Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva era filho único de Vitorino da Silva e de D. Maria da Glória Pinheiro. Nasceu rodeado de mar, numa casa da Rua da Cadeia, na Praia da Vitória, ilha Terceira. Era o dia 19 de dezembro de 1901. Vitorino Nemésio era descendente, tanto do lado paterno como materno, de famílias radicadas nos Açores desde o século XVI. Entre os seus antepassados contam-se representantes da mais velha fidalguia terceirense, a começar pelo primeiro donatário da Praia e fundador de Angra, Álvares Martins Homem. Simultaneamente contam-se também origens bem mais plebeias: o avô era marceneiro e o pai era um pequeno comerciante e um amador musical, a quem, aliás, Nemésio nunca deixou de render o mais enternecido culto. Deste modo prefiguram-se na sua ascendência quanto há de aristocrático e quanto há de popular em toda a consumada arte de escrever, em toda a espontânea «arte de ser», do incomparável humanista que foi o grande poeta e prosador Vitorino Nemésio.
Da infância, que lhe correu primeiro na Praia da Vitória, depois em Angra do Heroísmo, Vitorino Nemésio guardou imagens a que incessantemente recorria: de um lado, as imagens «naturais», de onde sobressaíam as da constante presença do mar, horizonte e aro da ilha natal; do outro lado, as imagens «sociais» daquele microcosmo da ilha, a tessitura da vida de relação.
Aquele cais, ali, agudo e nu
que o mar percute e coroa de asas
Sabes? pareces-me tu,
Adiada e ao fundo casas.
Tu não mulher salva ou perdida,
Nem tu esperança de pedra
Mas terra da minha vida
Onde o mar alto medra.
De tais círculos, os mais evocados serão: o da família, desde o agregado restrito às complicadas ramificações de parentela; o círculo da vizinhança, ou das vizinhanças, com especial relevo para certos vultos femininos e para certos contadores de histórias; o da escola primária, mais tarde o do liceu, não tanto como «órgãos» de progressiva aquisição do «saber», mas sobretudo como focos privilegiados da descoberta e de convívio; e finalmente, o círculo da igreja, cuja «doutrina» e formas de culto começou a receber à margem dos ensinamentos do quotidiano. Serão os primeiros indícios da revelação do sagrado. Mas, em matéria de aprendizagens, outra ainda que profundamente o marcou foi a da música; e essa, pelo menos nos seus rudimentos, ficou-lhe ligada ao exemplo e influxo paternos. O gosto pela expressão verbal foi todavia o que desde logo predominou. Não lhe faltaram, aliás, como diria mais tarde, certas «facilidades tipográficas»: aluno do quarto ano do liceu dirigiu um semanário intitulado Estrela d’Alva, rotulado de «revista literária, ilustrada e noticiosa». O respetivo editor, Manuel Joaquim Andrade, com o prelo a funcionar na Rua Direita, em Angra, será também o responsável, na mesma época, pela impressão e difusão do livro de versos Canto Matinal, com que muito precocemente Vitorino Nemésio se estreia nas letras. O livro é dedicado: «Aos bons».
Desta e de outras obras igualmente imaturas — como por exemplo A Fala das Quatro Flores, ou Amor de Nunca Mais ou ainda Nave Etérea — pode dizer-se que constituem a «proto-história» da vida literária de Vitorino Nemésio. Mais tarde, no texto que publicou como prefácio à coletânea Poesia (1935-1940), Nemésio enuncia a sua obra de juventude, referindo apenas a dois «livritos» de poesia, e nestes termos: «Canto Matinal (1916) e Nave Etérea (1923) são destas coisas que se estampam no ímpeto da adolescência, sem critério.»
Entretanto, não tardou para que Nemésio iniciasse a «história» propriamente dita. Em 1924, já radicado em Coimbra, Vitorino Nemésio faz editar, sob a chancela da Imprensa da Universidade e com um entusiástico prefácio de Afonso Lopes Vieira, o volume Paço do Milhafre.
Em busca da vocação, por algumas peripécias passa Vitorino Nemésio: completa o curso geral dos liceus na cidade da Horta, cuja «atmosfera» recriaria, mais tarde, no romance Mau Tempo no Canal; assenta depois praça como voluntário em Infantaria 25, em Angra do Heroísmo, passando mais tarde para o Continente, em 1919. O objetivo a fim de prestar serviço como primeiro-cabo, no Polígono de Tancos e também no Depósito de Adidos, às Janelas Verdes. Em Lisboa inicia-se no jornalismo profissional como repórter de A Pátria, tendo então entrevistado o marechal Joffre, de visita a Portugal, e participado numa greve da imprensa lisboeta, de que sairia a fundação do efémero jornal Última Hora, este antecessor direto do Diário de Lisboa. Finalmente Vitorino Nemésio decide reatar os estudos, fixando-se então em Coimbra e terminado aí o 7.º ano de Letras, matricula‑se na Faculdade de Direito. Com isto coincide ainda uma passagem pelo curso de História e Geografia. Estávamos em 1923 e Nemésio só no ano seguinte optará definitivamente pelo grupo de Filologia Românica.
Ao mesmo tempo, Vitorino Nemésio trabalha como revisor da Imprensa da Universidade e intervém ativamente na vida académica, cultural e política da Coimbra da época: preside ao Centro Republicano; faz parte do Orfeão Académico e é integrado neste que visita Salamanca, Valladolid e Madrid. Viagens que lhe dão azo de entrever Unamuno, com quem mais tarde se carteará, bem como de ser apresentado a Ortega y Gasset, com quem virá a manter um afetuoso convívio. Por esta altura colaborara também na revista Bysâncio e participa, com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, sob a égide de Afonso Duarte, na fundação da revista Tríptico, precursora da revista Presença.
De amigos e companheiros, provenientes de variados quadrantes, salientam-se então o poeta António de Sousa, o cientista Aurélio Quintanilha e o futuro historiador Alberto Martins de Carvalho. E a eles se acrescentarão, pouco depois, os nomes de Paulo Quintela e de Miguel Torga.
Em 1923, na Praia da Vitória, morre-lhe o pai. No ano seguinte, durante umas férias na Terceira, situa-se o episódio amoroso, com fundos de frustração, de que haverá, vinte anos mais tarde, empolgante contrapartida. Este episódio estará na origem das teias sentimentais de Mau Tempo no Canal. Superada esta crise sentimental, Nemésio virá a casar, em Coimbra, em fevereiro de 1926, com D. Gabriela Monjardino de Azevedo Gomes, também de famílias açorianas, e que virá a ser, além de incomparável companheira, uma admirável colaboradora da sua obra de investigador.
Nemésio passa a viver com os sogros na Quinta das Albergarias, à Cruz de Celas. E é aí que nascerão os quatro filhos do casal: Georgina, Jorge, Manuel e Ana Paula. Data dos primeiros tempos do casamento a escrita e a publicação do romance Varanda de Pilatos, que, tal como a maioria dos trechos de Paço do Milhafre, se insere em ambiente açoriano. Deste período data também a fervorosa intimidade com Raul Brandão, de que haveriam de ficar inolvidáveis páginas de recordações em Sob os Signos de Agora. É também de 1926 o primeiro texto do diário de Vitorino Nemésio, um diário intermitente, escrito nos mais diversos suportes e nos mais diversos locais. Escreverá:
«Daqui em diante, todas as doces emoções da vida as irei eu registando. As minudências, as bagatelas do dia a dia virão aqui juntar-se: porque deve de dar calor na velhice um grande livro íntimo, palpitante das horas que o geraram. Havemos de lê-lo tarde, talvez nas noites de inverno sacudido ou nas manhãs frias e azuladas da primavera.»
Entretanto, considerando-se mal classificado na Universidade de Coimbra, Vitorino Nemésio virá a concluir a licenciatura em Filologia Românica, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estávamos em 1931. Pelas elevadas classificações que conseguiu em Lisboa Vitorino Nemésio é logo contratado como professor auxiliar, para ensinar Literatura Italiana. O doutoramento virá em 34 com a exaustiva dissertação sobre A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio. Em 35, parte para Montpellier para ensinar. E aí compõe os versos franceses de La Voyelle Promise, que representam os primeiros acordes de absoluta modernidade nos domínios da sua poesia.
O ouvinte preferencial de tais versos será uma antiga madrinha de guerra de Appolinaire, Jeanne-Yves Blanc, ela própria poetisa. No College des Écossais, onde depois se instala, respira a atmosfera cosmopolita das Rencontres de Pontigny e inicia-se nos grandes poetas franceses contemporâneos, incluindo os surrealistas. De seguida, Vitorino Nemésio — primeiro como maître de conférences, depois como professeur agréé — vai lecionar na Universidade de Bruxelas, onde decisivamente encaminha para os estudos portugueses a estudante Andrée Crabbé, mais tarde Andrée Crabbé Rocha, mulher de Miguel Torga. Por fim, em 1940, Nemésio é aprovado, em concurso, professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa.
Na década correspondente ao ciclo existencial que assim termina, Nemésio publicou, em diversos géneros, algumas das suas obras mais significativas: entre outros, o já citado livro de ensaios Sob os Signos de Agora; os estudos Relações Francesas do Romantismo Português e o volume de novelas A Casa Fechada, onde, pela primeira vez, se deteta uma certa influência da ficção inglesa, que depois se manifestará amplamente em Mau Tempo no Canal. No domínio da poesia, Nemésio publica as coletâneas O Bicho Harmonioso e Eu, Comovido a Oeste. Além disso, funda e dirige a Revista de Portugal, onde pela primeira vez — porventura a única — se verifica o estreito convívio entre as principais individualidades do vanguardismo modernista e os recém revelados valores das novas correntes universitárias. A profundidade do talento de Vitorino Nemésio como poeta, ficcionista, ensaísta, crítico e erudito, encontrava-se plenamente firmada ao terminarem os anos Trinta.
Os anos 40 serão, por sua vez, assinalados pelo aparecimento de obras ainda mais decisivas. Esse é o caso, em primeiro lugar, do romance Mau Tempo no Canal, publicado em 1944. Mau Tempo no Canal é, em matéria romanesca, a obra-prima de Vitorino Nemésio e uma das indiscutíveis obras-primas de toda a ficção portuguesa. No entanto Mau Tempo no Canal não pode nem deve deixar na sombra o que de igualmente alto o seu autor criaria nestes anos: O Mistério do Paço do Milhafre, Quatro Prisões debaixo de Armas e os contos Cabeça de Boga, A Lição de Solfa e I’m Very Well, Thank You.
É ainda na década de 40 que Vitorino Nemésio publica alguns dos seus melhores estudos críticos sobre importantes figuras da nossa história literária: Gil Vicente, Gomes Leal, Bocage, Moniz Barreto e tantos outros. Outros estudos, em formato mais reduzido, Nemésio deixou-os nas páginas de Ondas Médias, preciosa recolha de exemplares palestras radiofónicas. Finalmente, já na charneira para a década seguinte e após dez anos de «silêncio editorial» em matéria de poesia, Vitorino Nemésio dá à estampa um volume de versos inteiramente distinto dos anteriores: Festa Redonda, em 1950, que se trata, como ele próprio explica: «O livro mais miudamente e emocionalmente biográfico que escrevi.»
A partir desta altura, e até à sua morte, será precisamente a poesia que mais continuadamente predominará na produção literária de Nemésio. Avultam certas rubricas que manteve quer na imprensa quer na rádio com especial relevo para a secção «Leitura Semanal», que por muitos anos subscreveu no Diário Popular e, principalmente, o programa televisivo da RTP, «Se bem me Lembro». O programa «Se bem me lembro» esteve no ar entre 1969 e 1975 e obteve uma audiência e um êxito sem precedentes. Embora seja infelizmente de supor que só de modo escasso tal programa tenha contribuído para a desejável divulgação da sua obra de genial criador literário, o certo é que ele teve pelo menos o mérito de impor Vitorino Nemésio junto do grande público e de o impor como presença extremamente viva, comunicativa e respeitada, abolindo dessa forma a estereotipada imagem que habitualmente esse grande público tinha acerca do que será um intelectual.
Nemésio foi sendo alvo, a nível nacional e internacional, de provas de justo reconhecimento: sócio efetivo, desde 1963, da Academia das Ciências de Lisboa; agraciado com diversas condecorações portuguesas, francesas e brasileiras; distinguido com o grau de doutor honoris causa pela Universidade de Montpellier, com o Grande Prémio Nacional de Literatura e, entre outros, com o Prémio Internacional Montaigne.
Pode, todavia, pensar-se que estas e outras distinções se dirigiam mais ao invulgar homem de cultura que foi Nemésio que propriamente ao extraordinário poeta cuja obra foi-se renovando a cada passo e modernizando-se como a de nenhum outro seu contemporâneo. Uma obra que entretanto fora crescendo com a publicação de Nem Toda a Noite a Vida, O Verbo e a Morte ou O Pão e a Culpa, estes publicados ainda nos anos 50. O Pão e a Culpa oferece-nos, por exemplo, o comovente e raro espetáculo de um grande poeta tocado pela Graça:
Tirei do homem velho o novo
Como quem tira o espinho ao pé
E a novidade dei ao povo
E o sangue e o pus lavei na Fé.
Na década seguinte surgem O Cavalo Encantado, Andamento Holandês, Poemas Graves e Canto de Véspera. Já nos anos 70, Nemésio traz-nos Limite de Idade, Poemas Brasileiros e Sapateia Açoriana. Desta volumosa sequência de obras poéticas são por sua vez contemporâneos, no domínio da crónica, O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos, Corsário das Ilhas e Caatinga e Terra Caída. Quanto à investigação histórica, antropológica e literária Nemésio deixa-nos obras como O Campo de São Paulo, Conhecimento de Poesia ou Era do Átomo / Crise do Homem, entre tantos outros.
Curiosa e significativa, nesta produção diversificada, é a superfície ocupada por obras de temática brasileira. O interesse de Vitorino Nemésio pelo Brasil começara por lhe ser inculcado, ainda nos alvores dos anos 30, por Manuel de Sousa Pinto, seu professor. Foi depois aprofundado a partir da primeira viagem que fez ao Brasil, em 1952 e a que se seguiriam mais sete ou oito já como professor visitante nas Universidades da Baia e do Ceará. O interesse brasileiro viria também a consolidar-se nos largos anos em que teve a seu cargo, em Lisboa, a regência de Estudos Brasileiros, instituto que fundou e dirigiu.
Ao atingir o «limite de idade», circunstância que, no seu caso, se converteu em matéria de reflexão, Vitorino Nemésio proferiu, em 9 de dezembro de 1971, no grande anfiteatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a sua última lição. Nessa manhã o anfiteatro registou a maior enchente de toda a sua história até ali:
«Dou a minha última lição de professor na efetividade e em exercício, segundo a lei. Claro que a lei só tira o exercício ao funcionário: o homem exerce enquanto vive (…) Pois bem. Esta minha vivência de vigília no fim da carreira repete fielmente o arquétipo das minhas preocupações de professor e de publicista, tão certo é aquele pensamento de Herculano que decorei nos anos felizes em que preparava o doutoramento, e diz: O homem imprime necessariamente em todos os actos da vida as condições do seu ser. Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois, ou racionando, como a formiga, do verão propício ao inverno rigoroso. Mas talvez também não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no inverno e cantei sempre.»
E cantou sempre. Praticamente até à hora da morte. Tempo ainda para ser diretor do jornal O Dia, de dezembro de 1975 a outubro de 1976, aí mesmo teve ensejo de, ao arrepio de todas as «normas», comentar em verso dois ou três episódios, mais ou menos burlescos, do momento que então se vivia. Entre março de 1973 e maio de 1977, Nemésio escreveu ainda poemas dedicados a D. Margarida Vitória, a última das suas paixões. Antes de morrer, o poeta copiou 53 deles para um caderno, onde escreveu, na folha de rosto: «Caderno de Caligraphia pertencente à menina Margarida Vitória que lhe oferece o Vitorino Nemésio». Num segundo caderno estavam mais quatro poemas. A este caderno Vitorino chamou: «Caderno de Caligraphia oferecido à menina Margarida Vitória pelo seu menor criado e bem querido Vitorino Nemésio».
Por dificuldades várias, só em 2003, passados 25 anos sobre a morte de Nemésio, Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga pode ver a luz do dia, numa edição póstuma organizada por Luiz Fagundes Duarte. A 20 de fevereiro de 1978 Vitorino Nemésio morre, desaparecendo com ele alguém que verdadeiramente nascera com um talento multiforme. Um talento que teria dado, à vontade, para mais dez autores: dois ou três poetas, a apontarem novas direções e novos modos de ser moderno; dois ou três ficcionistas, fazendo ascender certos carateres nacionais, e até regionais, ao plano europeu e universal; dois críticos, pelo menos, e ambos bem necessários — um da melhor cepa impressionista, o outro apetrechado com toda a aparelhagem da mais completa erudição; e ainda um biógrafo e um historiador; mais um multifacetado cronista, que por completo renovou as leis do género. E por fim um extraordinário filósofo.
Pouco antes de morrer, Nemésio pede ao filho para ser sepultado no cemitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra. Pediu ainda que os sinos tocassem o Aleluia em vez do dobre a finados. E o pedido foi cumprido.
Quando eu morrer, a terra aberta
Me beba de um trago
E esqueça.
Aos deuses minha oferta
É levar o que trago:
Eu, dos pés à cabeça.
Assim, com ervas altas,
Acabam os que começam.
Que Deus nos perdoe as faltas!
Dizem: «a terra que nos come»:
Eu digo: «a que nos bebe» — e basta.
Somos só água que se some:
Choveu — e fomos
Na vida gasta.
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Vitorino Nemésio, de autoria de David Mourão-Ferreira.