Ficha
«Durante a angustiosa crise por que a nossa infeliz capital está passando, a imprensa periódica tem tido ocasião de registar numerosas provas do mais acrisolado patriotismo, da mais inegável magnanimidade, da mais corajosa e dedicada abnegação, e finalmente de uma caridade sem limites, e de uma religião sincera e profunda.
O primeiro magistrado da nação, o nosso jovem e ilustrado monarca, deu o exemplo; e esse exemplo, que decerto ficará gravado em caracteres indeléveis nas páginas da nossa história, como nunca se apagará de nossos corações reconhecidos, tem sido admiravelmente imitado. Se o rei de Portugal se há mostrado digno dos heróis de quem descende; o povo de Lisboa não tem revelado menos as nobres qualidades que distinguem a raça portuguesa. Diante do flagelo que assola a metrópole, semeando por toda a parte o luto, a morte e a orfandade, os habitantes de Lisboa, curvando-se todavia resignados aos decretos da providência, souberam encará-lo com o valor que só pode dar a verdadeira piedade. Em todas as hierarquias sociais, desde as mais elevadas até às mais humildes, há muito que admirar; e é de grande consolação poder asseverar-se que os anais da presente epidemia oferecem já uma série de factos que exaltam a nossa terra, honrando a humanidade.
À longa relação de ações generosas de que tem dado notícia a imprensa, permita-se-nos que acrescentemos a que acaba de praticar o distinto cirurgião Duarte Ferreira Severino com a Caixa de Socorros da Imprensa Nacional.
Logo que se manifestou a febre amarela, o conselho administrativo daquela caixa, tomou, como era do seu restrito dever, as providências ao seu alcance para que aos sócios atacados fossem prestados os socorros com a prontidão que a gravidade da moléstia exigia. Neste empenho foi o conselho enérgica e desinteressadamente secundado pelo antigo clínico do monte pio da Imprensa Nacional o benemérito facultativo Bernardino Augusto da Silva Heitor, cujo zelo e solicitude pelos enfermos não pode com efeito ser excedido. Por infelicidade porém o sr. Heitor adoeceu da febre reinante, e o monte pio achou-se de repente privado dos serviços daquele hábil clínico. As circunstâncias eram na realidade muito críticas; apesar das excelentes condições higiénicas em que estão colocadas as oficinas da Imprensa Nacional a epidemia podia deixar de as respeitar, como tem respeitado relativamente; e dado este caso seria difícil acudir, com regularidade, aos sócios enfermos com os necessários e indispensáveis socorros. Nesta aflitiva conjectura [sic] o sr. Duarte Ferreira Severino, informado da situação embaraçosa deste monte pio, e da doença do seu colega Heitor, apesar de se achar fatigado por incessante trabalho desde o começo da epidemia, teve a bondade de encarregar-se do serviço que briosamente desempenhara o seu colega impedido; e já efetivamente entrou em exercício, mostrando-se deveras empenhado em corresponder à sua alta missão. Ainda mais, o sr. Duarte Ferreira Severino, convidado a apresentar uma proposta sobre a justa retribuição dos seus serviços, declarou que não queria remuneração alguma, folgando de ter esta ocasião de obsequiar os sócios da caixa de socorros e o seu colega e amigo Heitor, cumprindo um dever de caridade; e apenas, a poder de muitas instâncias, aceitou uma carruagem por espaço de alguns dias e somente duas horas em cada um, para com mais rapidez fazer a visita aos sócios doentes.
O simples enunciado deste facto, revela o generoso coração do sr. Severino, dispensando quaisquer comentários que porventura lhe pudéssemos fazer.
Receba o sr. Duarte Ferreira Severino estas mal traçadas linhas como uma demonstração ingénua da nossa gratidão, e creia que a acção que acaba de praticar lhe granjeou incontestável direito à nossa estima e reconhecimento, como ao de todos os sócios da Caixa de Socorros da Imprensa Nacional.
Lisboa, 12 de novembro de 1857. — O presidente, L. M. Matos e Lemos — O tesoureiro, J. J. das Neves — Os vogais, F. A. C. Tavares d’Abranches — J. C. de Freitas Sampaio — I. S. César — J. F. Saraiva — C. J. L. da Costa — B. A. Da Silva — Os secretários, F. de Paula Rodrigues — A. C. Pereira da Cunha.»