No âmbito da Coleção Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, fica agora disponibilizado a obra magna, o mais celebrado e mais estudado romance do autor: Os Maias.
Carlos Reis, simultaneamente coordenador da coleção, e Maria do Rosário Cunha prepararam cuidadosamente esta que é a mais recente edição do romance, regressando à sua génese, aos manuscritos, às notas do autor e a muitos outros testemunhos, como a vasta correspondência trocada entre Eça e outras personalidades suas contemporâneas, para reconstituir o texto na versão mais aproximada da intenção do autor.
Na introdução a esta edição, os dois investigadores resumem e interpretam numas empolgantes 40 páginas a sucessão de peripécias em que esteve envolvida a criação de uma das mais importantes obras da literatura portuguesa.
(…) Os Maias podiam simplesmente ter-se perdido, vítimas da desorganização e do desleixo de uma tipografia lisboeta. Felizmente não foi assim (…).
(…)
Uma vez que, em vida de Eça, apenas houve uma edição d’Os Maias — que assim, para todos os efeitos, representa a última vontade do escritor —, poderia pensar-se que esta edição crítica não levantaria problemas de monta. E também por não haver notícia segura da existência de manuscritos autógrafos, de novo pareceria que o caminho estava desbravado, para uma pacífica fixação do texto dos 18 capítulos que a seguir se encontram. (…) Ainda assim, os procedimentos de escrita e as circunstâncias que rodearam a composição tipográfica e a revisão do texto d’Os Maias, ao longo de um lapso temporal muito alargado, determinaram oscilações, vacilações e divergências de vária ordem, que tiveram de ser resolvidos com ponderação verdadeiramente crítica.
(…) Os Maias passaram por um longo calvário de quase dez anos de trabalho, incluindo dificuldades materiais, no respeitante à composição tipográfica e à edição (…).
(…) a 3 de junho de 1882, Eça escrevia a Ramalho: «Eu não estou contente com o romance: é vago, difuso, fora dos gonzos da realidade, seco, e estando para a bela obra de arte, como o gesso está para o mármore. Não importa. Tem aqui e além uma página viva — e é uma espécie de exercício, de prática, para eu depois fazer melhor.»
(…) No «vai e vem» das provas tipográficas, as correções transformavam-se em supressões ou, na maior parte dos casos, em acrescentos entrelinhados ou registados em longas tiras de papel coladas às páginas originais, do que resultava um produto bem diferente do texto que inicialmente chegara às mãos dos tipógrafos.
Desta incessante procura do termo justo e da forma perfeita resultou um conjunto de materiais — manuscritos e impressos — que hoje permitem reconstituir diferentes fases e procedimentos de construção da narrativa queirosiana. Nem sempre, contudo, esses materiais foram preservados, o que pode explicar-se por, pelo menos, duas razões: pela distância física que normalmente separava Eça das tipografias com que trabalhava e pelo descaso de tipógrafos e mesmo de editores, no respeitante a materiais de trabalho (manuscritos enviados para composição e provas emendadas) que, na época, não tinham ainda o valor simbólico, científico e económico que hoje lhes atribuímos.
(…) Precisamente no caso d’Os Maias escasseiam os materiais genéticos que permitam observar as diferentes fases de gestação, de escrita e de amadurecimento do romance onde Eça, conforme escreve ao amigo Ramalho, em 20 de fevereiro de 1881, decidira «[pôr] tudo o que [tinha] no saco». E contudo, no espólio queirosiano que se encontra na Biblioteca Nacional, existem, pelo menos, três manuscritos que podem ser associados à elaboração do romance.
E qual a relação de Os Maias com A Tragédia da Rua das Flores?
Passados mais de trinta anos sobre a desastrosa aventura editorial da publicação daquele manuscrito, há algumas coisas adquiridas e outras que estão por apurar. Está adquirido (até mesmo tendo em atenção alguma correspondência queirosiana que acima foi citada) que o projeto d’A Tragédia e a tentativa da sua realização são anteriores a Os Maias. Parece claro também que, mesmo no estado incipiente em que o texto foi deixado, ele constitui uma tentativa autónoma em relação a Os Maias; o que não impede, é claro, que se fale de ligações entre ambos, no plano genético. Por fim, pode afirmar-se, com alguma segurança, que A Tragédia da Rua das Flores é um texto desequilibrado e inacabado, longe de corresponder àquilo que o escritor exigia de si mesmo, quando decidia dar à estampa um original.
(…)
Os Maias reajustam e reenquadram o tema do incesto, acentuando a sua dimensão trágica, ao mesmo tempo que eliminam a pulsão melodramática que as últimas páginas d’A Tragédia da Rua das Flores exibem. Neste caso, a cena decisiva da revelação do incesto, no encontro de Timóteo com Genoveva, revelação a que se segue o impulsivo suicídio da segunda, não disfarça claras tonalidades de dramalhão romântico da Rua dos Condes, género e ritual de que Eça foi acérrimo crítico.
Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha
«Introdução», pp. 17-58
Eça de Queirós
Os Maias
Episódios da Vida Romântica
Edição de Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha
Coleção Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós
720 pp.
ISBN: 978-972-27-2550-7