Os Anos da Vida de Ricardo Reis (1887-1936), de Nuno Amado, é o mais recente título a juntar-se à coleção de ensaios «Pessoana», uma coleção dedicada ao poeta dos heterónimos, Fernando Pessoa.
Lê-se na Nota Prévia:
Este livro é uma versão condensada da tese de doutoramento que apresentei ao Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, orientada pelo professor António M. Feijó e pelo professor Miguel Tamen, e que defendi em novembro de 2016. Além do argumento central, que obviamente se mantém, não sofreu especial modificação nenhum dos argumentos indispensáveis à progressiva edificação dele. Nenhum emagrecimento se faz, contudo, sem sacrifícios. De fora desta versão ficaram alguns argumentos laterais cuja ausência não fere de morte o argumento central, várias explicações mais demoradas, às vezes de muitas páginas, e várias ideias de que me servira tanto para robustecer os argumentos mais relevantes quanto para mostrar como tudo na obra de Pessoa parece confluir para o tópico em análise, diversas preocupações com o contexto e a tradição poética de que Pessoa é devedor e muitas notas de rodapé de natureza explicativa e tamanho exagerado. A minha expectativa é a de que o produto final, mais económico e elegante, compense a perda fatal de todas essas gorduras queimadas.
Em 4 capítulos (A Formiga e a Cigarra, Um Epicurismo Triste , Corpo e Alma e Um Deus da sua Própria Idolatria), Nuno Amado procura neste ensaio justificar a intuição de que não é possível biografar Ricardo Reis sem que se biografe em simultâneo o seu mestre Alberto Caeiro. O argumento decisivo, em torno do qual essa justificação vai sendo edificada, é o de que Reis e Caeiro correspondem ao lado de fora e ao lado de dentro, respetivamente, de uma mesma criatura dual, assim cindida em gente heterónima.
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Entendido como um prolongamento da criatura una que até aí se chamava Alberto Caeiro, de quem, aliás, procede por partenogénese, Reis é no fundo aquilo que Caeiro passa a ser depois de reparar na fronteira entre o mundo exterior ao alcance dos olhos e a interioridade que se oculta por detrás deles. Não obstante a pouca participação de Álvaro de Campos nesta metamorfose, limitada ao privilégio de comentá-la de perto, o drama em gente de Pessoa é assim encarado nestas páginas como uma tentativa insólita de redescrever, usando poetas em vez de frases, a vexata quaestio da aquisição da autoconsciência.
Desde que a obra de Ricardo Reis principiou a suscitar a curiosidade, têm insistido os mais diversos críticos em observar nela uma ascendência horaciana explícita. Georg Rudolf Lind, por exemplo, lembra que «a primeira associação de Sá-Carneiro ao ler as odes de Reis é Horácio» (Lind, 1981: 132), acrescentando depois que essa pista não foi descurada pelos críticos posteriores. Um desses críticos, Mário Sacramento, refere-se ao heterónimo como «epígono horaciano» (Sacramento, 1985: 66); outro, Ángel Crespo, considera que foi precisamente o epicurismo de Horácio que serviu de modelo ao de Reis (Crespo, 1990: 190); outro ainda, José Augusto Seabra, afirma haver mesmo «na sua poesia um duplo ‘fingimento’ (o de Pessoa-Reis e o de Reis-Horácio)» (Seabra, 1988: 170); Silva Bélkior, um dos mais atentos às relações entre os dois poetas, sustenta que «foi Horácio o mestre e modelo de Pessoa-Reis» (Bélkior, 1982: 7); e António Pina Coelho assevera que partilham «a filosofia da vida» e «talvez um pouco o ritmo íntimo» (Coelho, 1971: 67). Antes de qualquer um deles, porém, já Jacinto do Prado Coelho, porventura o mais influente de todos, advertira para a admirável evidência de que Ricardo Reis, um «poeta derivado» que executa um determinado «horacianismo intencional» (Coelho, 1980: 40), «acusa a influência imediata de Horácio» (Coelho, 1980: 38). De um modo geral, portanto, a crítica pessoana tem consentido em não duvidar desta magnífica genealogia: sem exceções dignas de destaque, tem sido tolerada a tese de que Ricardo Reis, nascido para saciar os apetites clássicos de Fernando Pessoa, mais não foi do que um epígono de Horácio, encarregado de aportuguesar o que o mestre deixara em latim sem, porém, lhe amolecer o arcaísmo.
in Os Anos da Vida de Ricardo Reis (1887-1936), p. 29