Jaime Batalha Reis nasceu em Lisboa, a 24 de dezembro de 1847, o que provavelmente veio perturbar a ceia familiar de Natal e alterar a rotina dos dois irmãos mais velhos, Adelina e António. Como era boa tradição liberal, e depois republicana, o pai, António Nunes dos Reis, velho amigo de Almeida Garrett, batizara os seus filhos apenas com um nome próprio acrescentando-lhe o apelido materno — Batalha — e o paterno — Reis. Como padrinho teve um irmão da mãe e como madrinha uma Nossa Senhora, a da Conceição.
As primeiras letras aprendeu-as no colégio dum velho liberal, Xavier de Quadros, o Colégio de S.to António. Depois, a necessidade de uma preparação mais cuidada levou o pai a inscrevê-lo no Colégio Alemão, conhecido por Colégio Roeder, apelido do proprietário e diretor, Hermann Roeder. Talvez o pai, por essa altura, já nao habitasse em Lisboa, acolhendo-se às suas propriedades no Turcifal onde possuía uma bela casa e era produtor e exportador de reputado vinho. Entretanto Jaime, acabada a sua preparação no Colégio Alemão — conhecido pela boa qualidade do ensino e onde, além da apredizagem das línguas alemã, inglesa e francesa, da prática da disciplina de Ginástica (uma raridade na época!), aprendera a amar a literatura — foi matricular-se no Instituto Geral de Agricultura de Lisboa. Jaime tirou o curso de agrónomo e engenheiro florestal sem dificuldades, com altas classificações e muito premiado. Em fins de 1866 estava formado e preparava-se para entrar na vida ativa, ou seja, começava à procura de emprego. Talvez cause admiração que um aluno estimado por colegas e professores e com um tão brilhante curso não tivesse conseguido lugar como professor no Instituto onde acabara de se formar. Ele próprio alude a essa deceção numa carta, que escreverá mais tarde, à namorada:
«Tinha acabado o curso com muitos prémios e deixado no Instituto Agrícola uma reputação filha do meu estudo […] e da simpatia d’alguns lentes, uma reputação que valia bem mais do que eu. Tinha todas as probabilidades de ficar, e apesar disso nada desde então até hoje.»
Talvez tenha havido uma razão para não ter sido convidado. O seu último trabalho, a dissertação com que se terminava o curso, fizera-o Jaime sobre as novas teorias de Darwin, ao arrepio das teses, ao tempo, expendidas oficialmente. Jaime Batalha Reis sempre ficou convencido de que essa e outras «irreverências» da juventude lhe fecharam, durante alguns anos, muitas portas. Entretanto, prestes a acabar o curso, conhecera Eça de Queiroz na redação da Gazeta de Portugal, onde vira, certa noite, conta ele na «lntrodução» que escreve para Prosas Bárbaras:
«[…] uma figura muito magra, muito esguia, muito encurvada, de pescoço muito alto, cabeça pequena e aguda que se me mostrava inteiramente desenhada a preto intenso e amarelo desmaiado. Cobria-o uma sobrecasaca preta abotoada até à barba, uma gravata alta e preta, umas calças pretas. Tinha as faces lívidas e magríssimas, o cabelo corredio muito preto, do qual se destacava uma madeixa triangular, ondulante, na testa pálida que parecia estreita, sobre os olhos cobertos por lunetas fumadas, de aros muito grossos e muito negros. Um bigode farto, e também muito preto […] Era o Eça de Queiroz.»
Saíram juntos da redação do jornal e ficaram amigos para sempre. Foi então que Jaime se juntou a Eça e à sua rodada de colegas, mergulhando na boémia da capital. Morava então em pleno Bairro Alto, na esquina da Travessa do Guarda-Mor, num 1.º andar que se transformou rapidamente numa tertúlia literária a que mais tarde seria dado o nome de «Cenáculo». Por esse tempo, o recém-formado agrónomo continuava desesperadamente à procura de emprego, um pouco ao sabor das cunhas do pai, de familiares e amigos, e acicatado pelo facto de se ter apaixonado perdidamente por uma filha de um dos mais celébres cenógrafos do seu tempo, Giuseppe Cinatti. Chamava-se ela Celeste Maria Luísa Cinatti. Jaime preenchia o tempo namorando «da rua para a janela», patuscava com os amigos, frequentava todos os espectáculos lisboetas, principalmente o S. Carlos, e continuava a devorar obras literárias e científicas. Repete constantemente nas cartas de namoro:
«Tenho estado no Grémio a ler O Homem Que Ri e uns artigos na revista germânica sobre a economia rural da Alemanha.» (…) «Fui para o Grémio, estive lá a ler e a estudar até agora.»
Jaime Batalha Reis começa, por esta altura, a colaborar na Revista Agrícola, órgão da Real Associação Central da Agricultura Portuguesa a que, naturalmente, pertencia. E foi no ano de 68 que se deu o conhecimento com Antero, pela mãe de Eça. E logo em 69 os três amigos, num delírio criativo, inventaram o poeta satânico Carlos Fradique Mendes, cuja produção poética era claramente influenciada pelas Flores do Mal de Baudelaire.
«O verso para mim é uma firma muito artificial, que só a sangue frio e com atenção de produzir extravagâncias é que eu posso fazê-lo. Só para o Fradique é que posso ser poeta. Inspiração franca, espontânea e natural, não a tenho. Hei-de mandar-te as diferentes poesias que se têm feito para o Fradique Mendes sem os nomes dos seus autores. Quero ver se tu adivinhas quais são as minhas.»
Batalha Reis e Antero, tornados inseparáveis, foram morar para S. Pedro de Alcântara numa casa que começou a ser frequentada por outros jovens, alguns com vincados interesses socialistas. Foi a esta casa que Oliveira Martins também veio para conversar, discutir, trocar livros e ideias. E com ele se fechou não o círculo mas o quadrado – Eça, Batalha, Antero e Oliveira Martins. Todos diferentes entre si, mas com interesses, estatuto social e apetência cultural comuns. Dos quatro, Batalha Reis era o que havia adquirido uma formação verdadeiramente científica e que nem sempre as suas razões podiam ser apreendidas pelos amigos, com a desvantagem, ainda, de ser o mais novo deles. Para amealhar uns tostões, escrevia pequenos artigos sobre ópera para a Crónica dos Teatros de Portugal. As preocupações políticas, inspiradas pelas leituras proudhonistas e pelos ventos iberistas que assolavam algumas cabeças, arrastaram Antero e Batalha para a experiência política. No ano de 1870, Batalha, Antero e Oliveira Martins, com a adesão de alguns amigos, Eça, Manuel de Arriaga e Antonio Enes, tentaram o jornalismo político, em defesa dos ideais socialistas e da corrente iberista, fundando o jornal A Républica. Entretanto, Mendes Leal sugeriu a António Reis a hipótese de um consulado para o seu filho mais novo. Ia abrir um concurso para o preenchimento de algumas vagas no quadro diplomático. Jaime Batalha Reis entusiasma-se com a ideia mas sente-se um pouco magoado com Eça. Em carta à namorada explica:
«Dizes tu, minha Amiguinha, que te faz efeito de que eu e o Eça sendo amigos, não devíamos ir ao mesmo concurso. Tens razão. Fui eu o primeiro a falar nesses concursos ainda em tempos em que Mendes Leal era ministro. Falei nisso e disse mesmo com toda a franqueza de amigo ao Eça o que o Mendes Leal dissera a meu Pai e disse-lhe que ia a concurso. O Eça disse-me que também ia. Depois soube pelo Conde de Resende que o Eça fora falar ao Mendes Leal sem me dizer nada a mim. Não achei isto bonito mas não lhe disse nada.»
Jaime faz as provas e considera que lhe correram bem ficando bastante esperançado, até porque, diz ele:
«Os que forem aprovados neste concurso ficam já admitidos e na próxima vaga que houver são sem mais concursos feitos cônsules.»
Os resultados do concurso saem e Eça aparece classificado em 1.º lugar. Isto ia contra as mais ínfimas expectativas de Batalha Reis e até dos boatos que circulavam em Lisboa, alguns jornais chegaram a noticiar que ficara em primeiro lugar, e até alguns amigos do pai, bem colocados, lho haviam confidenciado. A verdade é que Jaime fica em 3.º lugar, sendo o 2.º lugar para Manuel Saldanha da Gama. Batalha Reis só alcançará o seu posto de 1.º cônsul doze anos após este concurso em que tantas esperanças havia posto! Nisto Jaime e Antero mudam-se para a Rua dos Prazeres. E foi aqui que as «Conferências do Casino» se constituíram. Antero e Batalha Reis foram os dois organizadores, mas todo o «Cenáculo» comungava das mesmas ideias: renovação cultural num país atrasado. Os temas versados e as posições tomadas pelos conferentes levantaram imediatos protestos nos jornais. O resultado foi a proibição das conferências e o encerramento da sala decretado pelo ministro do reino, marquês de Ávila e Bolama. Os protestos que se seguiram, por parte dos conferentes, foram logo reforçados por dois folhetos, um de Antero e outro de Jaime. Dirigindo-se ao marquês Ávila e Bolama, Batalha Reis, depois de começar por afirmar que «Eu sou socialista», termina dizendo:
«Sabe V. Ex.ª porque das 300 ou 400 pessoas que nos acompanharam a protestar contra a sua Portaria só assinaram 59? Porque as outras eram empregados públicos, isto é: homens que não podiam manifestar a sua consciência, a sua convicção, homens a quem V. Ex.ª demitiria no dia seguinte àquele em que tivessem mostrado que possuiam uma alma, uma ideia, um sintoma de independência. E sabe V. Ex.ª o que diz a opinião pública? Que nunca serei nem agrónomo oficial para que todavia me habilitam os meus trabalhos e os meus cursos, nem cônsul de Portugal para que me habilitou um concurso por provas públicas. Foi em cumprimento do meu dever que me propus a falar na sala do Casino; e em cumprimento do meu dever que escrevo esta carta a V. Ex.ª Muito do estilo dela deriva de eu me ter colocado no seguinte ponto de vista: a ignorância de V. Ex.ª, o que V. Ex.ª fez obriga-me a descrer ou da sua ilustração ou da sua probidade. Eu descri da sua ilustração. Todos os atos da vida de V. Ex.ª me autorizavam a fazê-lo.»
Não podemos deixar de sublinhar a coragem que esta sua intervenção representava no quadro da desesperada procura de emprego para se poder casar com Celeste Cinatti. Será a sua capacidade como agrónomo que lhe irá dar essa recompensa. Em fevereiro de 72 é nomeado chefe do Serviço Agrícola do Instituto Geral de Agricultura e no outono desse ano substitui Andrade Corvo, lente do Instituto. Logo que sai a nomeação acontece o tão esperado casamento. Em 1873 nasce-lhes a primeira filha, a que dão o nome da mãe. Batalha Reis continua a dar aulas e a escrever para Revista Agrícola uma longa série de artigos sob o título «Princípios de Agricultura Popular», escrevendo também para outras revistas de especialidade.
Durante este período, Batalha Reis desenvolvia igualmente uma prodigiosa campanha para angariar fundos e colaboradores para a Revista Ocidental. Depois de vários contratempos a revista vê luz do dia em fevereiro de 75. Nos anos que se seguem, Batalha Reis, vai continuar a somar êxitos no currículo e é aceite como membro efetivo da Sociedade de Geografia de Lisboa. Em 1880 é criada no Instituto Geral de Agricultura a cadeira de Microscopia, que lhe é destinada, utilizando pela primeira vez o microscópio, técnica em que fora iniciado pelo seu amigo Curry Cabral. O seu interesse pelos aspetos mais literários da vida intelectual não era ignorado no meio lisboeta e, aos poucos, o seu círculo de conhecimentos alarga-se: torna-se amigo dos irmãos Bordalo Pinheiro e o seu interesse pela pintura toma novos rumos e aprofunda-se.
Finalmente, em julho de 82, é nomeado 1.º cônsul para a vaga existente em Newcastle. O mercado inglês parece-lhe ter as condições ideais para importar e comercializar o vinho português, e passa a bombardear o ministério com relatórios e planos. É certo que outras preocupações mais prementes começavam a surgir: como justificar e defender a nossa permanência em África, frente às outras potências colonialistas muito mais poderosas no terreno, especialmente a Inglaterra? É então que Jaime Batalha Reis se lança na polémica respondendo aos ataques de que Portugal era alvo nos jornais ingleses:
«A verdade é que há muitos anos […] que os ingleses se habituaram a ler nos seus jornais e nos seus livros afirmações desfavoráveis a Portugal, a que ninguém responde.»
Perante esta situação, o novo cônsul começa a atuar de várias formas: envia relatórios sobre o assunto alertando o Governo Português, tem resposta pronta nos jornais ingleses aos ataques a Portugal e faz conferências nas sociedades científicas inglesas onde o seu nome se ia tornando cada vez mais conhecido. Estudos Geográficos e Históricos, obra póstuma, reúne as suas mais importantes intervenções dessa época. Jaime Batalha Reis continua a ser solicitado para diferentes colaborações nos jornais portugueses que lhe aumentavam os recursos financeiros, e ainda bem, dado que lhe tinham nascido mais quatro filhos. E é no meio desta intensa atividade que recebe a terrível e inesperada notícia do suicídio de Antero. A morte de Oliveira Martins, logo a seguir, veio abalá-lo ainda mais. Em 1897 é nomeado cônsul-geral em Londres. E no verão de 1990, com onze dias de intervalo, morrem-lhe a mulher e o seu outro grande amigo: Eça de Queiroz. Quando se dá a Revolução de 5 de Outubro, Jaime Batalha Reis encontra-se em Bruxelas. Bernardino Machado, que lhe apreciava a inteligência e a capacidade de trabalho, chama-o a Lisboa e encarrega-o da remodelação do ministério. Em 1911 é nomeado ministro plenipotenciário para S. Petersburgo, embarcando no paquete alemão Konig Friedrich August. Em novembro escreve às filhas, narrando-lhes a cerimónia da entrega das credenciais:
«[…] abriu-se uma porta pela quase adiantou o Grão-mestre das cerimónias que me anunciou em voz muito alta, dizendo o meu nome um tanto estropiado, e a minha qualidade, retirando-se, em seguida, pela mesma porta que se fechou. Vi então diante de mim um homem pequeno, magro, macilento, de barba castanha clara, que se adiantou para mim sorrindo, e estendendo-me a mão. Entreguei-lhe, com algumas frases oficiais, as minhas credenciais […]. E começámos a conversar. Não podem imaginar nada mais afável, mais natural, mais familiar, mais simpático do que o Tsar. […] Contou-me muitas anedotas engraçadas da sua completa semelhança com o atual Rei de Inglaterra. […] Assim estivemos quase uma hora. Saí de la encantado.»
E Jaime Batalha Reis é apanhado no vórtice da Revolução de 1917. Só em 1918 consegue sair da Rússia por Murmarsk, no meio de grande susto e enorme confusão. O socialista Batalha Reis não conseguira discernir, no meio da luta renhida das diferentes fações, que uma certa forma de socialismo estava a ponto de se concretizar, e que muitos dos princípios que defendera na mocidade também faziam parte das aspirações de alguns desses revolucionários. É de seguida nomeado delegado plenipotenciário na Conferência de Paz, em Paris. Tinha então 71 anos! A atividade que desenvolve é prodigiosa. No regresso a Portugal, cria o Secretariado da Sociedade das Nações e lança as bases da Associação Portuguesa para a Sociedade das Nações, de que veio a ser vice-presidente. Em agosto de 1922 sai o decreto da sua aposentação. Encontra-se finalmente livre para poder dedicar-se à «sua obra» com que sonhara ao longo dos anos, que no dizer do amigo Viana da Mota se chamaria Explicação do Universo. Nos últimos anos que lhe restam até 1935, data em que morre vítima de trombose, carteia-se com escritores e políticos da nova geração. Ao retiro da Quinta do Turcifal continuam a afluir honrosas nomeações para diferentes associações, sociedades e congressos. Batalha Reis sente‑se, contudo, sozinho com o seu sonho: escrever a obra filosófica esparsa em centenas de papéis misturados com milhares de cartas e rascunhos que abarrotavam os dezanove armários da sua sala de trabalho. Este espetáculo levava-o a exclamar completamente desalentado:
«Não posso! Não posso! Não posso!»
E não podia, com efeito. Tinha 78 anos e acabara de ser operado às cataratas que quase o haviam deixado cego. Seriam as filhas quem, após a sua morte, organizariam o seu Espólio, oferecendo-o, mais tarde, à Biblioteca Nacional de Portugal.
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Jaime Batalha Reis, de autoria de Maria José Marinho.