José Joaquim Cesário Verde nasceu em plena Baixa Lisboeta, a 25 de fevereiro de 1855, dia litúrgico de São Cesário, sendo óbvia a responsabilidade do Santo no nome do menino. Os seus pais, José Anastácio Verde e Maria da Piedade dos Santos, eram um casal abastado, ligado ao comércio retalhista de ferragens. O casal tinha loja aberta na Rua dos Fanqueiros. O ulterior «poeta negociante» era o primeiro filho varão do casal e descendia, pela via paterna de João Maria Verde, um imigrante genovês.
Pelos decretos do chamado destino, o menino José Joaquim fora talhado, de acordo com a tradição e os contextos familiares, para se dedicar ao comércio na loja paterna, o que, a seu tempo, pontualmente, viria a acontecer. A família Verde veria arredondada a sua fortuna pela herança da quinta de Linda-a-Pastora, que pertencera ao tio de José Anastácio, o abastado João Batista Verde, cujo retrato pintado por Domingos Sequeira se conhece. Assim, a Cesário Verde se lhe abriram os caminhos do comércio das ferragens e da exploração agrícola da quinta familiar. E nesse sentido foram orientados os projetos familiares e, naturalmente, a educação do pequeno Cesário.
Aos 10 anos é aprovado no exame de instrução primária. Terá depois aprendido línguas estrangeiras, o inglês e o francês, e rudimentos de comércio nos colégios que em Lisboa ia havendo. Aos 17 anos inicia pontualmente a sua carreira na loja paterna. Decerto com um horário apertado: o pai-patrão era homem de costumes e princípios severos. E de então até ao fim da sua vida breve, morreria com 31 anos, Cesário não foi profissional senão do comércio, sob a experimentada e vigilante batuta do Sr. José Anastácio Verde.
Quanto à poesia… seria essa a sua fundamental e mais ou menos vocação oculta. Se é que o termo vocação se presta para sugerir o complexo de condicionalismos que exige a necessidade poética… A verdade é que as atividades comerciais de Cesário foram naturalmente aumentando com os anos e com a experiência.
«1874: hoje é dia Santo e disponho de tempo.»
«1875: Escrevo-te sobre uma secretária comercial, cheia de papéis, de livros, de notas.»
«1876: Escrever-te no silêncio do meu quarto! Vou para casa cheio de sono e aborrecimento, não iria escrever-te nessa ocasião. Escrevo-te sabes de onde?! Da loja!! Já vês que me romantizas…»
Aqui estão testemunhos epistolares bem claros acerca do peso, na vida de Cesário, da sua diuturna profissão. Também na sua poesia, as atividades de comerciante e de lavrador, deixaram marcas indeléveis.
«À procura da libra e do shilling / Eu andava abstrato e sem que visse / Que teu alvor romântico de miss / Te obrigada a morrer antes de mim! / Hoje eu sei quanto custam criar / As cepas, desde que eu as podo e empo.»
Sem dúvida, assim se lhe enredaram e enredavam as coisas. Mas seria simplista imaginar que isso aconteceu sem conflitos, acirrados em certos momentos, e, necessariamente, sempre latentes no decurso dos breves treze anos que medeiam entre a publicação dos primeiros versos em 1873 e a sua morte em 1886. Um desses conflitos entre o mester quotidiano e a secreta vocação terá ocorrido pelos 18 anos, quando Cesário, embora como aluno voluntário, se matriculou no Curso Superior de Letras. É possível que o elo para o curso tenha sido João Araújo, ex-noivo da falecida irmã de Cesário, e seu colega nessa experiência académica. Aí conviveu com o brasileiro Luis Andrade e sobretudo com Silva Pinto.
«O meu amigo para a vida e para a morte»
O curso não teve seguimento nem qualquer efeito visível quer na sua vida quer na sua obra. Mas serviu-lhe, isso sim, de respiradouro cultural e de experiência de liberdade criadora. Nas longas conversas e discussões com colegas, especialmente com Silva Pinto, Cesário fez a sua outra educação, em termos políticos, culturais e literários. Republicano, agnóstico e discípulo da «livre escola de Coimbra», Cesário procurou assumir-se mediante a expressão poética, a qual, devido aos cuidados de amigos, logo principiou a tornar-se pública, em Lisboa e no Porto.
Na capital, Eduardo Coelho, antigo caixeiro na loja da família Verde e agora diretor do Diário de Notícias, revela em novembro de 1973, três poesias de Cesário Verde. E para não lhe ficar atrás o «amigo para a vida e para a morte» não se demora a expedir para o portuense Diário da Tarde mais poemas de Cesário.
Depois em 1874, ano de juvenil facúndia poética, Cesário dá a público 15 composições, a maior parte publicadas em periódicos portuenses e anuncia a edição, para breve, de um livro: Cânticos do Realismo, projeto que não chegou a efetivar-se. Esse batismo lustral de provocação poética assumiu aspetos de escândalo público. O que pessoalmente, decerto, o magoou e lhe provocou problemas de ordem familiar e profissional.
Ramalho Ortigão, com que mais tarde terá relações corretas, fustiga-o em As Farpas, exigindo-lhe que «seja menos verde e mais Cesário». Fialho Gouveia, que o admiraria depois, arranha-o também. E Teófilo Braga referindo-se ao poema Esplêndida opinava: «que um poeta amante e moderno devia ser trabalhador e não devia rebaixar-se assim». Além destes ataques de personalidades conhecidas e admiradas pelo jovem poeta, um Diário Ilustrado — que hoje não seria lembrado por ninguém se não fora o seu encarniçamento anto-Cesário — acaba por obrigar o pobre rapaz de 19 anos a um desforço público, uma sátira, em folha solta, que concluía com uma zarabatanada:
«Nascera o Ilustrado — o vómito real!»
A partir desse breve e agitado período, Cesário, ao entrar no juízo dos 20 anos, procuraria antes revistas e jornais de pouca circulação, por onde ia dando a lume poesias tais como: Deslumbramentos, Humorismos de Amor ou Ironias do Desgosto. Uma forma hábil de, a um mesmo tempo, prosseguir a sua busca estética mas sem escândalos nem arrelias familiares e pessoais.
Nesta linha de contenção, Cesário confidenciaria:
«A crítica segundo o método de Taine, Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa vale um desdém solene. (…) Apuro-me em lançar originais e exatos, os meus alexandrinos…»
À medida que as palavras se lhe iluminavam de sentido e se lhe cristalizavam os versos, Cesário Verde deseja e procura o silêncio e até mesmo o anonimato. Cadências Tristes, no dobrar de 1874, e Noitada, de 1879, são publicadas sob pseudónimo. Margarida e Cláudio, respetivamente. E isto não aconteceu por acaso, mas por intrínseca necessidade de, em sossego, prosseguir uma busca essencial à sua própria vida, mais profunda. E se tenta reincidir em publicar poesia no seu próprio nome, como aconteceu em 1878 com Num bairro moderno, o facto é logo objeto de críticas contundentes e humilhantes.
Mas o melhor ainda estava por vir. Em 1879, Cesário Verde vê-se obrigado a desafiar para um ajuste pelas armas a criatura que se ocultava pelo pseudónimo de Juvenal Pigmeu e um outro jornalista qualquer. Ora imagine-se que Juvenal Pigmeu era nem mais nem menos que Angelina Vidal, a pedagoga, a denotada lutadora pela emancipação das gentes humildes e humilhadas, a sua correligionária. Depois deste episódio, Cesário sentiu-se não só extremamente infeliz como vagamente ridículo.
Foge uma vez mais de Lisboa para publicar no Porto, em 1880, O Sentimento de um Ocidental , a sua obra prima. Claro, o poema passou completamente despercebido.
«Uma poesia minha recentemente publicada numa folha bem impressa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação.»
Cesário tinha 25 anos e sabia agora, como nunca, que não poderia esperar nada da crítica do seu tempo. Pouco depois, lança-se à composição de Nós, a sua última grande poesia. Publicá-la-ia em dezembro de 1884, com 29 anos, e não são conhecidas quaisquer reações públicas que se traduzissem pela consagração do poeta, cujo ciclo vital se encaminhava rapidamente para o ocaso.
Com exceção dos anos 1873/1874, Cesário Verde foi um poeta quase confidencial, apenas entendido — e só até certo ponto — por alguns amigos fiéis. Quanto ao mais, vivia as aparências de uma vida pacata de burguês abastado e diligente. A partir de 1877 Cesário Verde começa a queixar-se de falta de saúde:
«Agora trago sempre no pescoço umas escrófulas que se alastram, que se multiplicam depressa. Não sei se é resultado sifilítico, se o que é.»
Assim, como não prestar atenção ao escorrer do tempo? O tempo esse «cancro enorme» que lhe devorara uma irmã com 19 anos e um irmão com 24. Esse «cancro» tinha agora Cesário na sua mira. Mesmo no seu período dionisíaco a morte era já em Cesário a vera efígie das coisas:
«Eu passo tão calado como a morte nesta velha cidade tão sombria. Chorando aflitamente a minha sorte e prelibando o cálix da agonia»
Depois, em 1875 impõe-se-lhe:
«O sossegado espetro angélico da Morte!»
E no momento mais alto da sua criação, em 1880, exclama:
«Se eu não morresse, nunca! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!»
E em Nós, poema da sua burguesa saga familiar, confidencia:
«Eu que de vezes tenho o desprazer de refletir no túmulo! E medito no eterno incognoscível infinito, que as ideias não podem abranger!»
A tuberculose, que lhe ceifara os irmãos, instalara-se também nos pulmões do poeta comerciante que em 1883 fizera a sua única viagem ao estrangeiro, mais precisamente a Paris e a Bordéus, para tratar da exportação de vinhos portugueses.
Em maio de 1886, o médico Sousa Martins informava Silva Pinto que «o poeta Cesário Verde estava irremediavelmente perdido». A pedido de Cesário «o amigo para a vida e para a morte» fora conversar com o grande médico. E levava um recado extremamente subtil.
«O Dr. Sousa Martins perguntou-me qual era a minha ocupação habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: empregado de comércio. Depois ele referiu-se à minha vida trabalhosa, que me distraía. Ora meu querido amigo o que te peço é que conversando com o Dr. Sousa Martins lhe dês a perceber que eu não sou o Sr. Verde, empregado de comércio. Eu não posso bem explicar-te, mas a tua amizade compreende os meus escrúpulos. Sim?»
Claro que Silva Pinto compreendera perfeitamente, e a seu modo, o recado. Talvez Cesário desejasse ter dito:
«Eu não sou o Sr. Verde, empregado de comércio; sou um poeta a debater-se com a morte, a qual, como objeto em si, cantei nos meus versos; agora porém ela é a agente e transporta-me nos seus braços para o abismo.»
Cerca de dois meses depois, a 19 de julho, pelas cinco horas da manhã, com 31 anos, Cesário Verde morre. As suas últimas palavras, recolhidas pelo único irmão sobrevivo, Jorge, foram pouco exemplares:
«Não quero nada. Deixa-me dormir.»
A morte de um poeta não é, nunca foi, o ensejo adequado para uma avaliação criteriosa e justa daquilo que ele significou no contexto da cultura em que surgiu e evoluiu. Quanto a Cesário Verde, só o amor de Silva Pinto intuiu, que a sua morte era como que um Advento. Logo uma semana após a morte do amigo, Silva Pinto torna público que, dias antes da morte do poeta, concebera o projeto de edição das suas poesias e de nenhum modo cederia a outrem a honra e a responsabilidade desse trabalho. A promessa foi exemplarmente cumprida: em abril de 1887, o Livro de Cesário Verde, publicado por Silva Pinto, numa edição de 200 exemplares, era distribuído por amigos e parentes.
Em boa hora o fez pois a poesia de Cesário Verde, o poeta da cidade, viria a revelar-se decisiva, e de valor incalculável, na fundação da modernidade literária portuguesa.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Cesário Verde, de autoria de Joel Serrão.
Cânticos do Realismo. O livro de Cesário Verde, está publicado na coleção «Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa», da Imprensa Nacional. Disponível aqui.