O livro chama-se Para quê tudo isto e retrata — este é o melhor verbo — o Manuel António Pina. Se, no início, há algum receio de se ler uma hagiografia, esse receio perde-se à medida que a leitura avança. Álvaro Magalhães, o autor, era um dos melhores amigos de Pina. E isso poderia impedir um juízo real, porque a amizade é o que há de mais parcial. Mas não. Álvaro Magalhães faz o retrato certo: de um homem bom. Cheio das idiossincrasias, defeitos e obsessões que os homens têm – principalmente os bons.
Mas, nesta crónica, o livro é só um pretexto. Não para falar do Manuel António Pina, que conheci mas com quem não privei amiúde. Percebi-lhe o jeito para pentear o bigode, o olhar felino que trazia dos gatos (quando queria) ou o mesmo olhar amável que também os gatos sabem fazer quando querem. Editei-o numa coleção infantil das Quasi. Falámos de poemas e de poesia uma ou outra vez no Convívio (julgo que na companhia do Rui Lage, sempre). E ouvi-o, depois da morte de Eugénio de Andrade, no auditório da Fundação, na calçada que se dizia de Serrúbia, tomar o seu lugar naturalmente: era ele para quem olhavam no Porto para colmatar a morte do poeta da cidade.
Nesta última ocasião contou uma história. Fiz dessa história poema, há muitos anos. Juntei-lhe a amizade que o António Lobo Antunes tinha pelo Eugénio e o «Poema em Prosa» nasceu. Deixo-o no fim deste texto, para quem souber que o olhar felino também pode ser traquina — mesmo já quando crescido.
Talvez a biografia seja o pretexto para falar de fazermos nosso o que é de outrem. Voltei, depois de a ler, aos seus livros. São dos poucos que nunca se fecham (ele, o Franco Alexandre — a ele voltarei noutro dia —, e o Assis Pacheco, por exemplo). Tudo poetas cheios de jogos verbais, de formas retorcidas de torcer a linguagem. Tudo poetas opostos à limpidez eugeniana que me fazia encher o coração quando era novo. Será que envelhecer é isto?
E voltei e procurei os poemas que se tornaram meus — e de tantos, foi-se percebendo. Este de que roubo uma expressão, alterando-a tanto como ele alterava, heteronimicamente ou não, as dos escritores que admirava. «Regresso devagar ao teu / sorriso como quem volta a casa». É «O Amor como em Casa». Que assim se intitula porque assim termina: «(…) regresso devagar a tua casa, / compro um livro, entro no / amor como em casa.» Li vezes sem conta este poema, sei-o quase de cor, de coração. Mas sempre lhe vi «amar como em casa», algures. Erro meu — tanto erro como amor ardente.
Talvez seja isso, não sei. Apenas sei que o poema é do Pina mas que o amor é nosso.
Poema em Prosa
Para o António Lobo Antunes
Tive um encontro de Verão com o senhor José Fontinhas.
Eu, o Pina, o Lage, tantos que têm vazio o coração pela
falta de novos versos. Foi pelas seis da tarde, a água do
Douro continuava a luta contra as ondas, na Foz. As
palmeiras encostadas ao vento e, mais uma vez, o auditório
pequeno para tanta saudade. Tive um encontro, chamo
José Fontinhas ao telefone, por favor, gritava o empregado
no Piolho há quarenta anos, contava o Pina. Ele, reverente
ao Poeta pregava-lhe a partida mais inominável — a da
identidade. O dito José sentado na esplanada, contou,
chamo José Fontinhas ao telefone, por favor, o Pina
na cabine espreitando o olhar impávido, o sorriso
invertido do Eugénio. O senhor José morrera quando
matou o pai, o senhor Eugénio nascera do amor à mãe.
Mas faltou tanta gente junto aos ciprestes do cemitério.
Pensei que as vendedoras do Bolhão deixariam os verdes,
que os rapazes da Foz que ele tanto amava se chegariam
em tronco nu de mais um salto desde o cais da Ribeira;
que as borboletas viriam em enxames de cor pousar na
urna e esconder o castanho da madeira nova. As árvores
abanando as nuvens junto à foz e o Pina a contar da morte
lenta do nosso poeta. Aponto uns versos pedindo ao rio que
desista de afrontar o mar. Encontrei no Verão o senhor
Fontinhas. Hei-de ir a Lisboa bater à porta do senhor Antunes.