José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto a 25 de novembro de 1836. O seu pai, o primeiro tenente de artilharia Joaquim da Costa Ramalho Ortigão, era de origem alentejana e algarvia e a sua mãe, D. Antónia Alves Duarte Ramalho Ortigão, era natural de Paranhos, no Porto, onde aliás a família residia. Ramalho Ortigão era o mais velho de nove irmãos e a sua infância decorreu numa quinta do Porto, como ele próprio no-la descreve em trecho autobiográfico:
«Só nós, as crianças, é que gozávamos nesta festa uma alegria imperturbável e perfeita, porque não tínhamos a compreensão amarga da saudade nem as preocupações incertas do futuro. Para nós tudo na vida tinha o caráter imutável e eterno. O destino aparecia‑nos ridentemente fixado, como no musgo as alegres figuras do presépio. Supúnhamos que seriam eternamente lisas as faces de nossa mãe, eternamente negro o bigode de nosso pai, eternamente resignada e compadecida a decrépita figura da nossa avó, toucada nas suas rendas pretas, no fundo da grande poltrona.»
A educação de Ramalho Ortigão ficou a cargo de um tio-avô, Frei José do Sacramento, e de um velho criado, Manuel Caetano, que contava com cinquenta anos de serviço militar. Ramalho Ortigão, aliás, reconhecia-se meio frade meio soldado. De frade, tinha o gosto pela pedagogia e pela ordem. De soldado, o culto do corpo são, harmónico, o espírito positivo, de serviço senão de coerência, que aliás quis imprimir à sua vida.
«O que tenho de bom, física e moralmente, se alguma coisa boa tenho, devo-a às fortes e sadias convivências da minha infância nessa bendita casa de Germalde, à religião e à disciplina dos meus dois velhos amigos, ao bom leite das nossas vacas, à hortaliça e legumes da nossa horta, aos ovos frescos do galinheiro, ao canto dos melros e dos rouxinóis a que eu armava alçapões, aos muitos trambolhões que dei da mula abaixo e à dura broa do balaio, na enfumaçada cozinha da avó.»
Serão as Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, lidas na convalescença duma doença, que induzem Ramalho à escrita e à literatura. Além de uma influência estritamente estilística, durante toda a vida Ramalho Ortigão não abandonará um gosto exacerbado pelas viagens e pela sua terra, possuído dum verdadeiro «espírito do lugar» que fará dele um dos primeiros cultores da etnografia nacional.
Depois de uma breve passagem por Coimbra, onde não se tornou bacharel em Direito, encontramo-lo professor de Francês no Colégio da Lapa, no Porto, de que seu pai era o diretor. Aí ensina, entre outros, Eça de Queirós e Ricardo Jorge. Cultivava nessa época um certo dandismo de tonalidade ultra-romântica e camiliana que os seus escritos de então, Primeiras Prosas, Crónicas Portuenses e Literatura Hoje, vão refletir. Nesta altura dedica‑se também ao jornalismo, como crítico literário, no Jornal do Porto. Estas duas atividades — a pedagógica e a jornalística — manifestam dois vetores essenciais do seu pensamento, escrita e modo de ação. Através de toda a obra de Ramalho Ortigão deteta‑se duas preocupações fundamentais: ensinar a ver, a apreciar, a viver, se possível a rir ao maior número de pessoas; não se encontra na escrita de Ramalho Ortigão a preocupação duma elaboração teórico-poiética, pelo contrário, deparamo-nos antes com um corpus fragmentado e fragmentário de instituições, impressões e sensações, inerente a uma escrita jornalística.
Em 1866, Ramalho interveio na Questão Coimbrã, também conhecida como Questão do Bom Senso e Bom Gosto, que opôs a nova geração inconformista e moderna, liderada por Antero de Quental e Teófilo Braga, ao seu contraponto imobilista e retrógrado de que António Feliciano de Castilho é o representante. O contributo de Ramalho surge no folheto «Literatura de Hoje». Embora a sintonia imediata seja com os mais novos, tenta, como vai sendo seu hábito, a imparcialidade, o juste milieu — o que não agradou nem a Castilho, que dele desconfia, e muito menos a Antero, a quem Ramalho apodou de cobarde por ter insultado um velho escritor. Por este motivo Ramalho e Antero debatem‑se em duelo no Jardim Arca d’Água, no Porto, ficando Ramalho Ortigão inexplicavelmente ferido e vencido.
O casamento tranquilo e sensato com D. Emília de Araújo Vieira, em 1857, contribui para a desejada estabilidade, assegurada desde então pela companheira que curiosamente parece nada ter influído na sua vida criativa. Já o nascimento e educação dos filhos, Vasco, Berta e Maria Feliciana, são uma referência se não constante, pelo menos decisiva na sua obra. Refere a propósito do nascimento do primeiro filho:
«Peguei-lhe com um cuidado religioso nos seus pezinhos papudos, redondos, de unhas pequenas como cabeças de alfinete e calcei-os em enorme alpergatas de sôfregos e esprepitosos beijos. Há bastantes anos que isso foi. Desde então e até hoje a impressão que me produziam as crianças modificou-se singularmente: não vejo uma que não me lembre de que ela deu a seu pai uma comoção igual à que eu tive.»
Em 1867 vai a Paris, à Exposição Universal, e dessa viagem resulta o livro Em Paris, o primeiro de uma série de livros de viagens. Entretanto, Ramalho Ortigão não se sente plenamente satisfeito. O ambiente portuense não lhe é favorável, quer em termos económicos, quer em termos psicológicos:
«Devo aos literatos de Lisboa provas de consideração e estima que os meus patrícios nunca jamais me fizeram mercê.»
Quando surgiu uma hipótese para oficial da Academia das Ciências de Lisboa, pega na mulher «nos tarecos e nos pequenos», palavras suas, e transfere-se para Lisboa, onde passa a residir. E é aí que se dá a ligação a Eça de Queirós. Eça e Ramalho Ortigão propõem-nos o riso como lenitivo e dão-nos em 1870 O Mistério da Estrada de Sintra, pioneiro de um género, o policial. Embora seja, no dizer dos seus autores, em prefácio de 1884 um:
«(…) romance execrável… porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr, e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar. Mas é o testemunho da íntima confraternidade de dois antigos homens de letras resistindo a vinte anos de provocação nos contactos de uma sociedade que por todos os lados se dissolve.»
Ainda em 1870, publica uma série de curiosas historietas a que dará o nome de Histórias cor-de-rosa e inicia a publicação de Correio de Hoje. Fruto da confraternidade com Eça, surgem, no ano seguinte, os primeiros folhetos de As Farpas, uma verdadeira pedrada no marasmo da sociedade de então. A colaboração de Eça de Queirós, breve como veremos, ficará resumida a dois volumes que entretanto serão compilados sob o título: Uma Campanha Alegre.
Nesse emblemático ano de 1871 realizam-se as «Conferências do Casino», em plena agitação político-social europeia de que a «Comuna de Paris» é o paradigma. Ramalho Ortigão não participou diretamente, embora estivesse estreitamente ligado por laços de convívio e amizades aos seus principais promotores. Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis, Salomão Saragga Leal, e um largo etecetera, reuniam-se num Cenáculo literário em Lisboa. Ortigão descreveu nas Farpas esse Cenáculo de forma saborosa e nostálgica:
«Era uma pequena reunião de rapazes em sessão permanente em casa de Antero. Uns passavam lá o dia. Outros iam lá ficar de noite. Todos ali tinham os melhores dos seus livros, as suas notas, as suas provisões de princípios e de tabaco.»
Em 1872, com a partida de Eça de Queirós para Havana, no exercício do seu primeiro cargo consular no estrangeiro, Ramalho incumbe-se sozinho da redação das Farpas e imprime-lhes um cunho pessoal. Se com Eça as Farpas tinham um pendor mais demolidor e sarcástico, com Ramalho observa-se um pendor mais declaradamente pedagógico. A elas dedica Ramalho Ortigão grande parte da sua vida, nelas se consubstanciam as qualidades e os defeitos do homem e do escritor. Foram reunidas posteriormente em quinze volumes, além de um volume intitulado Últimas Farpas e de dois outros volumes a que se chamaram Farpas Esquecidas.
Durante os dezassete anos de publicação das Farpas processa-se uma evolução no pensamento e ideário de Ramalho, comum aliás a outros membros da geração de 70, de que ele faz parte, e que se traduz num certo retorno às raízes, ao regionalismo, ao culto da tradição, numa clara influência naturalista e positivista (de Taine em particular) e de num nacionalismo empenhado que tem como metáfora viva os «Vencidos da Vida», grupo jantante também conhecido pelos onze do Hotel Bragança e ao qual Ramalho pertencia. Para trás ficava o «Cenáculo», reformador e realista, cosmopolita e anticlerical, de claro recorte proudhoniano. Nos anos 80 e 90 o programa já era definitivamente outro. As Farpas não esgotavam porém o tempo e o espaço criativo de Ramalho Ortigão.
«A cidade então é pequena e o passeio é pouco. Quer-se viagem, a liberdade, a largueza da terra, a vastidão do mar e a amplidão do céu — o mundo!»
O prazer das viagens, tão ao gosto de oitocentos e produtor de abundante literatura, encontra em Ramalho Ortigão uma ressonância ávida. Numa linha marcadamente regionalista, de conhecimento do país profundo, publicou respetivamente Banhos de Caldas e Águas Minerais e um guia do banhista e do viajante que adotou o título genérico de Praias de Portugal.
Quanto às viagens que faz ao estrangeiro resultam sempre num estudo de civilização comparada. Além da comparação o principal motivo para as suas cada vez mais frequentes deslocações lá fora residia na procura do prazer estético, que lograva como objetivo supremo de vida.
Assim, por terras de Espanha deixa-nos descrita uma ida ao Museu do Prado, que visita com sentido religioso de um cristão a visitar lugares sagrados. Em Itália, Ramalho extasia-se perante Roma, que considera a mais perene fonte de informação relativa à história da cultura e do poder mental da humanidade, e à Sicília considera-a:
«(…) a síntese estratificada de todas as raças e de todas as civilizações que o maravilhoso poder civilizador romano fundiu e latinizou.»
À Inglaterra dedica o livro Jonh Bull, não se eximindo de exprimir uma atitude crítica à sobranceria inglesa nas relações entre os dois países, e que o «Ultimato» viria de resto a validar. Em 1883, dá-nos com Holanda o seu melhor livro de viagens que alguns consideram ser a sua obra-prima. Para o pedagogo ativo e esclarecido que era, para o burguês civilizado que nunca deixou de ser, a Holanda não pode deixar de representar o paradigma e a mítica referência, a lição e o exemplo fecundo nos domínios social, económico, político e cultural e que Ramalho não desistia de procurar para o seu país. É ainda em viagem, em Veneza, que recebe a notícia da morte de Eça de Queirós.
«O mais amado, o mais fiel, o mais honrado companheiro da melhor parte da minha vida.»
Com a morte dos amigos mais próximos, Oliveira Martins, seu vizinho da Calçada dos Caetanos, em 1894 e de Eça de Queirós em 1900, os anos heroicos — os da melhor parte da sua vida — estavam de facto a acabar.
«Envelhecer não é mais do que isto: acharmo-nos no mundo sem uma missão a cumprir.»
Há que referir ainda um outro aspeto em que Ramalho Ortigão foi notável: o seu intuitivo dom de crítico de arte, talvez o primeiro a surgir em Portugal, patente em muitas páginas dos seus livros, nomeadamente em O Culto da Arte em Portugal, de 1896.
Os estudos consagrados, por exemplo, a Silva Porto, Malhoa e Soares dos Reis, continuam saudavelmente atuais, desmentindo por isso um pouco do excesso de modéstia ramalhiana:
«Em vez de crítico de arte sou apenas um simples e modesto artista de crítica, sou um comunicador de impressões pessoais, um viajante que passa, através do seu tempo, contando coisas que viu e dizendo os sentimentos que algumas dessas coisas lhe inspiraram. O meu grande mal é não me interessar especialmente por uma coisa só, qualquer que ela seja, porque me interesso completamente e absolutamente por tudo. A indigente multiplicidade dos meus pontos de vista inabilita-me para o especialismo. Os estudos de arte são talvez o objeto principal das minhas curiosidades. Mas a par disso tenho vocações secretas para outros modos de vida: almocreve por exemplo, marítimo, ferro-velho, jogador de pau, passarinheiro, homem de força e poeta lírico. Desta minha complexidade de tendências resulta uma libertinagem de ideias, em que o público vê, algumas vezes, falta de lógica, e os poderes constituídos veem sempre repreensível excesso de fantasia e irreverente abuso de pilhéria.»
Igualmente fecundo, o seu interesse pelas artes decorativas, marca um momento importante na valorização do património artístico nacional. A organização do cortejo festivo das comemorações do terceiro centenário da morte de Luís de Camões, em 1880, são bem o exemplo desse seu gosto pelo «bibelot» aliado a uma apetência pelo fausto e pelo luxo que a sua natureza exuberante e festiva naturalmente reclamava.
É resignado com a aproximação da velhice que encontramos Ramalho Ortigão, em 1904, a agradecer a um familiar os votos de parabéns pela passagem do seu sexagésimo sexto aniversário:
«A vida é uma coisa tão contingente e tão frágil que bem a podemos comparar a ovos em peneira que cada vivente tenha de trazer por entre os encontrões dum arraial. Chegar à minha idade com ovos inteiros, é a prova de habilidade em os não ter deixado quebrar e de mansidão em não ter atirado com eles à cara de ninguém.»
Desaparecida a maioria dos seus amigos de juventude, que o acompanharam da juventude criativa do «Cenáculo» à maturidade digestiva de «Os Vencidos da Vida», Ramalho empenha-se pela primeira vez num projeto de regeneração política, o «franquismo». Perante a derrocada do sistema constitucional, o autoritarismo de João Franco surgiu como a última hipótese de salvaguarda duma monarquia que Ramalho Ortigão contribuíra para denunciar nos seus aspetos mais inaceitáveis.
Dá-se então, em 1908, o regicídio, que Ramalho sente de forma particularmente aguda. A morte do rei D. Carlos I, seu amigo pessoal e grande artista, inspira-lhe o texto «Dom Carlos Martirizado». A Implantação da República, em 1910, fá-lo escrever a outro amigo, Teófilo Braga, a quem pede, de imediato, a demissão do cargo de bibliotecário do Palácio da Ajuda, para o qual havia sido nomeado pela Casa de Bragança. Profundamente cético em relação ao desenrolar do processo republicano, Ramalho exila-se voluntariamente em Paris, de onde regressa em 1912. É completamente desinteressado do rumo político‑social do país, como seria de prever, em paz com Deus e os homens, como seria de esperar, e rodeado de toda a família, como seria de desejar, que morre aos 79 anos José Duarte Ramalho Ortigão.
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Ramalho Ortigão, de autoria de Ana João Ortigão de Oliveira.