O século xıx foi um período da história da humanidade profundamente conturbado. Foi um século de grande desenvolvimento económico, social e político, mas também um século de grandes desigualdades e desumanidade. Mesmo no campo da filosofia e do pensamento em geral, surgiram novos temas e novas ideias como, por exemplo, o problema da liberdade, do progresso, a questão da ciência e da metafísica, as crises financeiras e económicas, a fome, as doenças, o estatuto da razão, a educação, a política, entre tantos outros temas, suscitados graças a uma época em constante mudança e transformação. E de tudo isso nos dá conta José Pereira de Sampaio (1857-1915), portuense que cedo adotou o pseudónimo Bruno.
Sampaio Bruno iniciou a sua colaboração regular na imprensa periódica do Porto em 1872. Tinha apenas 14 anos. A colaboração do precoce publicista era composta por artigos de opinião política, literária e filosófica, intercalada, numa primeira fase, com folhetins de índole romanesca.
Se parte significativa desses textos foi depois aproveitada por Bruno em diversos dos seus livros, os restantes textos continuaram dispersos por jornais e revistas, hoje de difícil acesso.
Reconhecendo a necessidade cultural de reunir, em volume, essa parte da obra brunina, a Imprensa Nacional, em parceria com a Universidade Católica Portuguesa-Centro Regional do Porto, iniciou a publicação de Dispersos, na coleção «Pensamento Português». São volumes que proporcionam um mais completo conhecimento da vida e da obra deste filósofo portuense.
Em 2008 foi publicado o volume ı, que corresponde ao período de 1872‑1879, em 2011 o volume ıı, que corresponde ao período de 1880‑1884, e o volume ııı, que corresponde ao período de 1885‑1891. Em 2016 saiu o volume ıv, correspondendo ao período de 1892‑1899.
Chega agora à coleção o volume v de Dispersos, que corresponde ao conjunto dos escritos do ano de 1900, e onde se reunem 218 dispersos e 8 apêndices. O volume conta com prefácio e coordenação de António Martins da Costa e recolha de José Cardoso Marques.
Nos textos deste período, Sampaio Bruno assume, mais uma vez, as questões sociais, políticas, económicas, educativas e financeiras, com a mesma convicção e compromisso cívico e republicano que sempre defendeu. A luta entre monárquicos e os defensores das novas ideias republicanas continua e acentua‑se neste Dispersos, nomeadamente a luta pelos direitos dos trabalhadores e pela sua dignidade, a luta pelas desigualdades e as injustiças sociais, a luta pela liberdade de imprensa e a defesa dos interesses de Portugal face aos interesses do imperialismo inglês.
Excerto
Mais do que a queda do governo, pode dizer‑se que o assunto do dia foi a notícia do reaparecimento do andaço no Porto. Os jornais da manhã espalharam a notícia na cidade, apesar de ontem se soube do facto, nas redações dos jornais se dizer que o governo pedia sobre ele o maior segredo. Confirmando a notícia dos jornais da manhã, as Novidades dizem não terem dado notícia ontem para não se dizer que queriam vingar‑se dos agravos recebidos da cidade do Porto e acrescentam: «É muito possível que este facto tenha exercido indiretamente certa influência, em concomitância, para a abertura da crise ministerial, por ser assunto extremamente melindroso e por não ser o estado de saúde do snr. José Luciano de Castro o mais próprio para se acudir de pronto aos futuros incidentes ocorrentes, para se providenciar com a decisão e energia necessárias; e esta simples observação formulámos de passagem: Segundo consta, o governo, ao passo que mandava adotar as providências necessárias para se impedir a irradiação da epidemia, fazia também às potências a comunicação prescrita pelos tratados internacionais, a que era obrigado, senão pela sua adesão que não deu a todos esses tratados, por imperioso dever de solidariedade sanitária.» Na persuasão ingénua de que a crise ministerial não representava mais de um episódio, concordante e do mesmo aspeto, do regímen, — ainda assim, uma inquietação de consciência nos tomou ao terminar o nosso artigo editorial de hoje. Perguntámos se todas as máscaras haviam caído; e a da pergunta era a hora em que as máscaras se afivelavam. Os nossos leitores viram já o terrível telegrama que o nosso correspondente de Lisboa nos enviou quando o nosso artigo estava já composto, e que mandámos que seguisse ao texto à última hora. Na verdade, os jornais da manhã de Lisboa, de hoje, chegados à noite aqui, traziam os idóneos e lúgubres esclarecimentos. Assim, o popular Diário de Notícias, da capital, em um suelto, em sua primeira página estampado, com o título, significativo e minaz, de «Peste bubónica», assegurava que, segundo lhe constava, se dera no Porto um caso, já averiguado, de peste bubónica, numa rapariga, que adoeceu em 15 do corrente e que se encontra convenientemente isolada. Acrescentava que fora feita, já, aos governos estrangeiros, a devida comunicação oficial. Como assim?! Como é que aos governos estrangeiros se faz a comunicação da existência, novamente, da peste no Porto, por um único e simples caso, ainda não determinadamente corroborado pelas estações superiores de sanidade pública? Será que o snr. José Luciano de Castro queira criar dificuldades ao snr. Hintze Ribeiro, com a similaridade, para ele, de uma peste, agora, no Porto? Será que contra o Porto haja o propósito de, definitivamente, o matar? Porquê?, para quê?, — e à ordem de quem? Que interesses são estes? Que mistérios são estes? Ou quem estas linhas escreve era, aqui há dias, um delirante de perseguições, um hipertrófico de orgulho, que em toda a parte via a peste? Mas ei‑la, aí: a peste. A peste oficial. (…)
Sampaio Bruno, Dispersos V, pp. 448 e 449
artigo publicado in A Voz Pública, Porto, 11.º ano, n.º 3148, 23 de junho de 1900.
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