«Sou português. Nasci em Lisboa no dia 30 de maio de 1854. Estudei o curso da marinha e dediquei-me a oficial de marinha de guerra. Em tal qualidade fiz numerosas viagens, visitando as costas de África, da Ásia, da América. Estive cerca de cinco anos na China, tendo ocasião de vir ao Japão a bordo de uma canhoeira de guerra e visitando Nagasaki, Kobe e Iokohama. Em 1893, 94, 95 e 96 voltei ao Japão, por curtas demoras, ao serviço do Governo de Macau, onde estava comissionado na capitania do porto de Macau. Em 1899 fui nomeado cônsul de Portugal em Hiogo e Osaca, lugar que exerci até 1913. Em tal data, sentindo-me doente e julgando-me incapaz de exercer um cargo público, pedi ao governo português a minha exoneração de oficial de marinha e de cônsul, que obtive, e retirei-me para a cidade de Tokushima, onde até agora me encontro, por me parecer um lugar apropriado para descansar de uma carreira trabalhosa e com saúde pouco robusta. Devo acrescentar que, em Kobe e em Tokushima, escrevi como mero passatempo, alguns livros sobre costumes japoneses, que foram benevolamente recebidos pelo público em Portugal.»
Marinheiro, diplomata, torrencial escritor, Wenceslau de Moraes é reconhecido pela ligação ao Japão, lugar extremo onde vive mais de três décadas e que o fascina desde o primeiro encontro, enquanto mundo original onde a humanidade se descobre na sua criatividade e no seu sentido estético. O caminho que leva Moraes de Portugal a Tokushima, mais do que um percurso geográfico, traça a procura de um destino em perda (a da imaginação criativa, a da glória da pátria) que talvez se recupere no cabo do mundo. A distância serve, assim, a utopia do encontro e, por isso, Moraes terminará a sua via‑sacra longe de Portugal, mas também estranho ao lugar limite da sua busca.
Como o próprio narrou, em carta íntima de 1928, ao japonês Yanazi Wara, que lhe havia pedido uma autobiografia, Wenceslau de Moraes nasceu em Lisboa e com apenas 17 anos assenta praça voluntariamente, passando no ano seguinte a aspirante de marinha, carreira que seguirá. Com a morte do pai, em 1873, vê-se pressionado a completar os estudos na Escola Naval, que termina dois anos depois. Embarca na fragata D. Fernando e Glória, onde faz o tirocínio de artilharia e inicia um período de viagens a Moçambique, com paragens na costa africana e na Madeira. Por duas vezes falha a partida para Macau: em 1875 é transferido para a canhoeira Zarco, estacionada naquele território, mas não se concretiza a ida para Oriente; dez anos mais tarde, já na qualidade de imediato da Rio Lima, Wenceslau parte para a Estação Naval de Macau, fazendo escala em Zanzibar, Singapura, Macáçar, e alcançando Timor — de onde é forçado a regressar a Portugal, por indicação médica. Em 1887 parte, então, para Macau, um minúsculo território à beira da Grande China, onde chega a 7 de julho. É em Macau que alcança o posto de comandante da canhoeira Tejo, e nessa qualidade, desempenha missões em Sião e em Hong-Kong, sempre com muita distinção. Em 1891, é designado para o comando interino da Estação Naval de Macau e, em Portugal, onde vai pela última vez, é nomeado imediato do porto de Macau. Nesse mesmo ano nasce o seu 1.º filho, José de Sousa Moraes, fruto da ligação com Vonc Ioc Chan, conhecida por Atchan, e, no ano seguinte, nasce João de Sousa Moraes, 2.º filho dessa paixão chinesa. Mesmo depois de partir para o Japão, Wenceslau assegurará a subsistência e educação dos filhos, que estudarão em Hong-Kong. No fim da vida, aceita com muita relutância a visita de Atchan, que terá ido a Tokushima na companhia do filho João, com um único objetivo, segundo Wenceslau: de o convencer a casar. O que rejeita com veemência.
«Eu não posso casar, seria o mesmo que andar com a cabeça para baixo e os pés para cima, ou comer brasas, ou voar como os pássaros — um impossível.»
Ao mesmo tempo manifesta a sua distância dos filhos.
«Eu, num outro mundo, talvez ainda pudesse fazer o sacrifício de viver com a mãe; com eles nunca, que se encontram monstruosamente pervertidos — até me fazem horror!»
A casa de Macau onde viveu com Atchan será, contudo, o seu primeiro lar, como relatará em crónica à irmã, publicada mais tarde em Traços do Extremo Oriente.
«A minha casa! A minha bela casa! Tu não compreendes talvez com que prazer egoísta eu formulo mentalmente esta exclamação! Sempre estirado sobre a cadeira, saboreando cigarros, passeio voluptuosamente a vista pelos móveis, inventariando, minuciando tudo com amor.»
No final de 1891, Moraes é nomeado delegado superintendente da fiscalização da importação e exportação do ópio e designado para adquirir artilharia no Japão, o que o levará por duas vezes, em 83, à Terra do Sol Nascente. No ano seguinte, desligado das funções de fiscalização, é nomeado professor do recém-fundado Liceu de Macau, onde conhece Camilo Pessanha, com quem partilha uma amizade que se prolonga até ao fim da vida. Em 1897, realiza nova viagem ao Japão para acompanhar o governador de Macau, Eduardo Galhardo, com vista ao restabelecimento de relações diplomáticas e comerciais praticamente encerradas desde o século XVII. Ambos são recebidos pelo imperador e, no regresso, Eduardo Galhardo elabora um relatório para Lisboa onde faz notar a necessidade urgente de abrir um consulado em Kobe, à semelhança do que acontecia com as outras nações europeias. Desde a 1.ª viagem turística a Nagasaki, Kobe e Iokohama, Moraes mostra grande atração pelo País do Sol Nascente, o que o leva a profetizar, em carta enviada à irmã mais velha:
«Estou num país delicioso, o Japão. Era aqui em Nagasáqui que eu desejaria passar o resto da minha vida, à sombra destas árvores que não têm parceiras no Mundo. Deixo com saudade este torrão abençoado por Deus, cheio de paisagens adoráveis, cheio de flores, cheio de sorrisos; terra feita para a alma se recolher em doces pensamentos, e para o espírito cansado da vida poder ainda purificar-se e elevar à providência um agradecimento.»
Em janeiro de 1898, Moraes rejeita a licença que lhe havia sido concedida para tratamento no reino. Vive, então, um período de instabilidade que se deve, sobretudo, à incerteza da desejada nomeação para o cargo de cônsul em Kobe. Chega, finalmente, ao Japão em dezembro desse ano, onde ficará até ao fim da vida, embrenhando-se a pouco e pouco no mundo japonês até ao isolamento na pequena cidade Tokushima — cidade que ainda hoje conserva a memória de Moraes dedicando-lhe uma rua e um museu. Moraes exercerá com dignidade o cargo de cônsul de Portugal em Kobe e Osaca, para o qual é creditado pelo imperador em 1899. O novo cônsul trabalhará afincadamente no estabelecimento de um acordo comercial. E consegue que algumas empresas portuguesas participem na grande exposição que, em 1903, se realiza em Osaca. Escreve em A Vida Japonesa, a este propósito:
«… maravilhoso incidente que trouxe a estranhos a nítida noção do alto grau a que subiram as atividades pacíficas do nipónico; e na qual, meia dúzia de rolhas de cortiça, algumas garrafas de vinho do Porto e 2 ou 3 latas de sardinhas favoreceram agradável pretexto para que a bandeira portuguesa viesse flutuar, naquele certame festivo, ao lado das bandeiras de todas as outras nações cultas.»
A pouco e pouco, porém, a sua outra vida ocupa um espaço mais largo. A 10 de junho de 1913, Dia de Portugal, Moraes requer a demissão do cargo de cônsul-geral para o qual havia sido confirmado, em março desse ano, pelo novo governo republicano. No telegrama enviado invocava razões de saúde, embora alguns biógrafos prefiram a versão romântica de que Moraes pretenderia acompanhar a sua amada Yoné, a Sr.ª Bago de Arroz, cujas cinzas repousavam em Tokushima, cidade onde viverá isolado os seus últimos 16 anos. De acordo com os biógrafos japoneses, por influência de uma jovem japonesa, Nagahara-Den, com quem começara a viver no início de 1913, terá ainda hesitado entre a instalação em Tokushima ou em Imaichi, de onde a rapariga era natural, e que se situa perto de Matsué, cidade onde viveu o escritor Lafcadio Hearn, que ele muito admirava. Em Tokushima é acompanhado nos primeiros tempos por Ko-Haru, sobrinha de sua mulher japonesa, que também morrerá poucos anos mais tarde, deixando-o mergulhado na solidão. Pouco tempo depois da morte de Ko-Haru, Moraes escreve ao amigo Dias Branco:
«Nada tenho que contar-te da minha pessoa. Vivo de lembranças do passado. Mas o passado parece-me já um sonho, uma coisa que nunca teve realidade. Do futuro não falo, o futuro é para mim a morte e mais nada. Não sofro, faz-me apenas falta uma pessoa amiga, aqui, a meu lado, para eu trocar impressões com ela, eu que sempre vivi para o coração!…»
No testamento que prepara antes de morrer deixa metade dos bens aos filhos, considerados legítimos, e reparte a outra metade entre Nagahara-Den e a família de Ko‑Haru. Por influência de amigos e empenho do próprio Presidente da República, Manuel de Arriaga, o Estado português manifesta disponibilidade para que Moraes retome funções, ou aceite a reforma de que abdicara no telegrama de demissão, mas Moraes rejeita de forma perentória qualquer ajuda ou retrocesso nas suas decisões. O contacto com Portugal será mantido por meio da escrita: a correspondência, os artigos para jornais e revistas, a edição das obras. Moraes fechou-se na minúscula casa japonesa de Tokushima — duas pequenas divisões sobrepostas com escassos móveis, uma esteira para dormir, o altar familiar, poucos livros e, na parede, um mapa de Portugal. A descrição deste «cubículo de exílio» fá-lo Moraes em O Bon-Odori em Tokushima e curiosamente intercala na descrição a visita a um jardim zoológico, cuja atração principal era um orangotango de Bornéu, na sua «estreitíssima prisão entre as grades». A intensidade do sofrimento, tristeza e pânico patentes no olhar deste animal, transforma-o em protagonista de uma epopeia heroica:
«Que olhar!… Naquele olhar, que abismo de profundíssima tristeza!… Que epopeia inteira de angústias!… Só vendo-o Só vendo-o como eu vi, é que se pode compreender tamanha dor!»
E quanto mais observa o prisioneiro tanto mais familiar se lhe torna a sua fisionomia:
«Ah! Não havia dúvida, era ele. Eu via-me em presença daquele tipo, já hoje lendário, do bem conhecido Zé Povinho, que Rafael Bordalo, o grande artista, tantas vezes traçara com seu lápis, há vinte ou trinta anos, nos papéis. Tive então a ilusão nítida de contemplar naquele cárcere um mísero homem do povo, um carpinteiro português a quem por escárnio houvessem consentido que trouxesse consigo a ferramenta do ofício, condenado, sem culpa formada, a cativeiro perpétuo, até que a tísica… o indultasse!»
O exílio neste lugar extremo acentua também a distância de uma pátria em perda de grandeza: a gesta coletiva é substituída por uma aventura individual, missão que Moraes assume e o faz deslizar da vida para a ficção. Em correspondência dirigida à irmã, logo no início do seu exílio em Tokushima, diz-lhe:
«Escrevo-te deste poiso, onde vim buscar tranquilidade ao meu espírito, como já te expliquei em carta: sinto-me melhor.»
Mais tarde, em carta de fevereiro de 1920, ao amigo Dias Branco, devolve uma reflexão que parece a mais elucidativa:
«Porque me exilei eu? Nem eu bem sei como isto foi, parece que concorreram mil causas para isto e que uma resolução instintiva — talvez demência? — me decidiu a vir viver neste canto. Eu todo o caso não quero mudar, quero viver e morrer aqui e exatamente nas mesmas condições que imagina. Ninguém me resolveria a mudar de ideia.»
A obra que Wenceslau de Moraes nos deixou é vasta e variada, dispersa por prosa, ensaios, crónicas, diários e de uma vastíssima epistolografia. Da 1.ª obra, Traços do Extremo Oriente — publicada quando ainda se encontrava em Macau — até Relance da História do Japão, de 1924, e Relance da Alma Japonesa, de 1926, existe um longo percurso mais ou menos acentuado pela crítica. Embora não possa ser integrada em nenhuma das correntes literárias que surgiram em Portugal em final do século, a obra de Moraes participa da revolta neorromântica contra o positivismo e o naturalismo. Além disso, tratando-se de narrativas autobiográficas e de viagens por países não ocidentais, a obra de Moraes encontra o seu lugar na tradição do egotismo e do exotismo do século XIX. Tendências que se cruzam com o parnasianismo, o simbolismo ou o decandentismo. E se a China serve de visão decadentista de uma sociedade em ruínas, o Japão, na obra de Moraes representará a iluminação que o escritor descreve a par das suas impressões.
«O Japão!… A exclamação escapa-se-nos; e é tudo, na impossibilidade de traduzirmos por qualquer forma o que se nos revela.»
A experiência japonesa preenche a maioria das obras de Wenceslau de Moraes, a que se juntam informações geográficas, históricas e etnográficas. O Japão já está presente no capítulo final de Traços do Extremo Oriente, em todo o Dai-Nippon e ainda em parte de Paisagens da China e do Japão, uma coletânea de artigos composta em grande parte por traduções de contos e histórias tradicionais. As restantes obras centram-se exclusivamente na terra do Sol Nascente: Cartas do Japão, O Bon-Odori em Tokushima, Serões do Japão e O Culto do Chá, de 1905, a sua obra mais apreciada do ponto de vista bibliográfico, editada em Kobe sobre papel de arroz com estampas do pintor Yoshiaki. A estes títulos seguiram-lhe outros, como O-Yoné e Ko-Haru, uma coletânea de textos ligados entre si pelo tema da saudade e embora não seja a obra mais conhecida de Moares, tem sido, talvez o livro mais realçado pela crítica. Em 1920, publica o famoso ensaio Fernão Mendes Pinto e o Japão. Moraes admira o aventureiro português, autor de Peregrinação, e de quem se considera sucessor. Neste ensaio Moraes elogia o talento literário de Mendes Pinto. Estalece-se aqui uma partilha de olhares, uma identidade de experiências que une os dois autores ao ponto de Moraes exclamar:
«Assalta-me o desejo irresistível de abraçá-lo… em espírito, como a um irmão mais velho na boémia da vida e nos baldões da sorte.»
Moraes, todavia, nunca se tornou japonês. Amou aquela terra exótica porque oferecia matéria à sede de desconhecido, à paixão do belo e ao caminho interior. Os últimos anos de vida — morreria a 1 de julho de 1929 — são arrastados com uma enorme saudade de Portugal. Trava relações epistolares com quem nunca as tivera, vive sobressaltado com as constantes revoluções da República e segue os acontecimentos, que lhe eram enviados a seu pedido; teve fé ilimitada no inspirador da República Nova, Sidónio Pais, cujo assassinato o desgostou profundamente. Classifica os chefes daquele período agitado como:
«… uns bandidos, uns vagabundos, uns imbecis!»
E passados 34 anos da sua última estada na metrópole ainda escreve alarmado e pergunta ansioso: «O que sei é que as coisas no nosso país vão mal (…) Como acabará isto?»
A biografia de Wenceslau de Moraes teve por base o livro O Essencial sobre Wenceslau de Moraes, de autoria de Ana Paula Laborinho.