Ricardo Reis nasceu no Porto a 19 de setembro de 1887 e foi educado num colégio de Jesuítas. Foi um latinista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria. Era um homem de estatura média, forte mas seco, de um vago moreno mate.
Era médico, mas não consta que se tenha servido da sua profissão como modo de vida. Eventualmente essa profissão pode ajudar a compreender melhor a sua figura de materialista e de sensista, de cultor da sabedoria antiga e de apaixonado leitor de Horácio.
Era monárquico e, por causa das suas ideias, auto-exilou-se no Brasil depois da proclamação da Primeira República. José Saramago, no seu romance, viria a situar a morte de Reis no ano de 1936. Na figura e na obra de Ricardo Reis, Fernando Pessoa exprimiu o seu lado mais firmemente tradicionalista e conservador.
Reis provém de um clima cultural anglo-saxão do fim do século XIX — especialmente o de Water Pater de Marius the Epicurean — que pertence à formação cultural sul-africana de Pessoa e que em Portugal voltará na forma de neoclassicismo, nos anos vinte, com a revista Athena. Mas a figura de Reis nasce também de um ângulo especial da cultura do próprio criador, Fernando Pessoa, que privilegia a filosofia grega, os pré-socráticos e o paganismo.
«O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as coisas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adoto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar um neoclassicismo «científico» […] reagir contra duas correntes — tanto contra o romantismo moderno, como contra o neoclassicismo à Maurras. »
A grande força de Reis, que poderia parecer uma personagem extravagante e dépaysée no contexto da obra pessoana, consiste exatamente (como aliás para os outros heterónimos) na congruência entre a personagem e a obra. Aliás, Octávio Paz evidenciou o facto de Pessoa ter inventado as biografias para as obras e não as obras para as biografias.
A personagem que Pessoa chama Ricardo Reis demonstra de facto um extremo rigor entre a sua fisionomia e os seus hábitos, e o côté poético do tipo helenizante que Pessoa tem em si, resulta numa personagem de grande credibilidade.
Oiçamos agora o que o heterónimo Álvaro de Campos tem a dizer de Ricardo Reis:
«O nosso Ricardo Reis teve uma inspiração feliz se é que ele usa inspiração, pelo menos por fora das explicações, quando reduziu a seis linhas a sua arte poética:
Não a arte poética, mas a sua. Que ele ponha na mente ativa o esforço só da «altura» (seja isso o que for), concedo, se bem que me pareça estreita uma poesia limitada ao pouco espaço que é próprio dos píncaros. Mas a relação entre a altura e os versos de um certo número de sílabas é-me mais velada.»
Foi Jacinto do Prado Coelho que chamou a atenção para a «ressonância moral» da poesia de Reis. De facto, através desta ficção heteronímica, Pessoa acrescenta um capítulo ao seu sistema filosófico feito em poesia.
Se com Caeiro e Campos, Pessoa construiu os capítulos da Fenomenologia e da Metafísica, com Ricardo Reis constrói o seu sistema moral. É uma moral epicureia no sentido mais genuíno e profundo do termo. Não é um epicurismo banal e decadente, mas sim uma reflexão como lhe chamou Prado Coelho «em torno da dor da nossa miséria estrutural».
Se lermos nestes moldes a poesia de Reis, compreendemos melhor o valor altamente simbólico e mediato do mundo em que ele vive.
Reis é o primeiro a saber que os bosques da Arcádia, as suas Lídias e Cloês e os seus rosais são representações abstratas, quase a ideia platónica de um mundo clássico onde é possível afrontar em termos éticos os temas da Vida e da Morte.
«Quando, Lídia, vier o nosso Outono
Com o Inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o Estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo actual que as folhas vivem
E as torna diferentes.»
Além do epicurismo de clara matriz ética, a filosofia de Reis apresenta particularidades de grande interesse.
O universo que Reis descreve é um universo congelado e imutável, ao qual os deuses são completamente indiferentes e do qual estão completamente distantes. Os deuses são dotados de eterna imutabilidade e repetitividade: fazem sempre os mesmos gestos, bebem sempre o mesmo néctar, cumprem sempre o mesmo ritual.
Com a representação gélida e insensata do cosmos, Fernando Pessoa chega (embora com os tópicos do classicismo) aos grandes temas do século XX e nela encontra-se já contido o Borges de A Biblioteca de Babel, o Kafka de O Processo e o o Beckett de À Espera de Godot.
Curiosamente Ricardo Reis, que com os estilemas horacianos e a filosofia epicureia se esquivou aparentemente ao «moderno» dos seus companheiros heterónimos, revela uma espantosa modernidade: o susto do homem do século XX que se interroga acerca do sentido do Universo. E o companheiro modernista, Álvaro de Campos, aprecia-o:
«Aprecio-o, realmente, e para falar verdade, acima de muitos, de muitíssimos. A sua inspiração é estreita e densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real se bem que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis. Mas é um grande poeta — aqui o admiro —, se é que há grandes poetas neste mundo fora do silêncio de seus próprios corações.»
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Fernando Pessoa, de autoria de Maria José de Lancastre.