Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros, viveu toda a sua modesta vida de empregado, em Lisboa. Vivia sozinho, num quarto alugado na Baixa, perto do escritório onde trabalhava, e dos escritórios onde trabalhava Fernando Pessoa, o seu criador. Diz o poeta que conheceu Bernardo Soares numa pequena casa de pasto da qual era cliente. E foi precisamente nessa casa de pasto que Bernardo Soares revelou a Fernando Pessoa que era escritor e que lhe deu a ler o seu Livro do Desasocego. É o próprio Fernando Pessoa que nos dá conta desse encontro:
«Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto [em] que, sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo, pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida. O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram‑me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que, quando calhava jantar pelas sete horas, quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspeto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me. Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito. Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça.
Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu aspeto que era difícil descortinar outro traço além desse. Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa casa ali perto. Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das janelas — uma cena de pugilato entre dois indivíduos. Os que estavam na sobreloja correram às janelas, e eu também, e também o indivíduo de quem falo. Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era baça e trémula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino de restaurante.
Não sei porquê, passámos a cumprimentarmo-nos desde esse dia. Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove e meia, entrámos em uma conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista Orpheu, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em Orpheu soe ser para poucos. Ele disse‑me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, costumava gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.»
Até há década de 1980, Bernardo Soares podia parecer uma figura menor, uma personagem incompleta, apenas uma interessante prosa de Fernando Pessoa. O Livro do Desasocego, publicado em 1982, em dois volumes, vem revelar um grande prosador, uma personalidade complexa e uma obra não-orgânica mas de grande fôlego.
Bernardo Soares é uma figura dotada de uma grande capacidade analítica, de uma híper lucidez. Há nele uma espécie de iluminismo ou de espírito geométrico que lhe consente a exploração minuciosa das zonas mais secretas da alma. Oiçamos uma delas:
«A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.»
Podemos dizer que o Livro do Desasocego é um diário, mas também podemos considerá‑lo um romance. É de facto o grande romance de Lisboa, um romance do século XX cujas personagens são uma cidade e um eu narrante. Soares de novo:
«Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só ficou o vento que as varreu, regressou aos montões da cidade a alegria do sol certo e apareceu muita roupa branca pendurada a saltar nas cordas esticadas por paus médios nas janelas altas dos prédios de todas as cores. Também fiquei contente, porque existo. Saí de casa para um grande fim, que era, afinal, chegar a horas ao escritório. Mas, neste dia, a própria compulsão da vida participava daquela outra boa compulsão que faz o sol vir nas horas do almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da terra. Senti-me feliz por não poder sentir-me infeliz. Desci a rua descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o escritório conhecido, a gente conhecida nele, eram certezas. Não admira que me sentisse livre, sem saber de quê. Nos cestos poisados à beira dos passeios da Rua da Prata as bananas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande. Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul-esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema do Universo.»
O eu a que Fernando Pessoa chama Bernardo Soares é ainda um eu que se confessa: é uma personagem sem história que conta uma «autobiografia sem factos» com a particularidade de ser, como Fernando Pessoa o sublinhou, «a autobiografia de quem nunca existiu».
É a autobiografia de uma alma, cujos modelos são o Journal de Amiel ou O Livro de Cesário Verde. O Livro do Desasocego é, na verdade, um conjunto de escritos, de fronteiras pouco nítidas, entre o fragmento autobiográfico, a confissão, a introspeção psicológica, a descrição paisagística, a reflexão e o poema em prosa. E o que ressalta no livro é justamente a figura daquele que «nunca existiu»: o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares.
Bernardo Soares junta-se à lista de heterónimos pessoanos que a crítica defeniu maiores, juntamente com Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Todavia existem na obra de Fernando Pessoa outras personagens que são obrigatórias mencionar. Entre as principais cabe um lugar de relevo a Alexender Search, uma personagem que pode ser considerada um proto-heterónimo, pois a sua figura nasceu na mente de Pessoa durante o período sul-africano. Trata-se de um autor de língua inglesa do qual conhecemos uma série de poemas juvenis, um conto de género gótico intitulado A Very Original Dinner e uma série de outros textos.
Uma outra personagem de relevo é António Mora, filósofo que morreu doido numa clínica psiquiátrica em Cascais, e que Pessoa, segundo uma confidência sua, conheceu justamente durante uma visita àquela clínica. António Mora é o teorizador de uma doutrina denominada de «Neo-Paganismo Português» cuja obra principal se intitula Regresso dos Deuses.
Outra figura de filósofo que é oportuno relembrar é Raphael Baldaia, da qual chegaram até nós fragmentos de um Tratado da Negação e de alguns Princípios da Metafísica Esotérica.
De todas as outras personagens que povoam de maneira larval a obra de Fernando Pessoa não podemos aqui senão mencionar alguns nomes. Charles James Search, Charles Robert Anon, Jean Seul, Pacheco, Pêro Botelho, Thomas Crosse…
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Fernando Pessoa, de autoria de Maria José de Lancastre.