Francisco de Holanda nasceu em Lisboa, muito provavelmente em 1517 ou 1518, portanto, no reinado de D. Manuel I. Para Jorge Segurado estamos perante o principal artista da nossa Renascença. Nas palavras de André de Resende estamos perante o Apeles Lusitano.
Francisco de Holanda era filho de António d’Holanda, iluminista, desenhador, retratista, de origem holandesa. Artista ligado à corte portuguesa, a sua profissão exerceu clara influência na futura orientação deste seu filho, que, desde muito novo, mostrou clara propensão para a arte da pintura. De facto, Francisco frequentou a escola de seu pai, sendo este um período de aprendizagem fundamental, conforme ele próprio reconhece no prólogo na obra que lhe deu renome mundial, Da Pintura Antiga:
«E muito grandes e infinitas graças dou eu primeiro ao Summo Mestre e imortal, e depois as dou a meu pai […] de me não desviar minha própria índole natural, e me deixou seguir a arte da Sabedoria a mi mais segura e excelente de quantas há n’este grão mundo»
Seu pai, instalado em Évora, deu a Francisco de Holanda a formação necessária para se iniciar nas artes figurativas. Durante alguns anos e até 1537, Évora, cidade onde à época residia a corte portuguesa, foi a capital cultural de Portugal e o centro onde os mais diferentes artistas trabalhavam, bem como os homens de letras. Foi aqui que Francisco de Holanda, certamente, contactou com os mais eminentes humanistas, tendo sido amigo e discípulo de André de Resende, Miguel da Silva e Nicolau Clenardo. Sabe-se também que Francisco de Holanda estudou línguas clássicas na Escola Pública de Letras.
Em Évora dá-se o contacto com as antiguidades, provenientes de ruínas romanas, permitindo a Francisco reconhecer que um aprofundamento do seu saber só será possível se se deslocar a Roma, o grande centro cultural da Europa culta no que à arte diz respeito. E D. João III é claramente favorável à cultura humanística, que apenas será travada quando, em 1555, entrega o ensino à Companhia de Jesus.
Com 20 anos dá-se o facto fundamental da vida de Francisco de Holanda como artista: obtém uma bolsa a fim de se dirigir a Roma e contactar com os grandes vultos da arte renascentista. Quando vai para Itália é já um pintor vocacionado para a arte, ansioso por se encontrar com os grandes mestres do seu tempo, com os grandes monumentos da antiguidade e com as maiores referências da arte sua contemporânea.
Esta viagem, por ele tão ansiosamente esperada e que teve a duração de três anos (de 1537 a 1540) é um marco central na sua vida, como ele mesmo menciona no agradecimento que faz a D. João III:
«E a Vós, muito Glorioso e Augusto Rei e Senhor, dou eu outras tantas graças pela ajuda que ate agora me tem dado (mandando-me ir ver Itália) em bens que, inda quando se a náu alagasse, e a cidade saqueada estivesse ardendo, eu posso sem empedimento de carga levemente comigo trazer a nado […] porque dizem que o saber é só de todos o que em nenhuma alheia pátria é estrangeiro»
Destinava-se esta viagem a corresponder ao desejo do rei D. João III, de o jovem artista se instruir em arquitetura e adquirir técnica segura para construir castelos e fortalezas à maneira italiana, tendo em vista, sobretudo, a defesa e a soberania do património de além-mar. O itinerário da viagem, sem sermos exaustivos, passa por Valhadolide, Barcelona, Avinhão, Florença, Siena e Roma. Deste itinerário registou em desenho muitos dos lugares que visitou.
«Que fortaleza, ou cidades estrangeiras não tenho eu ainda no meu livro? Que edifícios perpétuos e estátuas pesadas tem ainda esta cidade, que lhe eu já não tenha roubado e leve, sem carretas nem navios, em leves folhas? Que pintura de estuque ou grotesco se descobre por estas grutas e antigualhas, assim de Roma, como de Puzel e de Baias, que se não ache o mais raro delas pelos meus cadernos riscados?»
Claro que Francisco de Holanda se está a referir ao conjunto de desenhos que deram origem ao seu Álbum dos Desenhos das Antigualhas.
Chegado a Roma, no Verão de 1538, teve acesso à casa papal. Esta sua ida para Roma, que tinha a intenção declarada, na sua qualidade de artista, de contactar com os novos paradigmas artísticos, imbuir-se desse novo espírito a fim de no regresso a Portugal os pôr em prática, era simultaneamente, uma missão e uma devoção. Na Páscoa de 1539, em Roma, recebe a comunhão das mãos do Papa, facto que muito o emocionou. O seu grande fascínio por esta grande metrópole tinha uma componente artística e outra claramente religiosa.
Em Itália, Francisco de Holanda teve acesso ao grupo que frequentava a Igreja de S. Silvestre, ou seja, teve acesso ao círculo de Vittoria Colonna marquesa de Pescara, mecenas e amiga do génio do renascimento Miguel Ângelo Buonarroti. Em Diálogos de Roma, 2.º Livro de Da Pintura Antiga, Francisco de Holanda regista as conversas deste grupo, do qual fazia também parte Lactâncio Tolomei.
«Entre estes dias, que eu assim naquela corte passava, houve um domingo de ir ver Messer Lactâncio Tollomei (…) mas achando eu em sua casa recado que estava em Monte Cavalo, na igreja de São Silvestre, com a senhora Marquesa de Pescara ouvindo uma lição das epístolas de São Paulo, lá me fui a Monte Cavalo e a São Silvestre. (…) E também esta senhora devia eu à amizade de Messer Lactâncio, que era o mor privado e amigo que ela tinha.
Durante a sua estada em Itália, Francisco de Holanda deslocou-se a outros lugares, quer do sul quer do centro, mais uma vez desenhando, nos lugares por onde passava, aquilo que considerava mais significativo e digno de reter. De regresso a Lisboa, entre o final de 1541 e o início de 1542, vem pelo Norte de Itália, passando a Turim, Toulouse, Nîmes, Bayona e San Sebastien.
Se quando partiu de Portugal para o Lácio, Francisco de Holanda já tinha em mente adquirir uma sólida formação no contacto com os novos paradigmas artísticos da sua época, quando regressou vinha embrenhado dessa atmosfera renascentista, desses fermentos, que fazem dele, sem dúvida, um dos seus representantes. Após a chegada a Portugal, D. João III encarregou-o de algumas obras de natureza arquitetónica.
Só mais tarde redige a sua obra-prima, de caráter literário, Da Pintura Antiga, cuja primeira parte terminou em fevereiro de 1548, enquanto a segunda parte foi acabada em outubro do mesmo ano. O regresso a Portugal assinala a emergência do artista e do literato.
Toda a sua atividade será a de um homem do renascimento, com todo o peso que este termo carreia nesta altura. Francisco de Holanda trabalha intensamente no período compreendido entre o seu regresso de Itália e a morte de D. João III, em 1557. Em 1544, por exemplo, é-lhe atribuída a traça da Igreja do Convento de Jesus, em Valverde, perto de Évora. Em 1545 inicia o códice de desenhos de Madrid, a que deu o título de De Aetatibus Mundi Imagines (As Imagens das Idades do Mundo). Em 1550 casa-se com D. Luísa da Cunha de Siqueira. Já o ano de 1552 é a data provável de duas pinturas que lhe são atribuídas: Adoração a Santa Maria de Belém e, no reverso da mesma tábua, Descida de Cristo ao Limbo. Em 1555 desenha, com seu pai, as moedas de S. Tomé e de S. Vicente.
Com a morte súbita de D. João III, em 1557, que era seu inequívoco protetor, a carreira de Francisco de Holanda é afetada. É afastado da corte e dos trabalhos de arquiteto de que estava empossado, deixando por terminar várias obras, entre elas a Capela-Mor da Igreja dos Jerónimos, o Claustro Grande no Convento de Cristo, em Tomar e o Paço Real em Xabregas.
No seu estudo Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, de 1571, por muitos considerado o primeiro ensaio sobre urbanismo a surgir na Península Ibérica, Francisco de Holanda além de elogiar uma vez mais D. João III, como grande mecenas da arte, lembra ao neto deste, D. Sebastião, que desde a morte do seu avô que ele, Francisco de Holanda, deixou de poder servir o reino e deste modo colocar à sua disposição o seu saber. A mesma mágoa Francisco de Holanda extravasa-a na obra Da Ciência do Desenho, dirigindo-se, uma vez mais, a D. Sebastião, a quem menciona, à maneira de um desabafo triste, que sente que o seu dom de artista é desprezado:
«E por que razão me venho antes fazer lavrador e viver no Monte como homem inútil e que de nada serve neste tempo»
Este monte de que tanto fala na Fábrica, como em Da Ciência do Desenho ficaria a meio caminho entre Lisboa e Sintra, talvez no lugar de Venda Nova. Sabe-se que, em 1573, Francisco de Holanda, viveu em Lisboa, em Santa Clara, segundo referencia na sua obra Imagens das Idades do Mundo. Em 1572, Holanda escreve a Filipe II de Espanha e coloca‑se à sua disposição para o servir, sem, no entanto, ter tomado uma atitude de aprovação quanto à invasão de Portugal. Entre os dois, o tratamento é distante e frio. Filipe II não perseguiu Francisco de Holanda, mas parece tê-lo tratado com distante frieza, não lhe confiando qualquer cargo profissional.
A coerência interna do pensamento de Holanda perpassa uma intransigente defesa, argumentada, dos valores artísticos do Renascimento. No conjunto das suas obras pictóricas e literárias, entre elas, Da Pintura Antiga, Do Tirar pelo Natural ou De Quanto Serve a Ciência do Desenho, Francisco de Holanda chama sempre a atenção para a nova dignidade da arte e do artista, para o seu papel ativo na sociedade, bem como para a necessidade de criar em sintonia com os novos paradigmas, próprios de uma época diferente da medieval e que celebra, já em cunho individualista, o homem e a sua dignidade.
«Se me Deus desse a escolher livremente entre todas as graças que repartiu com os mortais, qual queria ter ou alcançar, nenhuma outra lhe pediria, depois da fé, senão o alto entendimento de pintar ilustremente. Nem porventura nesta quereria ser outro homem, senão este que sou. De que muitas graças dou eu ao imortal e soberano Deus por neste grande e confuso mundo dar alguma pequena luz nos desejos da altíssima pintura, pela qual a nenhum outro dote em mais honor e reverência tenho, pelo seu grande merecer.»
A defesa que Holanda faz da pintura, como a arte das artes, é recorrente. A pintura representa a essência do artístico e possui uma dimensão metafísica, dado que o seu fundamento é, em rigor, também metafísico.
«A arte da pintura é a coisa mais digníssima que só Deus faz por tão investigável sabedoria como Ele sabe.»
Afirmada, assim, a origem divina da pintura ou desenho, segue-se a sua definição:
«Principalmente chamo DESENHO aquela ideia criada no entendimento criado, que imita ou quer imitar as eternas e divinas ciências incriadas, com que o muito poderoso Senhor Deus criou todas as obras que vemos; e compreende todas as obras que têm invenção, ou forma, ou fermosura, ou proporção, ou que a esperam de ter, assim interiores nas ideias, como exteriores nas obras; e isto baste quanto ao desenho»
A vida de Francisco de Holanda dá conta do verso e do reverso de que a existência é feita: acarinhado em jovem pela corte, priva com grandes figuras do Renascimento em Itália; regressado a Portugal, vai, progressivamente, perdendo influência, até chegar mesmo ao esquecimento. A sua existência dá conta das aporias próprias da época em que vive. A verdade é que, enquanto em Itália se vive o auge do Renascimento e já desponta o maneirismo, em Portugal afirma-se ainda o gótico, com a construção do Mosteiro dos Jerónimos e do Convento de Cristo em Tomar. São outras as opções institucionais. Francisco de Holanda terá falecido a 19 de Junho de 1584, com 66 ou 67 anos, de acordo com uma carta de Filipe II à viúva do artista, Luísa da Cunha Siqueira.
A sua obra, quer literária, quer plástica, permaneceu praticamente silenciada até meados do século XVIII, início do século XIX. E o artista teve certamente consciência de que nunca veria reconhecidas em Portugal as suas ideias, nem mesmo o seu talento para as executar. Contudo, para nós, contemporâneos, que o lemos e interpretamos, que contemplamos o pouco que conhecemos da sua obra pictórica, não podemos deixar de reconhecer a sua forte personalidade, marcada pelo ideário do humanismo renascentista, que nunca abandonou. Nunca é demais salientar a riqueza da sua reflexão sobre a arte, a audácia de remar contra a maré, de se expor, em nome de valores nos quais acreditava e que sempre defendeu. Hoje, Francisco de Holanda encontra-se, sem sombra de dúvida, num lugar de relevo, num lugar cimeiro, do Renascimento português.
«Eu fui o primeiro que n’este Reino louvei e apregoei ser perfeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quase queriam zombar d’isso (…) E o conhecer isto me fez desejar de ir ver Roma, e quando d’ella tornei não conhecia esta terra, como quer que não achei pedreiro nem pintor que não dissesse que o antigo (a que lhes chamam modo de Itália) que esse levava a tudo; e achei-os tão senhores d’isso, que não ficou nenhuma lembrança de mim.»
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Francisco de Holanda, de autoria de Maria de Lourdes Sirgado Ganho.