Como para todos os grandes artistas que fizeram da obra o objetivo e a ambição máxima da vida, talvez na biografia de Fernando Pessoa se possa encontrar aquilo que lhe aconteceu e aquilo que ele quis que fosse.
Nasceu a 13 de junho de 1888 na cidade de Lisboa. Sendo dia de Santo António, padroeiro da cidade, foi-lhe dado como segundo nome o nome do santo. Seus pais foram Maria Madalena Nogueira, de 26 anos, natural da Terceira, nos Açores, pertencente a uma família de magistrados e Joaquim Seabra Pessoa, de 38 anos, natural de Lisboa, funcionário público no Ministério da Justiça e crítico musical no Diário de Notícias. Viviam no Largo de São Carlos no n.º 4, 4.º esquerdo, mesmo defronte ao Teatro. Com eles viviam a avó paterna, Dionísia, doente mental, e duas criadas velhas. Minado pela tuberculose, o seu pai passa longos períodos ausente de casa, nos arredores de Lisboa, para se tratar. Quando morre, em julho de 1893, Fernando tem 5 anos e o seu irmão Jorge 6 meses. A família leiloa parte dos seus haveres e muda-se para a Rua de S. Marçal, onde pouco depois morre o pequeno Jorge. Sozinho, Fernando começa então a povoar o seu universo com figuras inventadas.
«Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho — um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas — e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida.»
Em dezembro de 1895 a sua mãe casa-se por procuração com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal na colónia inglesa de Natal, na África do Sul. No mês seguinte mãe e filho partem de barco com destino a Durban, cidade onde viveu dos 8 aos 17 anos (com um ano de intervalo em Portugal). Ali adquiriu uma nova família: um padrasto que era seu amigo, e novos irmãos e irmãs: Henriqueta, Madalena, Luís Miguel, João Maria e Maria Clara. Madalena e Maria Clara morreram ambas com dois anos e meio. Aprendeu também uma nova língua e fez os estudos primários e secundários em escolas inglesas. Teve bons mestres e um deles deve ter tido uma influência relevante na sua formação: o diretor do Liceu de Durban, Mr. Nicholas, professor de Latim e de Literatura Inglesa e um grande humanista. Fernando Pessoa frequentou depois, durante um ano, uma escola comercial onde aprendeu os elementos básicos da técnica do comércio que lhe servirão para a sua futura profissão. Durante este período é notável a determinação com que o pequeno Fernando não só se apodera do novo idioma como também da nova cultura, ao ponto de se tornar rapidamente um dos melhores alunos das escolas que frequentou. Entre os vários prémios escolares obtidos é interessante mencionar o prestigioso Queen Memorial Victoria Prize que lhe é conferido, entre 899 candidatos, pelo ensaio apresentado no exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança.
Dominando perfeitamente o novo idioma, Fernando Pessoa passa a utilizar a língua inglesa nos seus apontamentos pessoais e nas suas primeiras criações poéticas. Assina alguns dos seus poemas com o nome de Alexander Search, que pode constituir a proto‑história, de um ponto de vista criativo, de todos os seus heterónimos.
Em 1905 Pessoa escolhe regressar a Portugal para se inscrever na Faculdade de Letras de Lisboa, mas desiste do curso alguns meses depois. Vive em casa das tias-avós em casa da Tia Anica, irmã da sua mãe. Depois de uma tentativa falhada de montar uma tipografia editora com a pequena herança da falecida avó Dionísia, faz a opção definitiva da sua vida: trabalhar em part-time como tradutor de cartas comerciais e dedicar-se inteiramente à literatura. Ou melhor, principalmente à literatura pois os seus interesses culturais abarcam também o pensamento filosófico, a teosofia, as ciências humanas e as ideias políticas.
Por esta altura Fernando Pessoa lê intensamente os clássicos portugueses: Camões, António Vieira, Antero de Quental e os simbolistas. Aproxima-se do grupo «saudosista» de Teixeira de Pacoaes e do movimento da «Renascença Portuguesa» que é marcado por uma visão transcendentalista e mística, em oposição ao positivismo dominante. Publica então no órgão desse movimento, a revista A Águia, uma série de artigos sobre a nova poesia portuguesa, profetizando o aparecimento de um poeta superior a Camões. As suas teorias suscitam vasta controvérsia. O ano de 1912 assinala o começo da sua convivência com Mário de Sá-Carneiro. Quando Sá-Carneiro parte, em outubro, para Paris, para se inscrever no curso de Direito da Sorbonne, tem início entre os dois uma assídua troca de correspondência em que se alternam confidências e projetos literários.
Lisboa, 14 de Março de 1916
Meu querido Sá-Carneiro:
Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental — uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto — que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro.
Pessoa frequenta agora várias tertúlias intelectuais que se reúnem nos cafés da capital. Além d’A Águia colabora como crítico e polemista no semanário Teatro. Conhece artistas plásticos, como Almada Negreiros, e literatos como Luís de Montealvor, António Ferro e Alfredo Pedro Guisado, entre outros. Com este grupo, e com Mário de Sá-Carneiro, que abandonara França por causa da Grande Guerra, Pessoa funda, em 1915, a revista Orpheu, porta-voz das novas tendências literárias, em sintonia com as vanguardas históricas europeias, como o Futurismo, o Orfismio ou o Cubismo. Pessoa, entretanto, tinha-se afastado do grupo de A Águia com o qual polemizara, considerando-o obsoleto.
Entretanto, em março de 1914, Pessoa tinha atravessado a experiência fundamental da sua vida criativa. Depois de uma incubação espiritual que o acompanha desde as suas primeiras tentativas de escrita, consegue arrancar da sua própria personalidade outras personalidades criadoras. São os heterónimos, personalidades diferentes e até independentes do seu criador que, por conta própria e com os seus próprios cânones, se exprimem em literatura. A primeira manifestação poética é a de um poeta bucólico a que Pessoa dá o nome de Alberto Caeiro e que dita com a sua voz um conjunto de poemas intitulado O Guardador de Rebanhos. Em carta a Adolfo Casais Monteiro datada de 1935, Pessoa explica esta génese:
Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Em 1916 Mário de Sá-Carneiro suicida-se no Hotel Nice, em Paris. Esta morte tem profundas repercussões em Pessoa que numa carta à sua tia Anica afirma ter sentido o suicídio à distância. Pessoa atravessa neste período um momento difícil do seu equilíbrio espiritual, procurando iluminações na esfera do irracional. Começa a cultivar as ciências ocultas, a teosofia e o rosacrucianismo, graças também às impressões e sugestões colhidas nos livros teosóficos que traduz do inglês para uma editora lisboeta. A experiência ocultista traduz-se em poesia numa série de sonetos intitulada Passos da Cruz, que Pessoa publica na revista Centauro, dirigida por Luis de Montalvor. Mas, na sua grande capacidade de tocar vários registos e de assumir várias facetas, Pessoa não recua diante da experiência da vanguarda mais engagé. Em 1917, ano das mais agressivas experiências futuristas feitas em Portugal, participa, enquanto Álvaro de Campos, outro dos seus heterónimos, no primeiro e único número de Portugal Futurista com um manifesto de uma rara violência intitulado Ultimatum e dirigido substancialmente contra os mandarins literários da época. A revista foi apreendida pela polícia.
Pessoa continua a viver trabalhando como tradutor de cartas comerciais em firmas portuguesas de import-export. Aliás, o seu interesse pelo comércio manifesta-se em empreendedoras tentativas de se instalar por conta própria. É assim que, com Augusto Ferreira Gomes e Geraldo Coelho Jesus, funda uma pequena empresa de comissões e consignações. Esta empresa tem uma vida breve. É justamente num dos escritórios onde trabalha que conhece Ophélia Queiroz, uma rapariga burguesa, de 19 anos, com quem tem uma relação sentimental. É um namoro à distância, com passeios a pé e troca de cartas e bilhetinhos. Ophélia entra no jogo dos heterónimos e afirma sentir a hostilidade de Álvaro de Campos. De um certo modo se adivinha o que vai acontecer: entre uma normal vida familiar e uma obra a escrever que reclama espaço e tempo, Fernando Pessoa escolhe sem hesitações. Em carta de novembro de 1920 rompe com decisão o namoro.
«Ophelinha,
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade? Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem. O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou (…)»
O sentimento reacender-se-á muito fugazmente nove anos depois. Definitivamente solitário, sem amizades nem amores, Pessoa dedica-se agora completamente à sua obra. Por esta altura apenas os laços familiares se reatam, devido ao regresso de África da sua mãe doente. Entretanto a sua figura como poeta tinha ganho uma certa notoriedade: não só no ambiente literário português como também em Inglaterra, onde o Times e o Glasgow Herald tinham dedicado atenção às duas plaquettes de poemas ingleses publicados em Lisboa em 1918. Os novos poemas ingleses Pessoa publica-os em 1921 na editora Olisipo, uma pequena editora fundada por ele de onde sairão também obras de Almada Negreiros e de António Botto. Pessoa torna-se uma das figuras intelectuais portuguesas mais conhecidas. Os anos que se seguem são os mais intensos, não só enquanto poeta e criador a nível privado, mas também como figura que toma palavra em várias circunstâncias da vida política e cultural portuguesa. Vivíssimo, polémico e atento intervém prontamente quer nas controvérsias sobre a liberdade de expressão a propósito da proibição censória de Mar Alto de António Ferro quer em defesa da arte quando esta é atacada por razões não estéticas quer mesmo em assuntos que dizem respeito à filosofia da política. É certamente difícil expor o pensamento político pessoano que é complexo, controverso e não raramente contraditório. Ele evidencia elementos anarco-individualistas cuja cor política não é clara, talvez não lhe seja alheia uma visão nietzchiana do homem em sentido super-homista, ao passo que são mais flagrantes as influências de Espinoza e de Schopenhauer. Em termos gerais podemos defini-lo como um pensamento conservador que deve muito ao Pensamento Idealista, mas alheio a querele direita‑esquerda hegeliana.
Numa nota biográfica que Pessoa datilografou, pela sua própria mão meses antes de morrer refere:
«Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservadorismo, e absolutamente anti-reaccionário.»
Esta substancial ambiguidade permite a Pessoa, por exemplo, após ter justificado em termos teóricos a instauração de uma ditadura militar, permanecer completamente fora da ideologia do Estado Novo, do qual, pelo contrário, ele reconhece mediocridade pequeno-burguesa e a carência cultural que lho tornam suspeito e eventualmente passível de ridículo.
A partir deste momento, o nome de Fernando Pessoa está presente de maneira determinante e marcante nas mais importantes revistas literárias portuguesas. Na Contemporânea publica, entre outros textos, O Banqueiro Anarquista, o conjunto de poemas Mar Português, O Menino de Sua Mãe e Lisbon Revisited, este assinado por Álvaro de Campos. Na Athena dá à estampa uma escolha de poemas de O Guardador de Rebanhos, do seu heterónimo Caeiro, algumas das odes de um outro seu heterónimo, Ricardo Reis, e Apontamentos para uma Estética Não-Aristotélica, de Álvaro de Campos. Na revista Presença, dirigida por Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e José Régio, publica Tabacaria, de Campos, mais odes de Reis, o oitavo poema do Guardador de Rebanhos e páginas do Livro de Desassossego do seu semi-heterónimo Bernardo Soares.
A obra de Pessoa toca nos anos vinte e trinta as experiências mais significativas da cultura europeia. A obra poética, espalhada nas revistas, reflete os grandes temas da literatura de todos os tempos: a representação da representação de Shakespeare, o tema faustiano, a angústia do conhecimento, a metafísica do real. Em 1934 publica o seu único volume de versos portugueses: Mensagem, poema esotérico-místico sobre a História de Portugal que contém em termos cifrados a «mensagem» de Pessoa, a essência mais secreta da sua visão do mundo. No ano seguinte, a 30 de novembro, morre no Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa, de uma crise hepática. Era o início de uma noite de sábado. Dá entrada no hospital na véspera da partida. E são dessa data, 29 de novembro, as suas últimas palavras escritas:
«I know not what tomorrow will bring.»
[não sei o que o amanhã trará.]
Quando morreu Fernando Pessoa deixou publicada uma décima parte da sua obra. Só mais tarde se descobriu que Fernando Pessoa deixou uma herança inestimável para o país e, sobretudo, para a Língua Portuguesa. Na próxima semana daremos conta dela.
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Fernando Pessoa, de autoria de Maria José de Lancastre.