Jorge Cândido de Sena nasceu no dia de Finados de 1919, em Lisboa. Era filho de Maria da Luz Teles Grilo e de Augusto Raposo de Sena, comandante da marinha mercante. A sua infância de «filho único e tardio» sem amigos, salvo primos e primas, com quem raramente brincava, muito protegido pela mãe e com um pai largamente ausente, foi extremamente solitária. Com as devidas distâncias entre a ficção e a biografia, o seu conto «Homenagem ao papagaio verde», deixa entrever o ambiente dramático familiar, marcado, do ponto de vista da criança, por uma «solidão acorrentada».
Após os estudos primários no Colégio Vasco da Gama, transfere-se para o Liceu de Camões, onde termina os estudos liceais. Aos 17 anos Jorge de Sena entra para a Escola Naval, a fim de seguir a carreira mais «alta», da Marinha de Guerra, que o pai lhe planeara à nascença. Primeiro classificado do seu curso, o cadete Jorge Cândido de Sena parte, no início de outubro de 1937, para a viagem de instrução no navio-escola Sagres — viagem que lhe proporciona um primeiro contacto com o continente africano, o Brasil, as Canárias, e, acima de tudo, com o mar.
«Para mim o Mar foi o que deve ter sido para muito poucos — uma realidade sonhada certa em muitos anos de criança e depois vivida e perdida em meia dúzia de meses. E perdida porque, com base em razões que eu próprio não soube nem pude dominar, ma fizeram perder.»
A inconformidade de Jorge de Sena com a disciplina militar leva à sua exclusão da Armada, num processo nunca inteiramente esclarecido. Estava-se em pleno período de fascização do Estado Novo, em plena Guerra Civil de Espanha, e da chamada «revolta dos barcos» ou «revolta dos marinheiros», sangrentamente reprimida e de onde sairão prisioneiros para inaugurar o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Tudo isto são vivências que, mais tarde, Jorge de Sena irá transmutar para os seus poemas e para as suas narrativas, como Os Grão-Capitães ou Sinais de Fogo, seu romance póstumo.
Embora escreva desde 1936, Jorge de Sena fixou o ano de 1938 como o ano primeiro da sua criação poética, tomada a partir de um momento determinante: a audição de La Cathédrale Engloutie, de Debussy, que será recordado, mais tarde, no poema homónimo de Arte de Música. Este começo da atividade poética, assim associado à música, merece destaque, uma vez que a música, que Jorge aprendeu na infância, e o confirma no seu destino de poeta, contribuirá, em grande medida, para a estruturação interior do seu fazer poético.
«Foi da música que eu saltei para a poesia.»
A educação musical de Jorge de Sena foi impulsionada pela mãe e desde logo foi motivo de discórdia familiar. Como o próprio recorda em «Castelos e outros Objetos de Influência», um pequeno e humorado texto memorialístico:
«Aprendia piano em especial e música em geral, e compunha improvisos com muitos acordes e dissonâncias, de êxito revolucionário nas reuniões de família ou afins, com exceção do ramo familiar paterno, que achava impróprios destes tempos modernos […] e da dignidade social tais (como outros) devaneios artísticos, que minha mãe apadrinhava e faziam as delícias de um papagaio verde que eu tinha, que andava solto pela casa, com terror de toda a gente por ser uma fera.»
Cortadas as amarras da Marinha de Guerra, e impossibilitado pela família de seguir a Marinha Mercante, o curso de Matemáticas ou um curso de Letras, Jorge de Sena acaba por ingressar na Faculdade de Ciências de Lisboa, em outubro de 1938, a fim de fazer os preparatórios que lhe permitem transitar para a Faculdade de Engenharia do Porto. É aí que obtém a licenciatura em Engenharia Civil, em 1944, o mesmo ano em que lhe morrem, sucessivamente, o pai e a avó materna.
Os anos 40, marcados pela derrota da República Espanhola, pela Segunda Guerra Mundial, pela divisão do globo em dois blocos ideológicos e político-militares antagónicos, e pela consolidação da normalidade da repressão e do medo em Portugal, são particularmente difíceis para Jorge de Sena, e hão de resolver-se, literariamente, na tragédia em verso O Indesejado (António, Rei).
Além das mortes do pai e da avó Isabel, Jorge de Sena vive num estado de constantes dificuldades económicas. Termina o curso com a ajuda financeira de amigos e é afligido por uma série de doenças graves e por um atribulado serviço militar no exército, que lhe proporciona uma nova viagem marítima aos Açores paternos. Tudo isto faz com que só termine o estágio do curso 2 anos depois, em 1946. Ao mesmo tempo cresce o seu envolvimento cívico: ainda oficial miliciano, subscreve listas públicas exigindo eleições livres. Consegue escapar à deportação para o Tarrafal graças à intervenção do diplomata brasileiro Rui Couto.
Em 1947, arranja um primeiro emprego, a prazo, nos Monumentos Nacionais e no ano seguinte entra para a Junta Autónoma de Estradas, onde permanece até se exilar no Brasil. Este trabalho permite-lhe viajar intensamente pelo País, conhecendo de perto a realidade portuguesa, e dá-lhe a estabilidade económica para, a 12 de março de 1949, constituir família com Maria Mécia de Freitas Lopes, com quem teria 9 filhos.
Nos dez conturbados anos que vão da sua estreia literária, nas páginas de Movimento, ao seu casamento com Mécia, Jorge de Sena dá início a uma crescente atividade de crítico, colaborando com as principais revistas e jornais da década. É também crítico de teatro, e ocasionalmente de ópera, sendo cofundador dos Companheiros do Pátio das Comédias. Dá as suas primeiras conferências, dedicadas a Rimbaud, Florbela Espanca, Pessoa e Camões. Estas duas últimas constituem o público anúncio dos estudos a que Jorge de Sena se vinha a dedicar, e que nunca mais abandonará: Luís de Camões, o modelo inspirador, e Fernando Pessoa, de quem organiza as primeiras Páginas de Doutrina Estética, Poemas Ingleses e Livro do Desassossego, que acabará por ter de abandonar, mas cuja introdução é um dos grandes textos que dedicou ao criador dos heterónimos.
Em 1956 funda a Sociedade Portuguesa de Escritores, sob direção de Aquilino Ribeiro, António Sérgio e João de Barros. Dois anos depois, em 1958, adapta ao teatro radiofónico treze textos para o programa de António Pedro, «Romance Policial», no Rádio Clube Português. Colabora com as «Terças-Feiras Clássicas», organizadas pelo Jardim Universitário de Belas-Artes, no cinema Tivoli, onde faz comentários de filmes. Jorge de Sena dedicar-se-á também à tradução, centrada em autores de língua inglesa (ainda que não exclusivamente). O fascínio de Jorge de Sena pela Inglaterra — país que visitou pela primeira vez, em 1952, para um estágio de engenharia na Blackwood Hodge — perpassa em toda a sua obra. Desde A Literatura Inglesa aos estudos que deixou sobre Shakespeare — que, juntamente com Keats e Wordsworth — é um dos poetas anglófonos que mais estimou. Na poesia Jorge de Sena estreia-se, 1942, com Perseguição. Nos anos seguintes, seguir-se-ão Coroa da Terra, Pedra Filosofal e As Evidências. Jorge de Sena publica também teatro, nomeadamente Amparo de mãe e Ulisseia adúltera.
A 12 de março de 1959 Jorge de Sena vê-se envolvido no frustrado «Golpe da Sé», contra a ditadura. No governo provisório ocuparia o cargo de ministro das obras públicas. E são previsíveis consequências da gorada conspiração revolucionária. Face a um convite do governo brasileiro para participar como relator no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, organizado pela Universidade da Bahia, Sena aproveita a ocasião para se exilar no Brasil, em agosto desse ano. Perto de fazer 40 anos, Jorge de Sena muda corajosa e radicalmente a sua vida, conquistando a profissão de professor universitário, que era vocação sua.
Após uma série de entraves e peripécias, que lhe requerem a cidadania brasileira, é com Luís de Camões que Jorge de Sena finalmente obtém o título de Doutor em Letras e de Docente Livre de Literatura Portuguesa. A tese, «Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular», é defendida em outubro de 1964, em Araraquara (ou a «morada do sol», em tupi-guarani).
O golpe militar brasileiro desse ano e a onda de perseguições que se lhe seguiu faz com que Sena aceite um convite da Universidade do Winscontin, em Madison, transferindo-se para os Estados Unidos da América, em outubro de 1965. Dois anos depois é nomeado catedrático do Departamento de Espanhol e Português. A mudança de Jorge de Sena, do Brasil para os Estados Unidos fica marcada por um dos mais radicais poemas de exílio da poesia portuguesa: «Em Creta, com o Minotauro». Numa entrevista concedida, em Paris, ao Diário de Lisboa, nas vésperas do seu primeiro regresso a Portugal, procura equacionar a questão de um modo compreensivo e, talvez, apaziguador:
«[…] eu sou um homem visceralmente de exílio, […] que chegou à conclusão que se sente mal no mundo, embora ache que não há outro. E daí eu ter concluído que devemos ser sempre de todos os lugares que nos acolhem. Sem que isso ponha a questão […] da nossa nacionalidade profunda, que é aquela da cultura a que nós pertencemos. Tudo o mais acho que são questões de passaporte… […] mas tem determinadas consequências de ordem moral: obriga pelo menos moralmente a uma lealdade para com os países a quem a gente pertence!»
Entre setembro de 1968 e fevereiro de 1969, Jorge de Sena regressa, então, pela primeira vez à Europa, e a Portugal após nove anos de exílio. O regresso foi precedido pela publicação, em abril, de um número especial de O Tempo e o Modo, dedicado à sua obra, gesto singular de receção de um poeta vivo. A despedida de Portugal após essa breve estada é relatada em carta a Eugénio de Andrade e fala por si:
«Querido Eugénio,
Trago muitas e cruciantes saudades. Não direi da minha casa que me pareceu encolhida e desconfortável; não direi do país que me entristeceu profundamente, com o seu ar de decadência enxovalhada, a amargura dos melhores, e a resignação dos pequenos mas dos amigos que é quase impensável para mim que não possa rever a bel-prazer.»
Em 1970, Jorge de Sena transfere-se para a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, como catedrático de literatura portuguesa e brasileira e de literatura comparada, chefiando, a partir de 1974, o Departamento de Espanhol e Português. Em março de 1976, Jorge de Sena sofre um violento ataque cardíaco, que acende todos os alarmes, trazendo a preocupação com a posteridade da sua obra, que começa a organizar com um sentido de urgência. O seu último poema é, justamente, um «Aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males».
E Jorge de Sena tinha já uma obra gigantesca. Excluindo desde já as avultadas páginas de crítica, de história e de ensaio, bem como poemas e contos individuais, no domínio da poesia, destaque para Metamorfoses e Conheço o Sal. Destaque também para a novela O Físico Prodigioso e para os contos Antigas e Novas Andanças do Demónio. Em 1977 sairia o volume de poemas Sobre Esta Praia e em edição póstuma os romances Sinais de Fogo, Génesis e Monte Cativo.
Jorge de Sena morre, em Santa Bárbara, na Califórnia, a 4 de junho, vítima de um cancro tardiamente diagnosticado. Tinha 58 anos. Um ano antes estivera na Sicília para receber o Prémio Internacional de Poesia Etna Taormina, atribuído ao conjunto da sua obra poética. Ao receber o Prémio, Jorge de Sena disse da sua poesia o que podemos dizer, em suma, de toda a sua obra:
«A minha poesia nada tem de patriótica ou de nacionalista, e eu sempre me quis e me fiz um cidadão do mundo, no tempo e no espaço. É uma poesia que sabe de tudo e que se escreveu em toda a parte (…) É também a poesia de um homem que viveu muito, sofreu muito, partilhou a vida pelo mundo adiante, sempre exilado, e sempre presente com uma vontade de ferro. Mas é uma poesia que, sempre que se forma, não sabe nada, porque é precisamente a busca ansiosa e desesperada de um sentido que não há, se não formos nós mesmos a criá-lo e a fazê-lo. Quis sempre que essa poesia fosse o testemunho fiel de mim mesmo neste mundo, e do mundo que me deram para viver. Mas uma testemunha que cria no mundo aquele sentido que eu disse, e, ao mesmo tempo, deseja lembrar aos outros que há uns valores essenciais, muito simples: honra, amor, camaradagem, lealdade, honestidade, sem os quais a vida não é possível, e toda a poesia, por mais sábia que seja, é falsa. Uma testemunha de que, sem justiça e sem liberdade, as sociedades humanas não dão ao homem a dignidade que é a sua, e que ao poeta cumpre afirmar. Não uma testemunha passiva: mas ativa. Porque é esse o papel da poesia. Pode ela ser panfleto, ou ser visão mística, ou ser sátira, porque ela pode ser tudo. Mas tem de ser ativa, não só no sentido meramente panfletário, mas no de, herdando tudo o que a Antiguidade e o passado nos legaram, criarmos a língua do presente e a língua do futuro.»
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Jorge de Sena, de autoria de Jorge Fazenda Lourenço.
Livros de e sobre Jorge de Sena publicados na Imprensa Nacional