18 de outubro de 1950. 13 horas e dez minutos. Manuel Teixeira-Gomes é apeado no cais de Portimão. Chegou na lancha Fomalhaut, desembarcado do Dão, o cruzador da Armada Portuguesa fundeado frente à Praia da Rocha. Não imaginou a derradeira viagem, a partir de Bougie (Bejaia), Argélia. Aqui, no modesto quarto 13 do Hôtel de l’Étoile, secou os últimos dez anos de vida. O silêncio vencera-o, naquele dia, nove anos antes. Em Portimão, teve funeral de Estado. Aguardavam-no Trigo de Negreiros, ministro de Salazar, o presidente da Câmara, as autoridades civis e militares, a família próxima e uma multidão densa, nunca vista. Alves Redol, Mário de Azevedo Gomes, Salgado Senha, Tito de Morais, Virgínia de Moura, José Dias Coelho, Margarida Tengarrinha, e tantos outros. Gente anónima que desabelhou das suas casas ou, de longe, veio prestar-lhe a última homenagem. Uma enorme e inesperada manifestação contra o regime, seguida de repressão bruta e detenções arbitrárias. O costume. Havia um quarto de século que se demitira da presidência da República, a meio do mandato, a 12 de dezembro de 1925. Cinco dias depois, embarca no cargueiro Zeus, o primeiro barco a rumar de Lisboa para o Mediterrâneo. Passa ao largo da sua terra. Ninguém notou.
Na sua mala de porão, a Neverbreak, leva o indispensável. No país, deixa o escusado, que era quase tudo. Prédios rústicos e urbanos, milhares de livros, coleções de arte, objetos pessoais, fortuna notada. E, também, Ana Rosa e Maria Manuela, as filhas. Só não largou a mãe, Belmira, porque já o havia feito, quando se instalou em Londres, como ministro plenipotenciário da República.
Nascera em berço aconchegado. Rua dos Quartéis, n.º 1. Casa vasta com jardins a debruar o rio Arade. Fizera as primeiras letras na melhor escola particular da vila, o Colégio de São Luís de Gonzaga. Aos 10 anos, a separação dolorosa da família para entrar no seminário dos Olivais, em Coimbra. É um dos «filhos da melhor gente do Reino» que o frequenta. Parceiro de carteira de José Relvas. Firma aqui o credo republicano. Nunca o abandonará. Preparatórios do seminário concluídos, segue para Medicina, na Universidade de Coimbra. Tem 15 anos e empenho frouxo. Falta às aulas. Passeia-se pelo Mondego. Convive com os maiores intelectuais da Lusa Atenas. Salta para Lisboa e, depois, Porto, onde se matricula nas respetivas Escolas Médico-Cirúrgicas. Nunca será o médico que o pai quer na família.
O tempo que lhe sobra do estudo que adia é substituído por leituras densas em todas as áreas do conhecimento e por convívios férteis com colegas e amigos, figuras gradas da arte e da cultura, da segunda metade do século XIX.
Guerra Junqueiro, Fialho de Almeida, Fortunato da Fonseca, Joaquim de Araújo, Domingos Ciríaco Cardoso, Sampaio Bruno, Basílio Teles, Marques de Oliveira, Soares dos Reis são alguns dos muitos que o envolvem. Quando se estreia na escrita literária, aos 21 anos, na Folha Nova — periódico do Porto que tinha como colaboradores Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Gomes Leal —, indicia logo que será um deles. Debandara o putativo médico, chegara o escritor. Sem pressa. Só tarde, com um pé nos 40, publicará Inventário de Junho, o seu primeiro livro.
Coimbra, Lisboa e Porto dão-lhe infinita riqueza espiritual. Mas são sorvedouros de dinheiro largo. O pai chama-o à razão. Corta-lhe a mesada. Força-o a regressar a casa. E transfigura-o, de imediato, no caixeiro-viajante de que necessita para expandir o negócio internacional dos figos secos. Culto, loquaz, informado, meticuloso, Teixeira-Gomes, com 25 anos, começa a fazer as campanhas do figo no Algarve. E logo zarpa para o Norte da Europa para os vender. Tem escritório em Antuérpia. Arrecada receitas volumosas. Bem aprovisionado, deambula longos meses pela Europa, pelo Mediterrâneo das múltiplas margens e pelo Médio Oriente. Busca conhecimento e extasias plurais. Frequenta teatros, salas de concertos, catedrais, palácios, exposições, restaurantes, botequins, prostíbulos. É dos viajantes mais incendidos e cultos deste tempo. Quando se aproxima dos 40 anos, arrepia caminho. Estaca na terra. Quer apenas cuidar do negócio familiar, dirigir o amanho das muitas propriedades, amodorrar no seu escritório. E entregar-se à escrita e edição dos primeiros livros. O pasmo da vila, a quietude do rio Arade, as enleantes paisagens de mar e campo atiçam-lhe a criação literária. Tudo parece bastar-lhe. Só que nunca é tarde para um homem se desassossegar. O alvoroço da queda da Monarquia troca-lhe as voltas. Por ela, tanto esperara. E, aos 50 anos, a falar seis línguas, é convidado para representar a República, em Londres. Não tem experiência. Mas a vida cosmopolita de que abusara e o conhecimento pessoal de muitos diplomatas constituem cabedal precioso. Não enjeita o desafio. Não vai passear, apenas, intuição política, inteligência, elegância, cultura. Espera-o trabalho árduo.
Tem de travar a conspiração permanente da Corte portuguesa ali refugiada e obter o reconhecimento internacional da República. Desenvolve um esforço gigantesco, com fraco apoio de Lisboa, para dar resposta às complexas questões diplomáticas. Negoceia, cheio de dúvidas, a entrada de Portugal na Grande Guerra. Debruça-se sobre milhares de dossiês e esgota-se em diligências sem fim. Chega a trabalhar 18 horas por dia. Portugal consegue ficar do lado dos vencedores. Mas em tudo o mais parece um derrotado. Teixeira-Gomes anteviu o enorme desastre militar e humano. Do mal, o menos. Seguraram-se as colónias em África, cobiçadas por aliados e inimigos. Entre notícias do horror e bombardeamentos sobre a capital do império, vive intensamente. Frequenta o melhor da sociedade londrina. Até no Palácio de Buckingham os seus passos ecoam. E o corpo freme, em clubes seletos, festas privadas, concertos promenade, jantares opíparos pela mão do amigo Auguste Escoffier, nos hotéis Carlton e Ritz. Findo o conflito, dirige a delegação portuguesa aos múltiplos fóruns internacionais do pós-guerra, decisivos para o futuro de Portugal e do mundo. É eleito vice-presidente da Assembleia-Geral da Sociedade das Nações.
Prestígio adquirido, sensibilidade política e conhecimento profundo dos grandes dossiês nacionais e internacionais motivaram sucessivos convites para primeiro-ministro e presidente da República. Enjeita-os todos. Aceita apenas um. Com muitas reticências. Em Agosto de 1923, é eleito presidente da República, pelas duas câmaras do Congresso. Contrariado, tem de abandonar Londres, onde está mais do que enraizado. Desembarca em Lisboa. Toma posse. Sorriso descrido. A vida no Palácio de Belém não será fácil para o sétimo presidente da República. Cedo constata a deriva anárquica do país, revoltas militares, greves, atentados bombistas. Bagunça solta, a franquear o caminho para a ditadura. Antevê-a. Conhece bem o exemplo da Espanha de Primo de Rivera, e da Itália de Benito Mussolini. O democrata de sempre não hesita. Sabe que tem as mão atadas. Com metade do mandato por cumprir, bate com a porta. Cinco meses depois, a 28 de maio de 1926, Gomes da Costa toma o poder. Não tardará Salazar e o Estado Novo. Congeladas a democracia e as liberdades. Solto da «gaiola dourada» — no longo hiato de década e meia em funções oficiais —, retoma as viagens da juventude. Deambula, de novo, pelo Mediterrâneo. Regressa à escrita literária. Segue à distância o país. Escreve copiosamente. Muitas e boas razões teve este homem livre para só regressar, sem o saber nem o querer, nove anos após a morte. A pátria acomodava-se a um Estado policial. Tolhia-se no medo, na censura, na repressão. Dela, nada esperava. Da família, muito pouco. Da sua terra, ainda menos: «A vida, aí, anda numa grande mistura de elementos maus, e a inveja tem mais por onde roer, pois esquadrinha por todos os lados e nada lhe escapa. Ela vai até abranger indistintamente pobres e ricos, desgraçados e felizes.» Nesta carta, ainda inédita, expedida da Tunísia para Francisco Corte- -Real, o médico da família, em dezembro de 1929, quatro anos depois de ter deixado para sempre o país, confessava-se sereno e apaziguado: «Grande e constante quietação de espírito; trabalho livre da imaginação ao sabor da fantasia; faculdade de atenção, que me permite ler — embora muito lentamente — quatro horas por dia e escrever outras tantas. E aqui está o quadro da minha saúde, que não parece conter tintas negras.» Assim seguiu. Livre e determinado. Até ao último suspiro. Madrugada de sábado. 5 horas e 10 minutos. 18 de outubro de 1941.
Oitenta e um anos vividos como bem quis este boémio fogoso, negociante arguto, colecionador esclarecido, melómano informado, viajante sôfrego, diplomata presciente, presidente da República dedicado, mas impotente. E, acima de tudo, um dos grandes escritores do século xx.
José Alberto Quaresma, in Prefácio de Obras Completas de Manuel Teixeira Gomes