Autores, instituição com a qual colaborou durante décadas, organizando dezenas de sessões do ciclo «Dramaturgia e Prática Teatral».
Jaime Salazar Sampaio faleceu, em Lisboa, na manhã de 13 de abril de 2010. Tinha 84 anos.
Já fiz as minhas contas: paguei um preço pelo prazer da escrita; estou em paz comigo. E com os meus fantasmas. É possível que eu não seja um «admirável homem de teatro». Mas sem o teatro, teria sido seguramente um outro homem. É possível que as minhas peças morram comigo e algumas delas (algumas ou todas?) já tenham começado a envelhecer. Mas também é possível, muito possível, que pouco me importe com estas e outras possibilidades… O que o teatro me deu, ficou dado: uma Vivência e uma Convivência. Quanto às peças… elas são o rescaldo do fogo dos dias.
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Jaime Salazar Sampaio, de autoria de Duarte Ivo Cruz.