A história das epidemias não é recente. A memória de grandes vagas de mortalidade causadas por doenças infeciosas remonta, pelo menos, aos primeiros registos escritos.
Na época contemporânea, o crescimento das concentrações urbanas ao longo do século xıx refletiu-se num aumento do número de crises sanitárias que, por seu turno, acabariam por estimular a estruturação de políticas de saúde pública dedicadas à prevenção de surtos epidémicos bem como à aposta em investigação científica orientada para o conhecimento e o combate às principais doenças.
No caso português, entre relatórios e publicações científico-pedagógicas sobre a incidência e a profilaxia da varíola, da cólera, da difteria, da gripe pneumónica, do tifo exantemático — que assolaram populações inteiras —, a bibliografia publicada pela Imprensa Nacional ao longo dos séculos xıx e xx é vastíssima, sendo hoje, seguramente, um importante contributo para a compreensão da história das políticas sanitárias do nosso país.
Com efeito, no Portugal oitocentista, as crises epidémicas foram frequentes a nível regional e nacional. Só na década de 1850, por exemplo, Lisboa foi atingida por surtos de tifo, em 1851, e de cólera, em 1856, seguindo-se imediatamente, em 1857, a epidemia de febre amarela, uma infeção viral aguda transmitida pela picada de mosquito com índices elevados de mortalidade.
Diagrama de evolução da epidemia em Lisboa, 1857.
Sobre este último caso, o balanço foi especialmente detalhado: em 1859, a Imprensa Nacional publicava o Relatório da epidemia de febre amarela ocorrida em Lisboa dois anos antes. Este relatório, preparado pelo Conselho Extraordinário de Saúde Pública, que tinha sido criado para esse efeito em 29 de setembro de 1857, reuniu informação pormenorizada sobre a evolução de casos (por vezes observando mesmo família a família, rua a rua), caracterizando as áreas mais afetadas da cidade, os índices de mortalidade, as causas possíveis do surto e as medidas sanitárias aplicadas durante a crise epidémica. Coube ainda a este organismo indicar «as providências tendentes a prevenir a repetição do flagelo, ou pelo menos a atenuar os seus estragos, se por desgraça reaparecesse.» (Relatório, 1859, p. 5). Entre as medidas propostas, reforçou-se a necessidade de construção de um novo lazareto, destinado à quarentena dos viajantes chegados por mar, e que haveria de concretizar-se em 1869. [1]
Curvas meteorológicas e evolução da epidemia, 1857.
Tanto quanto se sabe, a febre amarela terá chegado à capital portuguesa no verão de 1857 através da navegação marítima, provavelmente a partir do Brasil, sendo este o segundo surto desta natureza no nosso País, que já tinha sido atingido pela doença em 1723. A epidemia de 1857 foi particularmente «pestilencial, violenta» e «duradoura» (Relatório, 1859, p. 8), marcando profundamente a história e a memória dos lisboetas. Os primeiros casos foram identificados no centro da cidade em julho, possivelmente associados a um aumento da temperatura média habitual. O paciente zero poderá ter sido um «marítimo» chegado do Algarve dois meses antes e instalado no «largo de Santo António, a São Paulo», cujos sintomas eram compatíveis com os da febre amarela. Durante o verão, o número de casos foi alastrando pelas ruas da parte baixa e litoral da cidade, atingindo com os maiores níveis de mortalidade a freguesia dos Anjos, a nordeste, em meados de agosto. A noroeste, as áreas da Estrela e Amoreiras, onde, além de menor densidade populacional, era sabido viver-se «geralmente em melhores condições higiénicas», foram menos atingidas.
A epidemia foi dada como ultrapassada no fim de dezembro, estimando-se cerca de 18 mil casos e um total de 5652 mortos. Nesta data, a população de Lisboa rondava os 200 mil habitantes.
No meio operário, as consequências deste surto evidenciaram algumas das limitações da atividade associativa, que acusava o rápido esgotamento de recursos face ao número elevado de casos, por um lado, e a dificuldade em garantir uma unidade que permitisse a partilha desses recursos, por outro. N’A Federação. Folha Industrial dedicada às classes operarias, de 31 de outubro de 1857, discutiam-se os benefícios dessa unidade: «Há em Lisboa muitos artistas de todas as classes, talvez dez a doze mil; e se ao menos a maioria deles fosse associada, se estivessem administrativa e economicamente unidos pela federação, temos a convicção profunda de que os recursos superabundariam, e não haveria a recear crises semelhantes.»
O rei D. Pedro V visita doentes internados com febre amarela, 1857.
Acompanhando a solidariedade geral que levou o próprio rei D. Pedro V a visitar os hospitais onde se tratavam os doentes, os trabalhadores da Imprensa Nacional organizaram-se para apoiar os mais fustigados pela crise epidémica. A Imprensa, localizada numa das áreas menos afetadas pela febre amarela, contou com o apoio do médico Duarte Severino, que se voluntariou para apoiar os trabalhadores associados da sua Caixa de Socorros, substituindo o médico Bernardino Heitor, entretanto também infetado.
Em janeiro de 1858, reconhecendo que as «excelentes condições higiénicas» da Imprensa Nacional e as medidas profiláticas tomadas pela administração tinham permitido «atravessar a tremenda crise sem grande abalo» e sem «estranhos auxílios», os sócios da Caixa de Socorros organizaram uma coleta em favor dos órfãos das vítimas da epidemia, pedindo a António Rodrigues Sampaio, então presidente do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas e futuro chefe do Governo, que o pequeno valor arrecadado fosse entregue aos «asilos onde vão ser recebidos e educados os filhos de tantos cidadãos beneméritos que sucumbiram ao flagelo». Em 6 de fevereiro desse ano, a iniciativa foi divulgada na imprensa operária, com a convicção de que o valor entregue teria o destino «mais acertado e humanitário».
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[1] É importante referir que, em meados do século xıx, ainda não se sabia que o mosquito era o vetor de transmissão da febre amarela. O relatório publicado em 1859 espelha, justamente, essa ausência de conhecimento, propondo várias origens possíveis para a infeção, sobretudo relacionadas com insalubridade.