Damos a conhecer aqui um excerto do 1.º capítulo deste volume.
Cosmos
Mário Cláudio iniciou a sua atividade de escritor sob o signo de Afrodite. Ciclo de Cypris, de 1969, constitui o incipit de uma carreira literária à qual assenta bem o jogo de predicados extensa, intensa e densa, atendendo a meio século de diuturna e incessante lide literária, sufragada pelo labor primoroso e atilado de uma ars scribendi que prima pela densidade semantico‑pragmatica, a dar forma justa à elevação dos juízos, à observação acutilante, ao fulgor criativo, ao manancial cultural e histórico. A diversidade de gostos e interesses e a flexibilidade estilística materializam‑se numa obra poliédrica, composta por um leque alargado de géneros e tipos textuais, que se estende ao romance e à novela, ao conto, à poesia, ao teatro, à crítica e ao ensaio, à crónica e à tradução.
Fulgurante é também o seu percurso como escritor. Lautamente aplaudido pela crítica especializada, reconhecido pelos pares, consagrado coletivamente pelas mais prestigiantes distinções florais, admirado e correspondido por uma elite de indefetíveis leitores, também da parte das instituições académicas Mário Cláudio tem merecido vivo interesse e aturado estudo, vertido em teses de doutoramento, colóquios e várias publicações científicas.
Cabe aqui destacar os eventos científicos que a Universidade da Beira Interior tem dedicado ao autor, congregando uma plêiade de leitores e estudiosos da obra claudiana, cujos trabalhos se encontram reunidos em vários volumes referidos na bibliografia final, sendo o último já de 2018, coordenado por Carla Luís, Alexandre Luís e Miguel Real, sob o título Vida e Obra de Mário Cláudio (Covilhã/Porto, UBI/Fundação Engenheiro António de Almeida). O mais recente número da Revista do Centro de Estudos Portugueses (vol. 38, n.º 59, janeiro‑junho de 2018) da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais é inteiramente consagrado à obra do escritor. Uma outra coletânea merece aqui destaque, falamos de Mário Cláudio. 30 anos de trabalho literário (1969‑1999), com coordenação e recolha de textos de Laura Castro (Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida/Livraria Modo de Ler, 1999). Dentre as monografias salienta‑se a de Joaquim Matos, Mário Cláudio: Ficção e ideário (Porto, Edições Caixotim, 2004); a tese de doutoramento do brasileiro Mozahir Bruck, «A denúncia da ilusão biográfica e a crença na reposição do real: o literário e o biográfico em Mário Cláudio e Ruy de Castro», defendida em 2008, em Belo Horizonte; e, mais recentemente, a tese também de doutoramento de Carla Luís, «Língua e Estilo: um estudo da obra narrativa de Mário Cláudio» (Universidade de Tras‑os‑Montes e Alto Douro, 2011).
Para além disso, a obra de Mário Cláudio tem atraído desde o início a atenção de alguns dos mais conceituados académicos e críticos literários do mundo lusófono, de que tem resultado um número bastante significativo de trabalhos de fina análise literária. Entre eles, Álvaro Manuel de Machado, Ana Paula Arnaut, Annabela Rita, Arnaldo Saraiva, Brunello de Cusatis, Carlos Reis, Dalva Calvão, Ernesto Rodrigues, Gabriel de Magalhães, Isabel Ponce de Leão, José Cândido de Oliveira Martins, José Carlos Seabra Pereira, Manuel Frias Martins, Maria Bochicchio, Maria Theresa Abelha Alves, Maria Alzira Seixo, Maria do Carmo Sequeira, Miguel Real, Teresa Carvalho, Teresa Cerdeira. Cultor de um estilo que exegetas e admiradores tendem a filiar na tradição barroca e de uma sintaxe, por vezes, no limite da opacidade e da charada, Mário Cláudio inscreve‑se conscientemente nos antípodas da escrita fácil, rotineira e de consumo imediato que peja os mercados do momento, filiando‑se orgulhosamente na estirpe dos imarcescíveis vates nortenhos, onde pontificam Camilo Castelo Branco, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoaes, Tomaz de Figueiredo, Agustina Bessa‑Luis. Não espanta, pois, que os leitores ocasionais ou menos experimentados desistam ao cabo de algum tempo, com alegações de escrita ininteligível, inacessível, obscura . É certo que atravessar o pórtico órfico do universo Claudiano exige ao neófito algum esforço iniciático; contudo, uma vez integrado e familiarizado com os códigos tecnico‑compositivos e ideotemáticos, o leitor verá o seu investimento ser largamente compensado, colhendo na leitura uma sensação prazerosa e gratificante, como poucas no contexto da literatura portuguesa contemporânea.
A sua forma de escrever permite fruir do objeto literário para lá do seu encadeamento romanesco, que muitas vezes é escasso, concitando a atenção do leitor para o tecido verbal. O autor opera como que um processo de desterritorialização da linguagem — para usar o famoso teorema de Deleuze e Guattari — que põe em foco o sistema comunicativo e causa um efeito de estranhamento em relação à linguagem comum, trazendo a enunciação para o primeiro plano da hierarquia narrativa. Ao mesmo tempo, compele o leitor a um correlativo processo de desautomatização da leitura e a uma perceção renovada da língua.
Com efeito, ler a sua obra é, antes de mais, dar‑se conta da riqueza exuberante do nosso património lexical, da plasticidade ilimitada da nossa gramática e dos belos efeitos de talha que a habilidosa mão do artista dela consegue extrair. Encarado como modo de vida, o ofício literário assume foros de ciosa e tenaz labuta no quotidiano do autor, para o qual concorre com férrea disciplina diária, que justifica a ubérrima safra. E se quantidade e qualidade raramente se conciliam, no caso do ficcionista portuense, é tão mais assinalável a sua prolificidade quanto esta não se faz à custa de redundâncias e flutuações. A sua obra, sendo muito diversa em assuntos, géneros e até dimensão, prima pela consistência e elevação que a mantêm arreigada aos altos padrões de excelência a que sempre nos habituou. (…)