
O Livro Branco da Melancolia, o mais recente título da coleção «Plural» é uma antologia que reúne, propositadamente de forma continua e irreferencial, os mais significativos poemas de José Jorge Letria, poeta, ficcionista e jornalista. Conta também com um prefácio de autoria de Yvette K. Centeno.
José Jorge Letria escolhe, para este conjunto de poemas, um título bem sedutor, e ao mesmo tempo intrigante. Uma palavra como Melancolia carrega um forte peso, na tradição cultural, filosófica, artística.
Do tratado de Robert Burton, Anatomia da Melancolia, à célebre gravura de Dürer, passando pelas doutrinas da nigredo alquímica, o negro da alma que anuncia um caminho que levará à sublimação das pulsões mais primitivas do inconsciente, muito nos é pedido para chegar ao entendimento da intenção do autor. Que o Livro seja Branco pode ser um indício, pois é do negro ao branco que o processo de transformação se dará.
Yvette K. Centeno in Prefácio
A PRIMAVERA É SEMPRE UMA PROMESSA
O outono dorme sobre as folhas secas
tricotando o agasalho do meu frio.
fundindo o chumbo entardecido
da tristeza que me fere os dias.
E eu onde estou? Que corpo é este
que envelhece à medida que eu me evado
dos casulos onde a noite se faz lume
para acordar nos olhos os medos mais antigos?
Amanhã pode ser que voltes,
desnudada e grave, para governo
das matérias mais ardentes,
dos assuntos da loucura.
As crianças batem-me à porta,
fugindo sem saberem de quê,
talvez das sombras perfiladas contra os muros,
talvez das palavras desnudadas pelo grito.
As crianças sabem sempre ao que vêm,
querem saber de mim e das histórias
que prometi contar-lhes. Temos a mesma idade.
Com uma diferença: a minha é outonal
e rasgada pela violência de outros dias;
a delas é alada e pura como a toutinegra
que pousa no ramo quebrado da paisagem
para lembrar que a primavera é sempre uma promessa.
O Livro Branco da Melancolia, pág.339