O que mais se ouve enquanto vamos envelhecendo é «isto já não é como dantes». Certo. Embora, convenhamos, por vezes nunca tenha sido «como foi».
A verdade é que eu nunca fui autor a sério. Consigo, facilmente, separar «autores que são» dos restantes. Porque são tão poucos que sobressaem naturalmente.
Ser um autor tem a ver com postura e entendimento. O entendimento decorre da forma como percebemos a literatura: salva ou não salva a nossa vida? E quando digo nossa, digo dele, não minha. O «autor que é» não quer saber da minha vida de leitor para nada. É egoísta, egocêntrico e cheio de si. Tudo elogios. Quer apenas saber se cada verso ou parágrafo o salvam do tempo que decorre e passa por ele. Apenas isso.
A postura surge como aproximação à coisa editorial e literária. Ao cuidado e à importância que dão a cada aspeto do livro, ao contacto com outros autores, ao chamado «meio literário». Mesmo que seja para se quererem fora dele.
Eu sou, como quase todos somos, um escritor. Mas não sou um «autor que é». Escrevo, apaixono-me mais ou menos por cada texto – neste momento ando enamorado por um novo projeto romanesco – mas não vejo na literatura a minha salvação. Vejo uma parte feliz do que vou fazendo. Há muitos anos, tive até a irreverência de dizer que escrevia para ser feliz. Não, um «autor que é» escreve porque o tem de fazer – feliz ou triste, não interessa. A comichão nas costas de que o Manuel António Pina falava, que o obrigava a coçar / escrever, nunca desaparece. E, se desaparece, aparece imediatamente do outro lado a depressão porque se perdeu a razão para viver. Um «autor que é» respira frases em vez de oxigénio. Eu, não.
E um «autor que é» dedica-se a perceber que o seu trabalho vale. Como dantes, e aí o começo da crónica. Quando o mundo era feito de muitos «autores que eram», desinteressados nas páginas do Facebook e interessados em escrever cartas e cartões e dedicatórias. Tem um cuidado enorme nestas últimas, nas organizações ou traduções que possa fazer. Ele sabe que cada coisa destas é como um pedaço de si que se espalha – pode não ser o núcleo de que se orgulha, mas é parte lateral que o enobrece. Não a ele: o «autor que é» é tudo isso que já disse – egoísta e egocêntrico – mas para realçar o texto, sempre. No fundo, o «autor que é» esquece o egocentrismo para se tornar literarocêntrico, isso sim.
Há poucos. Conheço poucos. António Lobo Antunes, claro. E João Luís Barreto Guimarães.
É um poeta raro. Da circunstância. Do cuidado pela sílaba (veja-se em baixo como se chama a nova antologia). Do cuidado pela dedicatória e por tudo o que é lateral e circunstancial ao verso. Porque o verso circunstancial é, para ele, a essência de um poema. É um «autor que é». Sabe que cada verso lhe salva a vida. É uma simpatia literarocêntrica, sem egoísmo nenhum. É um «autor que é» sem ser um autor como os que foram, depressivos, com a postura de quem entende a importância do que persegue. Talvez por ser médico – ele sabe que aqueles «escritores que não são tanto» talvez um dia ainda venham a ser. E ele só tem de ir aproximando a sua medicação em verso.
Tive a honra de o editar, há uns anos. Um livro maravilhoso e sempre cuidado. Ofereceu‑me o caderno original onde o escreveu, que guardo como uma relíquia – percebi logo o autor que era e é. Espero ter estado à altura dele. Porque um «autor que é» detesta «editores que não são».
O Tempo avança em Sílabas de João Luís Barreto Guimarães
Publicado em fevereiro de 2019 pela Quetzal, depois de impresso no Bloco Gráfico.