Aconteceu duas vezes, no último mês.
Primeiro, num posfácio a uma antologia que organizei e que deve ver a luz do dia no final do ano ou, se a pandemia não deixar, já em 2021 (era para ser publicada em maio). Depois numa destas crónicas da Edição Nacional.
Escrevi o que queria dizer. Tanto no posfácio, como na crónica. No primeiro caso, disse tudo o que me apetecia, sem filtros. No segundo, falei da pandemia, do confinamento, da família a invadir de casa o escritório de quem trabalha, como eu, em casa. E, depois, deixei-os pousar.
A escrita tem esta propriedade de terapia. Já vem de há muito – nos diários, por exemplo. Ou nas cartas aos nossos mais chegados. Escrever para esquecer, mais do que para lembrar o que se escreveu. Fazer da escrita uma morada de silêncio, como disse Al Berto, mas sem a partilha que os versos seguintes publicitam. A escrita enquanto expurgar de uma alma para consciencializar o coração. Só que, depois, apareceram os blogues. E, depois, o Facebook. Não tendo, ainda para mais, qualquer mediador, funcionavam e funciona como um diário a céu aberto. Como uma carta sem destinatário e com centenas ou milhares de destinatários. Como um poema sentimentalista onde o que importa é o escritor e nunca o leitor. Fernando Pessoa escreveu a «Autopsicografia» cem anos mais cedo do que o que devia. Era agora que deveria estar aí como novidade, adaptada a estes novos tempos e não só como metapoesia. «Queres escrever um texto no Facebook? Óptimo. Então lê primeiro isto: sentir, sinta o leitor. Que queres tu fazer no estado da alma de quem lê? Mostrar o teu, tão-só? Então, cala-te. Ninguém quer saber de estados de alma ordinários, sem forma nem conteúdo, só válidos para ti, que os escreveste.»
O posfácio foi dado a ler a um querido amigo. A certa altura, na conversa posterior, eu disse: «Acho que o precisava de ter escrito.» A resposta dele, sapiente: «Ótimo. Ainda bem que o escreveste. Agora podes escrever o que interessa às outras pessoas e não só a ti.» Eu percebi imediatamente que, sem o ter escrito, não conseguiria escrever o que verdadeiramente interessava para o livro, isto é, para o leitor. E o mesmo aconteceu com a crónica, sem tirar nem pôr. Eu precisava de expurgar esta casa cheia demais. Esta falta que a saudade faz, porque estamos todos demasiado juntos. Esta impossibilidade de paz para escrever e ler porque lá fora há uma guerra. Mas que importa isso a quem me lê? Falar da pandemia, das minhas dores ou dos meus amores quando até acabo por ser um privilegiado? Ninguém deve escrever sobre as chamas, já o disse aqui há umas semanas. A escrita faz-se pensando as chamas sobre as cinzas. E ninguém quer saber de mais um relato sofrido nos tempos da pandemia, das suas dores e dos seus amores – mesmo dos meus, que são os que mais me interessam.