Ó meu amigo, o máximo favor que um
português pode receber do céu é endoidecer,
na véspera de fazer-se escritor público!
Vinte Horas de Liteira , de Camilo Castelo Branco, é o mais recente título da coleção «Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa», coordenada pelo académico Carlos Reis.
O presente volume conta com uma Introdução e Nota Bibliográfica de Maria Fernanda de Abreu, professora aposentada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa) e investigadora integrada do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar. Maria Fernanda de Abreu é ainda autora de diversos estudos de temática camiliana e de um doutoramento sobre Cervantes no Romantismo Português. Cavaleiros Andantes, Manuscritos Encontrados e Gargalhadas Moralíssimas (1994), é também membro de honra da Asociación de Cervantistas e membro correspondente da Real Academia Española.
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Fac simile da folha de rosto da 1.ª edição de Vinte Horas de Liteira.
Porto: Typographia do Commercio, 1864.
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Em Vinte Horas de Liteira, Camilo Castelo Branco desenvolve uma reflexão em regime dialógico, acerca da literatura, da narrativa e de diversos aspetos da sua composição. É em viagem com o amigo António Joaquim, durante vinte horas balanceadas numa liteira, que o romancista ouve histórias e responde com comentários e com o testemunho da sua experiência literária.
No trajeto que vai desde uma aldeia perdida no Marão até ao Porto, encena-se a cumplicidade existente entre o movimento da viagem e o ato de contar histórias; além disso, a loquacidade de António Joaquim e as vivências pessoais que ele convoca estimulam o debate sobre questões prementes para o ofício de escritor (p. ex., a dialética entre imaginação e prática de vida), num tempo em que começam a manifestar-se as exigências representacionais do realismo em emergência.
O progresso é uma voragem!
A liteira já se debate nas fauces do monstro. Vai cair a fatal hora! Daqui a pouco, a liteira, desaparecerá da face da
Europa.
O derradeiro refúgio da anciã era Portugal. Nem aqui a deixaram neste museu de antigualhas! Nem aqui! A pobrezinha, a decrépita, coberta do pó e suor de sete séculos, tirita estarrecida de pavor, escutando o hórrido fremir do wagon, que bate as crepitantes asas de infernal hipogrifo.
Ao passo que o vapor talava os plainos, galgava ela, espavorida, os desfiladeiros para esconder‑ se. Mas o camartelo e o rodo escalaram o agro e penhascoso das serras, e a liteira, acossada pelo char‑a‑bancs, sumiu‑se ainda nas veredas pedregosas, e acoitou‑se à sombra do solar alcantilado e inacessível ao rodar da sege.
É aí que a coeva do Portugal das crónicas se estorce e vasqueja no último alento.
A terra de D. João I e Nuno Álvares agoniza com a liteira de João das Regras e Pedro Ossem!
Volvidos doze anos, a liteira de alquilaria será uma tradição, nem sequer perpetuada na gravura. No recanto de alguma cavalariça de palacete provincial, apodrecerão ainda as relíquias da liteira fidalga; mas esta não é a liteira posta em holocausto ao macadame, à diligência, à mala‑posta, e ao carril. A liteira sacrificada, a liteira dos dois machos pujantes e das cinquenta campainhas estrídulas, essa é a que se vai de uma assentada, desfeita à serra e enxó para remendos de ignóbeis carrinhos e carroções. Esta é que é a liteira das minhas saudades, porque se embalaram nela as minhas primeiras peregrinações; porque, dos postigos de uma, vi eu, fora das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas; porque o tilintar das suas campainhas me alegrava o ânimo, quando a toada festiva me interrompia as cogitações da tarde por essas estradas do Minho e Tras‑os‑Montes; porque finalmente foi numa liteira que eu encontrei o livro, que o leitor, com a sua paciente benevolência, vai folhear.
in Vinte Horas de Liteira
Camilo Castelo Branco (1825 – 1890) é uma das mais ricas e complexas personalidades da nossa história literária. Em conjugação com uma biografia pessoal recheada de incidentes que, por vezes, parecem saídos de algum dos seus relatos, Camilo iniciou o seu trajeto literário no quadro do romantismo, em meados do século XIX.
A partir daí, veio a ser um dos primeiros escritores que viveram da literatura, o que frequentemente lhe exigiu reajustamentos, em função do evoluir das modas literárias do tempo. Do mesmo modo, a produção camiliana é muito abundante e diversificada, embora com predomínio do romance e da novela. Tendo privilegiado temas passionais com forte efeito emotivo (o Amor de Perdição é disso mesmo o exemplo mais notório), Camilo soube também problematizar, em contexto ficcional, a própria literatura, os seus protocolos e a sua projeção sobre o público. A obra que agora se publica é disso mesmo um testemunho evidente.