Discurso proferido por José Manuel dos Santos na Fundação Calouste Gulbenkian, a 13 de dezembro de 2021, por ocasião da apresentação da coleção «Obras de Mário Soares».
Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-Ministro
Senhora Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian
Senhor Administrador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Meu Caro Duarte Azinheira
Caros membros dos Conselhos Científico e Editorial desta Coleção
Querida Isabel Soares
Amigos, admiradores e leitores de Mário Soares
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Lembrar é voltar a ver. Estou a vê-lo sentado à secretária, a escrever. Debruçado sobre o papel, a caneta vai deixando no branco liso das folhas as aranhas da sua letra sinuosa e apenas à primeira vista fácil de decifrar. Ao observá-lo bem, notamos que, na atenção do corpo e na intenção do gesto, há sinais de que aquele movimento do braço e da mão não responde apenas à necessidade de cumprir uma função física e um propósito prático. Há, nesse levar a caneta ao encontro da palavra certa, aquilo que se aproxima de um ritual. E, como sabemos, um rito é sempre a atualização de um mito.
Para Mário Soares, escrever não era apenas fazer o que tinha de ser feito para conseguir a eficácia da comunicação, a memória do registo ou a validade da decisão. Escrever era, para ele, recuperar alguma coisa perdida, que naquele momento lhe era restituída sob a forma de um reencontro com um tempo mais fundo, com os seus sonhos diferidos ou desviados.
Durante a sua longa vida, Soares escreveu milhares de páginas: para afirmar, negar, convencer, defender, protestar, contestar, argumentar, denunciar, exigir, demonstrar.
Escreveu livros, artigos de jornal, discursos, relatórios, programas, processos, teses, cartas, notas, comentários, manifestos, moções, memorandos, diários. Escreveu crónicas, ensaios, biografias, recensões, poemas, ficções, verbetes para dicionários. Escreveu sobre pessoas e acontecimentos, ideias e causas, realidades e utopias. Escreveu sobre Portugal, a Península Ibérica, a Europa, o Brasil, África, o Mundo. Escreveu sobre ele e sobre os outros. Escreveu sobre política, história, direito, literatura, arte, filosofia política.
A escrita e a leitura eram, para ele, aquilo que nos entrega o mundo com maior consciência dele. E também aquilo que nos pode ajudar a decifrar um pouco mais o mistério que somos para nós próprios e para os outros. A leitura e a escrita eram ainda a possibilidade de deslocar o presente mais premente, para alcançar o nó cego do passado ou atingir o centro incerto do futuro.
Quando lhe chegava um livro de alguém que admirava não resistia, mesmo que estivesse um presidente, uma rainha ou um primeiro-ministro a entrar-lhe pela porta do gabinete, a espreitá-lo logo, folheando-o, para adivinhar o prazer que a sua leitura mais tarde lhe daria. Antes de ser um prazer intelectual, era um prazer dos sentidos.
E, se o livro que chegava às suas mãos, vindo da editora ou da tipografia, tinha o nome dele na capa, como autor, notava-se em todo o seu rosto aberto uma alegria orgulhosa que não queria ser afastada nem sequer disfarçada.
Na selva dos seus dias tão densos, conseguia então achar clareiras para oferecer com dedicatória esse livro que ainda tinha o cheiro químico da impressão. E as mensagens que, depois, recebia dos leitores atentos, a dizer-lhe o que a leitura lhes tinha inspirado, sobretudo se eram cartas vindas de escritores, assumiam para ele o valor de testemunhos encantatórios e, nalguns casos, até de testamentos sagrados.
Eu sei que esse era outro mundo e outro tempo: menos agitado, menos instantâneo e também menos descartável (como agora se diz). A escrita e a leitura são trabalhos que exigem demora e sossego, absorção e dedicação. Soares era herdeiro de uma ideia de literatura que se confundia com uma ideia de imortalidade, ou, pelo menos, de perenidade. Ele pertencia a uma linhagem de políticos escritores que viviam no triângulo cujos vértices são a política, a literatura e a história.
Para Soares, um grande político tornava-se ainda maior se tentasse coincidir com um bom escritor. Eram esses os que mais o fascinavam: Mouzinho da Silveira, Jaurès, Clemenceau, Teófilo Braga, Teixeira Gomes, Léon Blum, Manuel Azaña, de Gaulle, Churchill, Mendès France, Senghor, Willy Brandt, Mitterrand, Obama. E talvez fosse o cuidado com a escrita a única coisa que ele absolvia no Salazar que condenava em tudo o resto. Poderíamos ainda acrescentar, em Portugal, os escritores que nunca perderam o fio da política e que ele tanto admirava: Garrett, Herculano, Antero, Eça, Oliveira Martins, Raul Brandão.
Diz-se — e diz-se bem — que toda a vida de Soares foi um combate pela liberdade e foi um caminho para a democracia. Mas, hoje, aqui, eu diria o mesmo de outra maneira: toda a sua vida foi a escrita convicta, constante, vigilante e obstinada de duas palavras. Nos seus escritos, as palavras democracia e liberdade são as palavras que mais aparecem, como um mote, um mantra, uma mensagem. Ou como uma nota que percute o seu som e repercute o seu eco.
Desde a juventude, em Soares, o político e o escritor tornaram-se aliados e cúmplices. Em 1972, Eduardo Lourenço, ao receber a edição do Le Portugal Baillonné, escreveu uma carta ao autor, reconhecendo o livro como uma obra maior: «É o romance político da nossa geração e de agora em diante o espelho em que cada membro dela é obrigado a rever-se para descobrir os fios da sua própria aventura…»
Depois do 25 de Abril, logo em 1976, Lourenço dizia de Soares: «Justamente há [em Mário Soares] qualquer coisa de ‘churchilismo’ no [seu] perfil humano e político.»
Não tenho dúvidas de que, entre todos os tributos possíveis de prestar à sua memória, mesmo no horizonte do centenário que se aproxima, a publicação destas Obras de Mário Soares seria um dos que mais contentamento lhe dariam. Ouso mesmo dizer: um contentamento próximo de uma euforia juvenil.
Nesta coleção, a que o seu vastíssimo legado impõe uma ambição monumental, vão ser publicados livros, documentos, imagens, textos políticos, jurídicos, historiográficos, culturais, doutrinários, literários, memorialísticos, pessoais, quer sejam éditos ou inéditos, reunidos ou dispersos, antigos ou recentes, lembrados ou esquecidos. Será publicada correspondência ativa e passiva, nacional e internacional. Editar-se-ão volumes integrais e antológicos. Vão ser publicados livros feitos em diálogo com outros.
Para que tudo isto possa acontecer, está a ser realizado um persistente e profundo trabalho de inventariação, investigação, decifração e transcrição de manuscritos. Este árduo trabalho, que exige tempo, é feito sobretudo a partir do precioso e inesgotável arquivo Mário Soares, à guarda da Fundação Mário Soares-Maria Barroso, mas também de outros arquivos e bibliotecas.
Há entre nós uma má tradição de dispersar ou não preservar as fontes históricas e memoriais, como os arquivos, disfarçando essa incúria cultural, que José Mattoso considerou um grave índice de subdesenvolvimento, com uma retórica aparentemente hipermnésica e passadista. Por isso, já alguém disse que os portugueses não têm memória — têm saudade. Assim, na coleção que hoje apresentamos existe também, para além do seu valor bibliográfico, historiográfico e politológico, um indiscutível valor de pedagogia cultural e cívica.
Com a publicação dos sucessivos volumes destas Obras, teremos acesso a valiosas e insubstituíveis fontes da história do século xx e do princípio do século xxi. E ser-nos-á dado o retrato — um outro retrato — de um homem que foi fundador da nossa democracia e a seguir nela foi tudo, sendo um nosso contemporâneo capital.
Vamos poder construir uma imagem mais completa e mais complexa de um Soares profundo, disciplinado, estratégico, sábio, organizado, preparado, previdente e até introspetivo, que será muito diferente da visão linear e simplista, tantas vezes divulgada, do grande improvisador instintivo e extrovertido ou do pragmático tático capaz de lances surpreendentes. Aliás, Vasco Pulido Valente, que o conhecia bem, já tinha advertido para esse erro de julgamento, dizendo numa entrevista: «… o Mário Soares prepara tudo, pensa em tudo. Não tem é o ar didático. […] Soares trabalha muito, nunca vi ninguém que o fizesse tanto, e ainda hoje, com 80 e não sei quantos anos, vê-se nos seus artigos como estuda. A história de que não conhecia os dossiês enquanto era primeiro-ministro é um mito que se criou…»
Obteremos também, com a publicação desta coleção, uma ideia mais fundamentada de uma época longa, contraditória e mutável em que Portugal passou da república à ditadura e da ditadura à democracia e ao fim do Império, e em que, no mundo, tudo foi posto em causa, em guerras e revoluções, fins e começos, apogeus e abismos, jogando-se a vida, o destino e a liberdade.
Nesse século xx, ergueram-se e abateram-se sonhos e utopias, esperanças e crenças, ideologias e ídolos, regimes, nações e impérios. De tudo isso vai aparecer, nestas páginas, o reflexo, ora direto, ora indireto, ora luminoso, ora sombrio, mas sempre vigilmente atento.
Das páginas destas Obras de Mário Soares, surge a imagem de um tempo feito de acontecimentos, de pessoas e de palavras. E sai, nítida e imponente, a imagem de um homem que acreditou sempre que, pela liberdade, nos podemos elevar e construir acima dos fatalismos da servidão, vendo nessa liberdade o melhor aliado da dignidade humana e o melhor argumento para um discurso consequente sobre ela.
É, por isso, que esta coleção não fala apenas do nosso passado recente. Fala do nosso presente e do nosso futuro. Fala da vontade de Soares, que em todos estes volumes surge nítida, de consolidar em Portugal uma perene e exigente tradição democrática. Ao confirmarmos nestas páginas que essa foi a mais importante mensagem que Soares quis legar ao futuro, sabemos que ele poderia dizer como Gustav Mahler: «A tradição não é o culto das cinzas, mas a transmissão do fogo.»
Mário Soares viu-se sempre como um representante atualizado e convicto dos ideais do Iluminismo e daquela ideia de razão política e de progresso humano que pode fundamentar uma democracia racional e uma paz, se não perpétua, como propunha Kant, pelo menos duradoura.
Intelectualmente kantiano, Soares era, porém, vitalmente nietzschiano. Este homem que, como ele próprio dizia, tinha os defeitos das suas qualidades, sempre se quis humano e até demasiado humano.
Tudo nele ia ao encontro do que faz a vida ascender. Os seus dias tinham essa energia vital que o levava a agir sem desânimos e a mobilizar os outros sem desfalecimentos. E que o impelia a afrontar a adversidade sem desalentos. Num retrato que fez dele, Sophia de Mello Breyner Andresen fala da sua coragem e da sua «forma especial de ser corajoso». Era uma coragem que «mantinha, em todos os momentos, não só o bom senso e a calma, mas também o sentido de humor e o gosto da vida. Não era só coragem o que nele havia, mas também aquilo que se chama ânimo. Tinha um dom especial para criar à sua volta um espaço de ânimo».
Por ter falado em Nietzsche, não resisto a contar uma história. No meio daquela desolada campanha das últimas eleições presidenciais a que Soares concorreu, num dia em que o frio dava à chuva uma melancolia metálica, fui com ele almoçar a um restaurante perto daqui.
Comíamos um peixe cozido tão pouco festivo como o dia, enquanto o empregado se desfazia em gestos de simpatia. Ao pôr o café na mesa, alteou a voz e disse: «Tenho muita admiração pelo senhor doutor. Votei sempre em si. Acho que o país lhe deve muito.» Com aquele instinto político que não perdia a oportunidade de se exercer nos momentos certos, Soares respondeu-lhe: «Então espero que, nestas eleições, continue a votar em mim.»
O homem olhou-o, com um olhar entre espantado e aflito, exclamando: «O senhor doutor desculpe, mas não me pode pedir isso. Continuo a admirá-lo muito, mas o senhor tem já mais de 80 anos…». O empregado afastou-se e, com o olhar baixo, parecia contar os passos que ia dando. No rosto de Soares, havia uma fúria contida misturada com a nostalgia de horas mais gloriosas.
Eu citei-lhe um aforismo de Nietzsche: «A arte existe para que a verdade não nos destrua!» Levantámo-nos e o empregado acorreu para se despedir. Então, esquecendo-se do que acabara de dizer e com aquela inocência que desconhece a lógica e é tão encantadoramente portuguesa, exclamou: «Desejo ao senhor doutor muita sorte nas eleições. Ainda gostava de o ver outra vez como Presidente…»
Soares sorriu e, quando saímos do restaurante, decidiu vir aqui visitar uma exposição que queria ver (António Carneiro). Continuava a chover, mas, enquanto olhávamos as pinturas e os desenhos, era como se o sol tivesse aparecido. No fim, quis ir comprar livros e, ao ver a felicidade dele, voltei a lembrar-me do aforismo de Nietzsche…
Nos dias a seguir a essa eleição presidencial, e ao que nela aconteceu, Soares recebeu uma inesperada carta de Agustina Bessa-Luís, na qual a escritora lhe manifestava a sua admiração e a sua indignação pelo resultado tão injusto e desajustado da sua estatura e do que o país lhe devia. Soares respondeu, agradecendo-lhe as palavras amigas e solidárias, mas não resistiu a dizer — a ela e a si próprio: «Agora já estou noutra. A trabalhar na Fundação e num [novo] livro.»
Estas duas cartas inéditas serão publicadas nesta coleção e é também para isso que ela serve. Aliás, os volumes da Correspondência Cultural, nos quais estas cartas se integram, representarão um contributo insubstituível e muito surpreendente para uma história cultural portuguesa do século xx e das primeiras décadas do século xxi.
No seu arquivo-oceano, ou talvez galáxia, o número de documentos é imenso e a matéria‑prima que trabalhamos é enorme. É mesmo desmedida. Mas, se há palavra que não é estranha a Soares, essa palavra é grandeza. Havia nele uma desmesura que se tornava a régua e a regra de tudo. Essa era também uma forma de ser livre!
Ele odiava a pequenez dos que, embora muito senhores de si, não sabem olhar o mundo com a vastidão que ele tem. Lamentava aqueles que trocam o dever — e o prazer — de ler, de escrever, de pensar, de questionar, de compreender, de agir, de rir, de se pôr em causa, pela segurança arrogante e a autossatisfação convencida que os sucessos fáceis, as certezas falsas, os dogmas acríticos e os lugares comuns oferecem.
A vida de Soares é um manifesto de desobediência contra o conformismo que tudo normaliza, anestesia e diminui. Por isso, um dos seus prazeres — visceralmente democrático — era conversar com Cesariny, O’Neill, Luiz Pacheco, Natália, Sophia, Agostinho da Silva, Vieira da Silva, Pomar, Saramago, Lobo Antunes (e cito apenas alguns dos mais ferozes). Nessas conversas, as horas passavam e ninguém se cansava de ninguém. De todos eles e para todos eles há cartas magníficas que vão ser publicadas. Como poderia não as haver, já que, como Soares disse um dia, esses que interrogam e inquietam, que criam beleza e saber, são, afinal, o sal da democracia?!
Nas páginas destas Obras de Mário Soares, estão as palavras da resistência e as palavras da liberdade, as palavras da oposição e as do poder. Estão os momentos de vitória e os de derrota, os gestos vertiginosamente fulgurantes e as decisões sabiamente amadurecidas. Estão a paciente sementeira de ideias e a colheita às vezes dececionante dos seus frutos. Está uma coragem, tão densa que quase se podia tocar, e está a indignação perante a cobardia amedrontada ou oportunista. Estão o dito e o interdito. Está a meditação mais íntima de decisões que mudaram o destino do país e está a sua comunicação mais pública. Estão as cóleras e as gargalhadas, as alianças e as ruturas, os conceitos e os preconceitos, o palco e os bastidores, a política nacional e a política internacional. Estão a mulher Maria de Jesus, os filhos Isabel e João, os netos. Estão os amigos, os camaradas, os aliados e também os adversários. Está o tempo fugidio do presente, mas também a longa sedimentação do passado e a falível imaginação do futuro.
Ao ler estes livros ficamos a saber muitas coisas que não sabíamos e lembramos muitas coisas que havíamos esquecido.
Descobrimos, por exemplo, que, em 1943, Álvaro Cunhal lhe escreveu uma carta a dar conselhos de formação moral e intelectual, fazendo nesses conselhos o seu próprio autorretrato.
Ficamos a saber que ele preparou para os programas da oposição democrática capítulos sobre política agrícola ou sobre política de educação, fundamentados em dados estatísticos que conseguiu recolher.
Descobrimos que Soares enviou, em 1971, o manuscrito inacabado do Portugal Amordaçado ao escritor e resistente Jorge Semprún, que tinha estado preso no campo de concentração de Buchenwald, pedindo-lhe opinião sobre o livro.
Ficamos a saber que, em 1972, Francisco Sá-Carneiro lhe escreveu uma carta para Paris, manifestando o desejo de o conhecer.
Apuramos que, nesse mesmo ano, Soares foi de Paris a Madrid para entregar Le Portugal Baillonné ao novo cardeal-patriarca de Lisboa, Dom António Ribeiro.
Descobrimos que, em 1974, Snu Abecassis, editora das Publicações Dom Quixote, escreveu uma carta a Mário Soares, a protestar por ele ter publicado o Portugal Amordaçado, na versão portuguesa, noutra editora em vez de ser na dela.
Ficamos a saber que Mário Cesariny escreveu uma carta a Soares a informá-lo de que não poderia ir a uma receção no Palácio da Ajuda porque não tinha fato escuro, ao que o Presidente respondeu: Venha como quiser, pois até acho que o fato escuro lhe ficaria muito mal.
Podemos verificar que, já em 1993, ainda Presidente, Soares escreveu: «… desaparecida a União Soviética, destruído o projeto comunista à escala planetária e desfeito o espantalho do ‘perigo vermelho’ — que então era real —, os comunistas hoje formam um partido como outro qualquer, sem haver razão para exclusões, desconfianças particulares ou discriminações, no espectro pluripartidário de uma sociedade aberta e livre, como a nossa.»
Ficamos a conhecer a carta que a poeta Adília Lopes lhe escreveu, dizendo: «… costumo pensar em si como o meu Prozac. É, o Dr. Mário Soares é antidepressivo. Uma âncora, um farol.»
Esta é uma coleção que é de um político, mas é o contrário de uma coleção de propaganda política. Os livros são todos criticamente contextualizados por historiadores, amplamente documentados, minuciosamente anotados. É uma coleção de rigor e método, que se faz para a história e para a historiografia, para a memória e para o futuro.
Tem sido este um trabalho realizado a várias mãos. Quero, antes de tudo, agradecer à Isabel e ao João Soares a confiança, a disponibilidade e a cumplicidade amiga. Agradeço à Imprensa Nacional e ao Duarte Azinheira, seu diretor editorial, o empenho, o apoio e a criação de boas condições para se fazer o que é preciso ser feito. Expresso a minha gratidão à Comissão Científica, constituída por prestigiados historiadores e académicos, enaltecendo o entusiasmo atento, o acompanhamento vigilante e o bom conselho que nos têm dado. Testemunho o meu reconhecimento aos membros da Comissão Editorial pelo seu sentido de missão. Quero registar, neste momento, a colaboração diária do Pedro Marques Gomes, agradecendo-lhe também, e à Teresa Clímaco Leitão a laboriosa investigação que fazem com competência inexcedível. Estou reconhecido ao diretor de arte e designer da coleção, João M. Machado, pelo bom gosto, a imaginação estética e a aptidão para resolver problemas. Agradeço muito e sempre à Fundação Mário Soares e Maria Barroso a colaboração insubstituível e cúmplice.
Escolhemos, para apresentar esta coleção e como seu Volume 0, o primeiro livro que, aos 25 anos, Soares publicou, com prefácio de Vitorino Magalhães Godinho. Trata-se do estudo sobre As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, destinado a ser a tese da sua licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas. No momento da defesa, houve um grave incidente político-académico com um dos membros do júri, deputado da União Nacional, levando o aluno, indignado, a arrancar-lhe a tese das mãos, recusando-se a ser avaliado por tal professor e dizendo-lhe na cara o que pensava dele e do seu comportamento. Foi uma atitude de lendária e fulminante coragem, admirada e enaltecida por todos os que lhe escreveram depois cartas, neste volume também publicadas.
Este ensaio é agora editado em fac-símile, com notas de leitura e uma carta de António Sérgio, que não gostava nada de Teófilo, mas louvou Soares por ter conseguido pôr um pouco de ordem no pensamento caótico do doutrinador republicano.
Ao publicar-se este volume, evidenciam-se algumas grandes marcas da biografia intelectual e política de Soares: a ligação entre pensamento e ação, cultura e vida, escrita e política, ideias e combate por elas; o interesse constante pela História e pela história das ideias políticas; o desejo de meditar sobre os erros do passado português, prevenindo a sua repetição no futuro; a abertura não dogmática do pensamento e o exercício do espírito crítico; a pluralidade de influências intelectuais e doutrinárias; a coragem política e cívica como norma ética de vida.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
À hora em que o dia repousava e chegavam dos jardins do Palácio de Belém o grito rouco dos pavões, era o tempo da conversa que a outras horas não havia tempo para fazer. O Presidente sentava-se num sofá largo e confortável do seu gabinete e ou começávamos a falar de política para acabar a falar de literatura ou principiávamos a falar de literatura para terminarmos a falar de política.
Mário Soares confessou um dia: «É certo que sempre tive, talvez, uma visão literária da vida e das personagens romanescas ou não, que encontrei no meu caminho. Adquiri o hábito de inventar histórias, totalmente ficcionadas, das pessoas que conhecia e, por esta ou aquela razão, me interessavam.» Talvez Soares também quisesse dizer com isto que a política, por se querer tão real e até mesmo tão realista, é não raro a ficção das ficções, ora esplêndida, ora trágica. Shakespeare já tinha dito isso e Fernando Pessoa não o disse menos nem pior.
Soares confidenciou um dia que trocava todos os altos cargos que teve, e que considerou sempre republicanamente transitórios e efémeros, por um grande livro que perdurasse na memória humana. Muitas vezes, falou em dar aos anos tardios da sua vida a possibilidade de uma escrita que fitasse o tempo que por si tinha passado e que havia ajudado decisivamente a configurar.
Queria voltar a olhar esse tempo ido, com as suas figuras, memoráveis ou passageiras, e com os seus acontecimentos, decisivos, significativos, ou apenas divertidos (ele prometia um livro sobre os cinco funerais de Estado mais divertidos em que tinha participado). Esse seria um tempo de escrita e de atento afastamento do mundo de todos os dias, trocado pelo mundo que dura mais do que o mundo que todos os dias passa.
Para isso, fez várias tentativas, mas, ao fazê-las, era o primeiro a saber que essas seriam tentativas falhadas ou adiadas. Numa vida que subiu sempre à altura da vontade mais firme, esta talvez tenha sido a única falha da sua vontade — a de se entregar a si próprio e de deixar que os seus dias se tornassem mais silenciosos, solitários e sedentários, conduzidos por uma mão vagarosa que escrevesse o que apenas por ele poderia ser escrito.
Isso não aconteceu senão por breves intervalos entre várias azáfamas e sucessivos afazeres surgidos ou inventados como inadiáveis. Além da tal única falha de vontade, este talvez tenha sido também o único remorso de uma vida a que só chegavam os remorsos dos outros. Ele sabia que o político não tinha facilitado a vida ao escritor. Mas foi assim que se manteve até ao fim em ação, facilitando-nos, afinal, a vida a todos nós.
Aconteceu a Soares o que acontece a todos os escritores, a todos os criadores, a todos os construtores. No fim da vida, há em todos eles o sentimento de que alguma coisa, porventura a mais importante, ficou por fazer.
Seja como for, o que Soares foi escrevendo e o que foi conservando constitui uma obra incomparável, um universo extraordinário, um património valiosíssimo, um testemunho vivo, um legado insubstituível, cheio de potencialidades e de surpresas. É, para a história, a política e a literatura de ideias, tão inesgotável como a arca de Fernando Pessoa tem sido para a literatura.
Caras Amigas e Caros Amigos,
Em 1994, Eduardo Lourenço fez de Mário Soares um retrato que diz em palavras aquilo que o retrato de Júlio Pomar diz em pinceladas e cores:
«Mário Soares é democrata como quem respira. Nem o longo eclipse da liberdade o impediu de viver a opressão como excecional e a Liberdade como regra. Se a fórmula não o ofendesse, pelas suas ressonâncias, é um democrata orgânico e por esta autêntica religião da Democracia rege a sua ação para o presente e aposta num futuro que tenha as caras do seu otimismo político e mesmo humano.
De algum modo tem sido esse otimismo, quase por contágio, que insensivelmente habituou a sociedade portuguesa a viver-se democraticamente. Talvez mais do que tudo pela sua maneira, tão pessoal, de ‘humanizar’, até nos limites do risco, o que ele sabe não ser, em última análise, humanizável: o Poder. Mas sob o Presidente, e coexistindo com ‘o animal político’, tão celebrado, qualquer [um] adivinha o antigo estudante rebelde, contestatário, o amoroso da vida, dos livros, da sublime desordem sem a qual a mais razoável das ordens, mesmo a da Democracia, é uma prisão.»
Dito isto, só falta dizer que o autor que hoje celebramos, tanto como celebramos o político e o amigo, continua, pela sua palavra, reencontrada ou redescoberta nas páginas desta coleção, a dar-nos aquela mensagem de otimismo que só aqueles que fazem da sua vontade um caminho para os outros podem ter.
Quem, de Mário Soares, conheceu a veemência feita vida, a vontade de agir sobre o mundo, a voz vibrante e o olhar aberto, a gargalhada sonora e o fervor de deixar a marca do seu rosto no pano de verónica da História, a familiaridade com os combates mais duros e as esperanças mais audazes, quem o conheceu e quem nele reconheceu isto tudo, como pode aceitar que ele não esteja aqui, hoje, nesta sala onde tantas vezes esteve, para receber o livro que lhe entregamos, como tributo por tudo o que foi, representou e continua a representar?
Imaginemos então, como se Mário Soares aqui estivesse connosco, o seu sorriso solar e o seu aceno firme e forte de reconhecimento. Esse é um aceno feito com a mão que, em momentos decisivos, escreveu as palavras que se tornaram inseparáveis da nossa vida e da nossa liberdade.
Muito obrigado,
José Manuel dos Santos