Houve um tempo em que nenhuma mulher da tua família podia votar. Apenas por ser mulher. Mãe, avó, tia, irmã, sobrinha, prima, não importava. Mesmo que fossem muito inteligentes, mesmo que tivessem lido 100 ou 200 livros (o que seria imenso!), mesmo que soubessem dizer a tabuada de trás para a frente ou o nome de todos os rios e afluentes da Ásia (o que seria incrível!), tinham contra si uma série de leis que as julgavam como inferiores aos homens.
Estávamos nos primeiros anos do século XX, época de grandes mudanças sociais e científicas por todo o mundo. Em quase todos países o voto estava-lhes proibido — com algumas exceções como a Nova Zelândia, nos antípodas de Portugal, onde as mulheres já votavam desde 1893.
Escritora, editora, jornalista, ensaísta, pedagoga, feminista, maçónica e republicana, tudo isso e mais foi Ana de Castro Osório.
Quando se deram as eleições de 28 de maio de 1911, Carolina Beatriz Ângelo [médica cirurgiã, e a primeira mulher a votar em Portugal] e Ana de Castro Osório já eram amigas e lutadoras pelas mesmas causas políticas e sociais. Membros da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e da Associação de Propaganda Feminista, entre outras organizações, queriam ver o progresso e a modernidade chegarem de vez ao País.
Ambas provinham de famílias avançadas para a época. Ambas casaram com homens inteligentes e dignos que as apoiaram nessa causa da História universal, sobretudo desde meados do século XIX, com a ação das sufragistas. Foi esse o nome dado às mulheres que, em Inglaterra e nos Estados Unidos da América, começaram a reivindicar plenamente os seus direitos, começando pelo sufrágio ou voto. Foram presas, internadas como loucas e até assassinadas, mas o movimento não parou mais e deu origem ao que depois se designou por «feminismo».
Conhecendo estas novas ideias que chegavam da Europa, Ana de Castro Osório escreveu, em 1905, Às Mulheres Portuguesas. É considerada a primeira obra declarada a favor da emancipação da mulher — sem por isso excluir os homens.
Ana de Castro Osório nasceu em Mangualde, cidade do distrito de Viseu, no dia 18 de junho de 1872. Morreu em Lisboa, a 23 de março de 1935, aos 62 anos.
Os pais tiveram grande influência na sua maneira de ver e pensar o mundo. João Baptista de Castro era um homem das leis e dos livros. A mãe, Mariana Osório de Castro Cabral Albuquerque, provinha de uma família culta e aristocrática; e também ela ajudou a filha nas suas múltiplas atividades enquanto escritora, feminista, republicana e tudo o que lhe despertava curiosidade e interesse.
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Era ainda muito nova quando deixou Mangualde e foi viver com a família para Setúbal, onde o pai fora colocado como juiz. Aos 26 anos, casou-se com o poeta, jornalista e político republicano Paulino de Oliveira, também de Setúbal. Tiveram dois filhos: João de Castro Osório e José Osório de Oliveira. Quando o marido foi nomeado para o lugar de cônsul português em São Paulo, em 1911, Ana de Castro Osório mudou-se para o Brasil e ali ficou até à morte deste, em 1914. Foi um casamento tranquilo e repleto de afinidades, com uma história muito especial pelo meio… que no final contaremos.
Foi em Setúbal que Ana de Castro Osório se dedicou a uma parte fundamental da sua vida e obra: a escrita e promoção da literatura infantil. Pegando no trabalho feito à volta dos contos tradicionais, que já vinha de antes do casamento, iniciou a coleção «Para as Crianças», em 1897. (…)
Não só os escrevia como os editava por sua conta e distribuía por livrarias do País — e, mais tarde, também no Brasil, que então representava um grande mercado. Além disso, respondia às cartas dos leitores, que podiam receber o seu exemplar pelo correio. Ao fim de alguns números, chegava a respetiva encadernação. Um trabalho muito profissional e completo, a que hoje chamaríamos marketing.
Ao mesmo tempo, mantinha a sua atividade política, seguindo os ideais republicanos de transformar o País através da instrução escolar e cívica. Abrir bibliotecas públicas, aumentar o número de escolas, valorizar o trabalho dos professores, alargar a escolaridade obrigatória, tornar a leitura de livros e jornais mais acessível…
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Ao longo dos quase quarenta anos em que escreveu sem interrupção, sobretudo para a imprensa periódica, Ana de Castro Osório abordou muitos temas, desde a igualdade no divórcio até ao serviço militar obrigatório para mulheres, passando pelo direito das mães amamentarem os filhos (à época, esse papel pertencia às chamadas «amas-de-leite»).
Ana de Castro Osório não foi apenas uma das primeiras pessoas a encarar a escrita para crianças com o mesmo empenho que reservava aos assuntos ditos «sérios», como a política. Da sua geração, apenas a escritora Virgínia de Castro e Almeida, autora de Céu Aberto e As Aventuras de Dona Redonda, a conseguiu acompanhar. No entanto, se há quem chame a Ana de Castro Osório a mãe da literatura infantil em Portugal é também porque ela foi, como se costuma dizer, uma «mulher dos sete instrumentos». Repara:
• Escreveu contos originais, sem dúvida o seu género preferido, além de teatro para crianças e novela de aventuras;
• Recolheu e adaptou ainda mais contos tradicionais e contos de fadas que ouviu às «mulheres do povo», em Mangualde e Setúbal;
• Assinou versões traduzidas de autores estrangeiros, caso dos irmãos Grimm e Hans Christian Andersen;
• Foi autora de vários livros de leitura escolares também lidos nas escolas públicas do Brasil;
• Fundou a Livraria Editora «Para as Crianças», em Setúbal, a fim de publicar os seus próprios livros e fazê-los chegar a Portugal e ao estrangeiro;
• Valorizou a ilustração, colaborando com artistas como Leal da Câmara, Raquel Roque Gameiro, Alfredo de Morais, Hebe Gonçalves e Mily Possoz, entre outros;
• Mostrou ter um entendimento do livro infantil muito avançado para a sua época, quando a leitura era considerada útil para instruir e dar lições de moral, mas não para distrair nem divertir. Já em 1908, no prefácio de um dos seus livros, escrevia:
«Criar uma literatura infantil é criar o amor pela leitura, é despertar na criança a curiosidade — tão embotada nas crianças portuguesas — pelas coisas intelectuais e dar-lhe da vida uma nobre e alta noção. […]
A literatura para os grandes apossa-se de todos os assuntos e de todos pode fazer obras de valor, conforme o talento dos autores. O mesmo acontece, e deve acontecer, com a literatura infantil, que tem de ser vasta e variada…»
in Ana de Castro Osório,
a mulher que votou na literatura
Texto: Carla Maia de Almeida
Ilustrações: Suza Monteiro
Coleção Grandes Vidas Portuguesas
Imprensa Nacional-Casa da Moeda / Pato Lógico Edições
48 pp.