Escrito por Léo Cote
Quando abrimos a leitura de Marizza de Mélio Tinga, sentimo-nos projectados para determinados campos figurativos, aparecendo então como um mundo mental e intimista feito de fragmentos de imagens, emoções, pensamentos e de discursos, tanto no plano do discurso em si como no do domínio da história. Surgindo como um tecido abstracto que torna difícil a apreensão objectiva da história e da trama narrativa, levando a consequências que nos empurram a leituras erróneas ou a sombras que se formam nesse acto.
Era, pelo menos, necessário sublinhar estas distorções para mostrar sob a sua verdadeira luz os limites ou as sombras que o jogo ficcional, em Marizza, impõe. O que não quer dizer, bem entendido, que o autor deste artigo, tenha se deixado cegar pelos artifícios, que parecem encobrir os elementos e relações e correlações dignas de interesse. Uma vez que Marizza não se movimenta dentro de uma só acção, mas numa pletora de acções que se revezam nos mais diferentes níveis de tom e de realismo intimista.
Marizza não tem nada de conservador, antes destroça os quadros sócio-literários existentes, ao mesmo tempo que os recupera e prolonga, assim mostrando que esta não aponta para um género literário novo mas sim, para uma forma nova de o conceber e sugerir o ser ou o não-ser de sua anatomia, enquanto lugar poroso.
Uma crítica desta natureza destina-se precisamente a delucidar devidamente uma outra particularidade de Marizza e que faz desta obra alguma coisa de novo na literatura moçambicana. Para ser breve, diremos que o autor faz de Marizza uma mistura formada por uma ética do eu e uma epistemologia do Outro, como um prolongamento de si e do seu alter ego, numa projeção do ser, do ponto de vista ontológico. Na medida em que Marizza é dada a conhecer a partir do enfoque do narrador, que fala na primeira pessoa, ao desdobrar o seu eu e ao deixar o Outro desdobrar-se no discurso e em discurso, em confusão e/ou não. Afinal, “Quando mais distante, o seu rosto tornava-se nítido e letal, incomodava, uma música que nos irrita a audição. A memória de sua voz desfazia os sons reais” (Tinga, 2021: 34).
Já pela forma como trata e singulariza os elementos e relações, em Marizza, o problema do estilo e/ou da linguagem coloca-se de maneira totalmente nova. Isto se compararmos Marizza com as anteriores obras do Mélio Tinga, que são narrativas de menor fôlego, ainda que esta última mantenha parte das obsessões estético-literários do autor. Ainda em Marizza, este bastidor é conservado pela figura do autor e pelo efeito de Marizza, o bastidor, porém, cinge um domínio imenso.
Todavia, a unidade da narrativa é convincente. Descansa sobre o leitmotiv que anima a trama da narrativa: Marizza e toda uma problemática da linguagem e da criação literária. A ordem da unidade estilística e/ou da linguagem, em princípio, assim como Mélio Tinga no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata no discurso, na repartição do seu corpo narrativo e suas subdivisões.
Para compreender, agora, de forma prática, de que maneira a unidade da linguagem e da narrativa se realiza como unidade do estilo, devemos voltar ao nosso texto. A vida amorosa de Marizza e de Motta chegou a um impasse, a mudança que daí resultará está dependente da forma como o nó se vai desatar, o diálogo que surge entre eles é colocado de forma que possam ser reconhecidos, que possam exprimir-se e sofrer, possuem certos conhecimentos do passado e do futuro, que preveem, e que ultrapassa a situação em que estão envolvidos. Este é o motivo da hesitação de Motta diante da notícia da gravidez de Marizza, até porque afinal, ele é casado.
É por isso que Marizza e toda a problemática da linguagem e da criação literária enquanto leitmotiv da obra determina a forma e o conteúdo do devir desta, sendo “o sintoma de uma laceração entre o interior e o exterior, significativa de uma diferença essencial entre o eu e o mundo, de uma não-adequação entre a alma e a acção” (Lukács, s/d: 25). Assim, Marizza e a problemática da linguagem e da criação literária são as duas faces de uma mesma moeda, embora a primeira o possa arrastar para a queda e a segunda o possa elevar para o cimo do monte. Não apenas como catharsis, da obra que a personagem central se dedica a escrever. Estando potencialmente entre o caos e o equilíbrio, entre o momentâneo e o destino, entre a aventura amorosa e a segurança do lar, etc., colocando Motta em laceração interior, e em não-adequação com o fantasma que o persegue como inevitável realidade.
Aqui o momento fugaz e profundo que Motta teve com Marizza e o acto de criação literária são os elementos que funcionam como pivot de todo o tecido narrativo e de toda elocução. Assim, por um lado, o erro só pode ser por excesso ou por insuficiência, falta de medida ou de discernimento, que separa o homem natural e o intelectual (escritor), e que põe uma pedra no meio do caminho; já o acerto é o acto de sorguer os véus da linguagem e da criação literária, como se devesse este purificá-lo e afastar-lhe do erro (pecado), aproximando o Motta da substância do ser e do destino, ainda que, muitas vezes, se esquiva a fazê-lo. Descobrindo em sua peroração a evidência de “que entre o saber e o fazer, entre a alma e as estruturas, entre o eu e o mundo”, se cavam abismos que empurram a reflexão e/ou para “onde a beleza manifesta o sentido do mundo” (Lukács, s/d: 31). Como se para nos apresentar a incoerência estrutural do homem.
Esta metamorfose dos pontos de (des)orientação, em Marizza, submete as formas literárias a uma dialéctica histórico-sócio-literária que, conforme a natureza do género de que a obra faz parte, só se vê transmutada pelo jogo da paródia que esta estabelece com a narrativa científica, na alusão à técnica de incorporação de roda-pés, que aparecem então como meras modificações formais que se repercutem nos menores pormenores técnicos da obra, por dar a ideia deste não tocar nos elementos e relações fundamentais da sua estrutura. Não estamos aqui a pensar num artifício susceptível de provocar a aparição de um novo género. É já discernível, a metamorfose desta ordem na evolução estético-literária de Mélio Tinga, nas obras anteriores (O Voo dos Fantasmas, 2018, e Engenharia da Morte, 2020), que aqui atinge um pico problemático para que, em Marizza, o roda-pé deixe de ser escolástico e/ou académico, para incorporar indícios e lacunas que estabelecem correlações com a história, influindo no desenlace desta e do discurso que a enforma. Assim o papel deste artifício é o de forçar o conjunto a orientar-se para um fim novo, distinto do(s) antigo(s). O que vale dizer, aqui copiando Lukács (s/d: 38), “que o antigo paralelismo transcendental entre o sujeito criador e o mundo exteriorizado das formas criadas se encontra também quebrado e que os últimos fundamentos do acto da criação estão exilados da sua pátria”. Assim se explica que o conto tenha sido deixado de lado e cedido lugar a um género literário novo: o romance.
É assim que o(s) roda-pé(s) sabe(m) fazer ressoar através dos seus verbetes o significado e o efeito estético que o conjunto encena, unindo em si, sem se destroçar a si mesmo, tanto as vozes interiores do narrador – que vislumbram um destino trágico, daí a esquiva – como as vozes de um destino que transcende a razão. A coroa gravitacional da obra toma à sua conta todo o lirismo da(s) situação(ões) e do desenlace, deixando Motta, as palavras e as acções numa dialéctica de quase tragédia, ao colocar as situações a nu através de delicadas transições. À Marizza, embora distante, não desaparece e tem a força de realidade, mantendo-se presente em cada gesto mental, em cada tensão ansiosa que, invisível e irónica, determina-a e torna-se então necessária que a confusão de uma acção, sobrecarregada por todo o peso da vida, que se eleva a pouco a pouco na clara chama do seu destino, que reduz a cinza tudo aquilo que é apenas humano e os móbeis do Motta se transmudam em paixões trágicas e, neste ardente cadinho, faz-se ele herói problemático, ao cindir o drama em duas metades absolutamente heterogéneas que não têm outro laço entre elas que não seja a sua negação e a sua exclusão recíprocas. É assim, o longo caminho que o herói tem de percorrer no interior do seu próprio espírito e no conjunto das acções e peripécias encenadas na obra.
Não é por acaso que o narrador e o personagem central de Marizza se põem “por várias vezes a pensar sobre o quão isso me deixa desequilibrado, e me questiono sobre o que preciso para ser verdadeiramente um homem feliz, se a vontade carnal me persegue faminta e a ordem social está lá.” (Tinga, s/d:95), e se repõe a dizer, em parte posterior que “As palavras se constrõem dentro de nós como um edifício. Como um corpo. As palavras são do mais sólido que há.” (Tinga, s/d:96), como se nos dissesse que não apenas a ignorância é assolada, evitando nos precipitarmos à loucura, mas o ser e o destino é questionado e colocado sobre assalto, assim permitindo-nos, na melhor das possibilidades, melhorar o que somos, as nossas acções e comportamento, deixando-nos vivos. “Com esperança e sonhos”. Afinal, “É isso o que fazem os bons livros.” (Tinga, s/d: 96).
Em Marizza, Mélio Tinga coloca a vida como o suporte do sentido, como condição prévia do mundo de papel, como motor da existência das personagens, onde a solidão, sobretudo, a de Motta se constitui como a essência própria do trágico e/ou da tragédia. E todavia a forma de expressão do drama, o monólogo interior e/ou a corrente mental, supõe um elevado grau de comunhão no herói solitário, entre o drama existencial e a corrente da história e em correlação com o destino, em busca de uma solução sempre problemática, ainda que se exprima em lirismo dramático. É por isso que Motta, e Marizza (que se captam a partir de indícios externos) se encontram numa situação e num mundo sem dúvida problemática(o), em que o lirismo dá forma à totalidade extensiva, e o drama dá forma à totalidade intensiva do ser e do destino (em devir ou não), como se nos dissesse que não podem os superar a vida em sua manifestação sensível, a sua riqueza e a sua ordem. Embora o transcendente se misture inextricavelmente à existência de papel e o que possui de inimitável assenta exactamente no seu perfeito bom êxito de o tornar imanente.
Essa ligação indestrutível com a existência e com a estrutura efectiva do real, fronteira decisiva entre a história e o drama de Motta e de Marizza, resulta necessariamente do facto de o objecto de qualquer narrativa literária não ser mais do que a vida e o jogo ficcional e do verosímil, isto é, por meio da força da forma e da palavra, até porque os seus modos como os seus conteúdos são assim determinados pelas virtualidades internas dessa força, como diria Lukács (s/d: 45). Aqui chegamos ao mais surpreendente, ao paradoxal naquilo que chamamos de realismo intimista, porque a sorte das personagens parece pertencer a sua historicidade, a sua mutação e o seu desdobramento. A realidade das aparições de Motta e Marizza é percebida na situação na qual se encontram e nas suas manifestações, onde a sua essência pessoal aparece com toda força. Isto é especialmente claro no caso de Motta e de Marizza por estarem envolvidos sob o mesmo manto, como indivíduos de carácter diferente, de diferente situação e de diferentes tendências, sendo os dois opostos em enérgico conflito e sofrendo a mesma pena, só no sentido objevtivo, ao revelarem, por gestos e palavras, a essência última de cada um deles, quando apanhados por forte contrariedade.
Motta é, no meio a trama narrativa, o mais visível, pois é igualmente narrador e a personagem central do livro, embora o título aponte noutro sentido, a história nos é dada a partir do enfoque deste, ainda que haja, aqui e ali, um momento em que este foco se rompe, introduzindo uma descontinuidade e suspendendo aquele cadinho de história, atravessando o texto inundado pela presença de Marizza e da problemática da linguagem e da criação literária, perseguido Motta pelo(s) seu(s) erro(s), que o fez sentir tão ardentemente o seu amor pela esposa, o seu amor pelo lar doce lar e pelo seu filho a caminho, ainda que, em parte, tudo isso se apresente inútil. Uma circunstância que o leva a se exprimir com extrema intensidade e que introduz instantes de dramática historicidade. E, além do mais, o papel de Marizza, na narrativa, só é compreensível a partir desta pressuposição, isto é, do desamparo que é vivido tanto por um como por outro, ainda que não tenhamos muita informação relativa a situação da Marizza a partir da sua própria elocução e/ou narração. Chegando-nos sempre em segunda mão, ou em reação a interpelação de Motta, como em:
«Não esperava isso de ti. Foste tao bom. Mas depois…». Parecia procurar pelas próprias palavras certas. «Mas depois me largaste no meio das águas».
«…»
«És um caos.»
«Não queria que as coisas fossem assim.»
«Nada disso. Não pareces o mesmo homem.» (Tinga, 2021: 126)
O lirismo em Marizza constitui a última unidade narrativa; não é exaltação de um eu solitário, mas sim a exaltação das revira-voltas do eu e/ou do sofrimento do eu ante uma paisagem que o rodeia e interpela, daí sentir-se, em Marizza, um descorrer da obra em sensações e em estados de alma, que fazem do fragmento da vida um caudal significativo e sígnico, implodindo a força do lirismo imediato e manante, entre a fugaz e voraz relação de Marizza com Motta e a segurança do lar e da mulher de Motta (Anatole), que se institui como uma totalidade da vida com as suas ameaças, ao lirismo que cresce de página em página. Não é por acaso que Marizza se apodera de todo o fluir da narrativa, ao dar sentido e vida. Diríamos que, em Marizza, “não é a totalidade da vida que recebe forma, mas a relação, a atitude reprovadora ou aprovadora do escritor perante esta toatalidade”. Até porque, afinal, Tinga ao traçar “em torno daquilo que a título de mundo separou e circunscreveu perfeitamente só determina os próprios limites da sua subjectividade e não os de um cosmos completo em si” (Lukács, s/d: 51). Uma vez que, em Marizza, tal como na grande arte épica para Lukács (s/d: 52), “toda a subjectividade criadora se torna lírica e participa sozinha na graça, na revelação do todo, aquela que se contenta em acolher”, ao permitir-lhe ordenar tudo, tudo figurar em função de Marizza e de toda a trama e drama que daí se constrói e o que daí adveio, graças ao problema da infidelidade de Motta e da gravidez de Marizza, sempre num jogo de mimos com a problemática da linguagem e da criação literária.
É a partir deste nó que Motta vai sondar os seus abismos se vendo no espelho da sua própria profundidade, dos seus conflitos e dramas a ponto de desafiar todas as comparações com a vida, que a estilização lírica, em Marizza, realiza com uma evidência cintilante, como a recusar uma certa intenção trágica no sentido normativo do termo. E, a despeito de toda a finura psicológica, de todo o cuidado com que são adornadas liricamente as situações, os personagens, etc., de pormenor que denuncia um certo carácter trivial e, simultaneamente, purifica àqueles de trivialidade e a prosódia de Tinga não faz mais do que abrir os gomos deste fruto já pronto a rebentar. Como se Tinga procurasse descobrir e edificar a totalidade secreta da vida, pois Motta, afinal, objectiva‑se mais psicologicamente e sempre em busca, nessa trama que se desenha e se ordena a partir dessa teodiceia em que o crime e o castigo pesam e interferem no destino ou no desenlace da história, ou ao representar, por exemplo, à agonia de uma alma que se consome no seu próprio fogo. Até porque, segundo Lukács (s/d: 61), “a desaparição de todo o fim evidente, a desorientacao decisiva da vida inteira tornam-se necessariamente, para todas as personagens e para todos os acontecimentos o fundamento de todo o edifício o apriorístico modelo constituinte”. Embora seje verdade que pela forma como a narrativa nos é dada, e, regra geral, à parte as enxertias que geram descontinuidades do fluir da história, dê a impressão que “o sujeito que realiza esta experiência se torna o único portador do sentido, a única realidade verdadeira (Lukács, s/d: 63), fazendo pensar que Marizza na passa então de um pano de fundo, sendo a sua voz um simples acompanhamento, apreensível apenas pelos sentidos, sem que a história nos permita aceder a sua interioridade. O que é meia-verdade, se considerarmos os indícios em que a sua aparição, acção, diálogo, etc., deixam, assim nos permitindo aceder, em parte, a sua interioridade. Afinal, a todo um conjunto de sugestões que estas deixam e aprofundam. Até porque tais elementos e relações não são mudos e não ameaçam a unidade da obra, mas a reforçam. Uma vez que, em última instância, assinalam esse lugar cego que o narrador não apreende, a sua zona de ignorância.
Reconhcendo já o perigo com este carácter fundamentalmente abstracto e lírico ameaça a narrativa, tal perigo só é vencido pela unidade que esta institui como totalidade, naquilo que tal mundo tem de frágil e de inacabado, remetendo-a para outra coisa que o excede, e que permite que a unidade e a totalidade se tornem categorias constitutivas, ainda que não reguladoras únicas do universo de papel. Até porque, para Lukács (s/d: 69) no “romance, a totalidade nunca é sistematizável senão a um nível abstracto”.
Toda a forma artística se define pela dissonância metafísica situada no coração da vida, que ela aceita e estrutura como base de uma totalidade acabada em si (Lukács, s/d: 70), a que Mélio Tinga dá vida em Marizza, porque constitui ela “um equilíbrio móvel mas firme entre o devir e o ser”, num jogo em que os personagens e a história, na forma em que é encenada, provocam uma irradiação muito profunda e intensa do homem ou do indivíduo problemático e do sentido da vida.
Sendo a composição romanesca “Uma fusão paradoxal de elementos heterogéneos e descontínuos chamados a constituir-se numa unidade orgânica permanentemente em causa” (Lukács, s/d: 85), tal facto explica a natureza e/ou a anatomia de Marizza, ao se estruturar no jogo formal que encena, como acima nos referimos. Assim, o mundo do papel recebe uma coerência significante e obedece a uma casualidade incompreensível sem o herói dramático Motta (o seu ponto de vista) e o(s) seu(s) fantasma(s): Marizza que vive como experiência no mundo do papel e não como personalidade problemática. O seu próprio drama, o da Marizza, passa a partir das suas acções e reações. E a problemática da linguagem e da criação estético-literária. Fazendo aparecer o enredo entrecortado por outros pequenos fragmentos de vida, que parecem surgir exertados inopinadamente, sem afinidades com a história. No entanto, tal facto é só aparente, uma vez que estes não deixam de ter afinidades, enquanto elementos necessários à obra e à sua unidade. Daí, percebe-se melhor “o carácter demoníaco do individuo problemático [Motta] que parte à aventura [amorosa] mas, ao mesmo tempo, a sua problemática interna manifesta-se com menos clareza” (Lukács, s/d: 99), ao se esbarrar, o herói, com “a superioridade do mundo exterior com o qual se choca”, fazendo que “a relação entre o mundo subjectivo e o mundo objetivo” se torne paradoxal, sem alcançar o ser verdadeiro do mundo exterior, que só o conhecemos e o reconhecemos através das pinceladas que a obra deixa e a nossa experiência e memória, no acto da leitura, nos permite reconstruir, a partir de intriga da narrativa, que no seu jogo de descontinuidades e a sua heterogeneidade, atinge o seu paroxismo.
Marizza ao se concentrar nos problemas da interioridade de Motta força-o a transformar em actos essa interioridade. Não é por acaso que, às vezes, “devido ao facto de o mundo se poder prestar a mal-entendidos resulta a perseverança com a qual o herói passa grotescamente ao lado do real logo que dele se aproxima” (Lukács, s/d: 102). Como se escolhesse, embora, às vezes, sem o saber, o herói, no seio dessa massa os elementos e relações com os quais decide enfrentar-se. Em psicologia reversa ou não.
Mélio Tinga com Marizza soube vencer o perigo de sua empresa “romanesca” falhar, ao descrever da maneira mais luminosa e sensível, um inextricável e profundo entrecruzamento de sublime, de culpa e medo, que ultrapassa o plano do acidente. Este todo, feito de dois mundos, soube Mélio Tinga captá-lo na forma “romanesca” da sua Marizza, esse tecido de sombras, que se sugere como totalidade que se ultrapassa a si mesma – a título de crítica e de paródia – ao reduzir-se a um novo jogo, de uma irónica beleza. Voltando “a encontrar o caminho que leva às fontes histórico-filosóficas desse tipo formal” (Lukács, s/d: 106), e da palavra e estética libertadora, que é, ao mesmo tempo, orientada pelo tempo, em transição, da confusão dos valores sócio-literários e em tensão. E Mélio Tinga, como cristão fiel e autor ingenuamente local a sua arte, alcançou a essência mais profunda da problemática do ser humano, da linguagem e da obra de arte, assim como da necessidade, para o heroísmo de Motta (embora seja culturalmente previsível), ao transformar em culpa e medo, logo que os caminhos pareciam irracionais conduzindo-a a um caos, assim levando-o, logo que estes se tornaram impraticáveis, a apelar para a sua interiodade e racionalidade, ainda que afectado pelo mundo e sua subjectividade, no seu combate com a vida prosaíca. Num jogo de interpenetração entre o lirismo e a ironia, o sublime e grotesco, em tensão fecunda, que é transcendental, “seja que a tenham substituído por uma tensão simplesmente social, seja que tenham encontrado o princípio motor da acção[interior]” (Lukács, s/d: 108); fazendo o personagem e/ou os personagens a pedra central do edifício da obra de arte e do destino desta.
Entretanto, a estratégia de figuração em Marizza, a da focalização a partir da qual parte de todo o mundo de papel se estrutura e se compõem, se pode encarar pelo que ela de facto é: reivindicação de representação do enigma-mulher. Mesmo assumindo essa ignorância relativa a sua complexidade interior, da rede emocional, racional, de empatias, etc., que, muitas vezes, Motta denúncia. Daí Marizza surgir representada, no geral, a partir de suas acções, comportamento e diálogo (com Motta, ou indirectamente a partir do enfoque de um outro personagem, desprovida de contornos psicológicos evidentes e em desenlace propriamente dito. Não é por acaso que Marizza nos surja cheia de ambiguidades por evocar um título, um nome, o leitmotiv de toda a trama, o fantasma de Motta, etc., ao introduzir uma rede de tensões não apenas semânticas, que afectam os diversos planos da obra. Afinal, uma ressignificação e reestetização do outro, a mulher, a partir dessa zona cega (a ignorância) para reagir a um estado de crise da modernidade.
Mas esta victória final da forma é válida para cada uma das propostas narrativas que antecederam esta obra e para Marizza considerada à parte, enquanto unidade, embora a unidade não tenha nascido apenas da forma; “o que faz do todo uma totalidade efectivamente real não é senão o vivido afectivo de um fundo comum da vida e a certeza de que o vivido coincide com o essencial da vida actual” (Lukács, s/d: 113).
Bibliografia
TINGA, Mélio. (2021). Marizza. Lisboa: INCM.
LUKÁCS, Georg. (s/d). A Teoria do Romance. Lisboa: Editorial Presença.
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