Álvaro de Campos nasceu em Tavira a 15 de outubro de 1890, à uma e meia da tarde. Frequentou o liceu em Portugal e teve um tio padre que lhe ensinou latim. Foi mandado para Glasgow, na Escócia, para estudar Engenharia, primeiro Mecânica e depois Naval. Foi aí que se formou. Viajou muito pela Europa e numa viagem ao Oriente colheu inspiração para «Opiário», um poema irónico sobre temas decadentes: o transatlântico, o ópio, o exotismo.
Viveu em Lisboa sem exercer nenhuma profissão, dedicando-se completamente à literatura e às polémicas modernistas, intervindo também nos jornais a propósito de atualidades da vida política portuguesa, o que lhe atraiu algumas antipatias.
Foi o único dos heterónimos a frequentar Fernando Pessoa, segundo uma confidência do próprio Pessoa:
«A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, exceto Álvaro de Campos.»
Era um homem alto, de cabelo preto e liso, risca ao lado, monócolo. A sua figura lembra, não só nas atitudes como no porte, um certo tipo de dandy entediado e blasé.
Fernando Pessoa constrói com Álvaro de Campos a figura do perfeito vanguardista do século XX. Quando nasce, esta figura já se encontra na sua plena maturidade criativa de vanguardista e manifesta-se com uma arrebatada ode de sabor futurista e whitmaniano intitulada Ode Triunfal. Aí se cantam ruidosamente os mitos e os gostos típicos do início do século passado: a máquina, a velocidade, a metrópole, a eletricidade …
Álvaro de Campos manifesta uma modernolatria que é o caráter mais vistoso da sua personagem. Modernolatria que se traduz muitas vezes numa forte polémica ou agressividade em relação à tradição literária vigente, ao statu quo cultural, ao conformismo. É sem dúvida esta atitude que inspira o Ultimatum, um violento manifesto literário de rutura com a tradição e que Pessoa publicará, em 1917, na revista Portugal Futurista.
O facto de utilizar um instrumento expressivo como o manifesto é já em si sintomático na caracterização de uma personagem como Álvaro de Campos. O manifesto é o instrumento privilegiado de declaração poética para as mais importantes vanguardas do século XX e Campos sigla pertencer à vanguarda mais ruidosa precisamente com o seu Ultimatum.
Esta chave vanguardista pode ler-se também na maior composição de Campos, a Ode Marítima, na qual se revisitam, em termos novecentescos, os grandes temas e os grandes motivos da história e do imaginário coletivo português.
Ora Fernando Pessoa querendo construir uma personagem mais completa e autossuficiente cogita um antes para Álvaro de Campos. Com o poema «Opiário» que publica retrodatado, Pessoa inventa para Campos um passado de irónico decadente, de tardo-simbolista blasé, de burguês culto e entediado.
Tem-se todavia a impressão de que na sucessiva evolução da figura de Campos, a vontade de pessoana fique mais na sombra e as mudanças sejam intrínsecas à própria figura da personagem — a qual parece ter adquirido total autonomia. Não nos podemos esquecer que Campos foi o único heterónimo que misturou a sua vida à vida de Pessoa e que se permitiu até a intrusões na esfera privada do seu criador.
O exemplo mais desconcertante ocorre durante a história afetiva que Pessoa viveu com Ophélia Queiroz e durante a qual Campos pôs em prática interferências que são evidentes na correspondência trocada com Ophélia.
«Ex.ma Senhora D. Ophélia Queiroz:
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca — que V. Ex.ª está proibida de: pesar menos gramas, comer pouco, não dormir nada, ter febre, pensar no indivíduo em questão.
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
Cumprimenta V. Ex.ª
Álvaro de Campos, Engenheiro Naval»
É evidente que esta intrusão se verifica no plano de uma ironia paradoxal, mas mesmo assim a coisa não deixa de nos espantar devido à sua ambiguidade.
Quanto à escrita, propriamente dita, de Álvaro de Campos é o heterónimo Ricardo Reis que a carateriza:
«O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior determina-os ele pelos fins dos versos.
Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.
Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo género de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmónica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela a ordem que no ritmo há.»
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Fernando Pessoa, de autoria de Maria José de Lancastre.