por ANTÓNIO MEGA FERREIRA
É seguro prever que Vasco Graça Moura (VGM) será lembrado sobretudo como excelente poeta, excecional tradutor e ensaísta erudito. Mas as múltiplas dimensões em que exerceu a sua atividade de intelectual (isto é, de homem de cultura com intervenção constante na vida pública), tornam esta memória futura insuficiente para abarcar uma personalidade que foi, a par da sua condição de criador e estudioso, também a de um homem de ação.
Após uma breve passagem pela direção do 1.º canal da RTP, entre 1978 e 1980, foi como administrador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda que VGM marcou duradouramente a vida cultural portuguesa, em especial na sua vertente editorial. Durante cerca de dez anos, que abarcaram quase toda a década de 80, VGM deu à editora do Estado uma dimensão e uma capacidade de intervenção na vida cultural que lhe era até então praticamente desconhecida, dotando a empresa de uma política editorial agressiva e competitiva, que suscitou não poucas reservas aos editores privados, habituados ao ramerrão sonolento da editora do Estado, à qual se atribuía apenas a missão de publicar o Diário da República. No passado, a Imprensa Nacional fora mais, muito mais do que isso; VGM entendia que os novos tempos da democracia exigiam que a editora pública voltasse a assumir um papel de liderança na edição de livros, intervindo não apenas supletivamente em relação aos editores privados, mas, até, em concorrência com eles, quando se se tratasse de privilegiar a cultura portuguesa.
Foi por isso que, nessa década prodigiosa, a INCM editou a Trilogia da Mão de Mário Cláudio, os dois volumes de Post-Scriptum de Jorge de Sena e a poesia de Alexandre O’Neill e António Barahona ou Maria de Lurdes Belchior e Pedro Homem de Mello; as Obras Completas de Nemésio e Almada; coleções de ensaios sobre Temas Portugueses, incluindo autores como Eduardo Lourenço, Antonio Tabucchi, Cleonice Berardinelli ou Eduardo Prado Coelho, e de Clássicos Portugueses, como Tomé Pinheiro da Veiga, Camões (a Lírica, em edição preparada por Maria de Lurdes Saraiva), ou a narrativa cómica Eufrósina de Jorge Ferreira de Vasconcelos; que se abalançou a publicar a edição portuguesa da monumental Enciclopédia Einaudi, dirigida por Fernando Gil; que lançou a coleção «Arte e Artistas», na qual tive a oportunidade de colaborar; que avançou com uma coleção de poesia, «Plural», na qual editaram os seus primeiros poemas alguns jovens poetas portugueses; que abriu uma coleção de «Autores dos Países de Língua Portuguesa», em 1984; que arriscou reeditar em fac-símile prestigiosas edições antigas, como a das Poesias Inéditas de Pero de Andrade Caminha, as Poesias de Sá de Miranda coligidas por Carolina Michaëlis de Vasconcelos ou a Crónica Geral de Espanha de 1344.
Estou a esquecer-me de muito? Sem dúvida. Cito ao fio da memória e, se puxasse ainda mais por ela, ficaria aqui a referir títulos que ilustrariam como VGM tinha da edição o mais alto conceito: para ele, a cultura de um povo mede-se pela capacidade de disponibilizar a toda a gente, em livro, as suas obras mais representativas. Prolongaria esta sua visão no impressionante trabalho editorial que animou quando presidiu à Comissão dos Descobrimentos (CNCDP), entre 1988 e 1995. Para lá do vigor da sua obra literária, é como editor de livros que a obra de VGM mais definitiva e duradouramente me parece marcar a vida cultural portuguesa.
AMF
Março de 2015