Ficha
«Todas as pessoas que se interessam por livros, em Portugal, conhecem o ‘Dicionário Bibliográfico Português’, valioso trabalho de Inocência Francisco da Silva, que começou a publicar-se em meados do século passado. O autor não chegou a completar a sua obra, que Brito Aranha resolveu continuar, mas nem por isso ela deixa de constituir um dos mais preciosos elementos de consulta de estudo de que dispõem ainda os bibliófilos portugueses.
O dicionário de Inocêncio, com todos os volumes publicados, representa hoje uma raridade bibliográfica, fora do alcance das bolsas menos abastadas, mas o seu autor, incompreendido e mal recompensado, viu-se em sérias dificuldades não só para editar o trabalho, como para reunir os elementos que o constituem, dada a falta de recursos com que lutou.
Inocêncio Francisco da Silva teve uma vida dura. Depois de passar pelas aulas de desenho e arquitetura, sem grande interesse, concluiu o curso de comércio, então indispensável para o acesso aos lugares públicos, e completou, com excecional aproveitamento, os estudos de matemática na Academia da Marinha. Aos 24 anos, quando o seu diploma lhe podia dar ingresso na Armada, encontrou-se envolvido nas lutas da guerra civil, com um vago posto de oficial inferior das forças liberais.
Espírito superior, formado no amor dos livros e dos grandes princípios morais, Inocêncio não quis alegar os seus serviços para obter qualquer situação oficial. […] Mas, apesar das raras faculdades de trabalho que desde logo revelou, não foi brilhante a sua carreira de funcionário público, sob o ponto de vista material. Sobretudo, nunca lhe facultou os meios de que carecia para poder dedicar-se à obra literária que já então planeava. […]
O primeiro volume do dicionário
Foi preciso o incitamento persistente de determinados amigos e a influência de outros para que em 1858 saísse, finalmente, o primeiro volume do ‘Dicionário Bibliográfico Português. Estudos de Inocêncio Francisco da Silva, aplicáveis a Portugal e ao Brasil’. A obra era publicada pela Imprensa Nacional mas a verdade é que o patrocínio do Governo não era suficientemente forte para livrar o autor de dificuldades e assegurar a sua saída até final.
Publicou-se, todavia, com regularidade, até ao 5.º volume, que começa no artigo sobre José Maria de Abreu e Lima e acaba em Manoel Inácio Nogueira. Aí, sofreu a sua primeira suspensão. O Governo resolveu, com efeito, conceder-se uma ajuda, mas o interesse das instâncias oficiais fora arrancado por favores pessoais e não por um sincero reconhecimento do valor cultural da obra. O auxílio, que consistia apenas na cedência de certo número de exemplares, a princípio quinhentos, não o livrava sequer das obrigações burocráticas do seu modesto cargo.
O dicionário fora acolhido com entusiasmo no meio restrito dos homens de letras de Portugal e lograra despertar também vivo interesse entre muitos eruditos estrangeiros, mas isto não era bastante para assegurar a continuidade de uma obra tão dispendiosa, cuja tiragem se fixara em mil exemplares.
A famosa carta de Moscovo
Foi nessa altura que Inocêncio Francisco da Silva recebeu de Moscovo uma carta que havia de ter influência decisiva nos destinos do seu trabalho. É o relato pormenorizado dessa benéfica intervenção de um erudito russo que encontramos agora numa revista jugoslava intitulada ‘Zvesda’, assinado pelo jornalista eslavo Alexandre Novikov, que fornece dados e cita nomes perfeitamente confirmados por algumas referências de biógrafos portugueses de Inocêncio.
Já em tempos, o investigador português recebera, entre estimulantes palavras de incitamento de vários pontos da Europa, uma simpática carta de Moscovo, escrita em puro idioma lusitano, e que, além do testemunho de admiração, continha o pedido de uma assinatura. Firmava a missiva um bibliógrafo muito conhecido pelos seus trabalhos de investigação direta levados a efeito em Espanha e na França: Sergei Alexandrowich Sobolewski. A suspensão da publicação do dicionário provocou nova carta daquele estudioso. Que se passava com tão valiosa edição? — perguntava admirado.
Exasperado, Inocêncio desabafou com o seu leitor moscovita e contou-lhe as dificuldades com que deparava para prosseguir o seu trabalho. A resposta de Sobolewski não se fez esperar e com ela vinham palavras de estranheza pelo facto dos parlamentares portugueses e brasileiros não terem ainda votado uma recompensa condigna ao homem que estava a prestar tão relevante serviço à cultura dos seus países.
[…]
O caso assumiu proporções sensacionais e em 5 de março de 1862 o deputado Torres e Almeida levou o assunto à Câmara, advogando a causa de Inocêncio. […]
[…] Foi, realmente, a partir dessa inspirada atitude do estudioso russo que se verificaram determinadas manifestações de solidariedade para com Inocêncio Francisco da Silva, a quem acabou por ser concedido o hábito da Torre e Espada… […]»