Ficha
«(Continuado do n.º 10)
Deu-me vontade de rir com a resposta do garoto, mas fui-lhe sempre dizendo:
— Pois sim, traz tu pedras onde quiseres, mas vê se me deixas agora, porque tenho de trabalhar.
— Mas antes disso, diga-me o pai uma coisa. Não me poderia o pai arranjar lá para a escola da Nacional?
— Para quê?
— Ora para que havia de ser? Para aprender a arte! Creio que sempre se aprenderá melhor do que cá fora!
— Pois enganas-te redondamente.
— Ora essa!… Então os verdadeiros mestres não estão na Nacional.
— Isso é conforme quisermos ver as coisas. Também há por aí muita gente que sabe curar certas doenças às vezes melhor do que os médicos, mas como só estes é que estão autorizados a fazê-lo, por muito que saibam, nunca se lhes pode chamar médicos. O mesmo acontece com os mestres da Nacional. Se se fizesse um exame cá fora, embora fosse numa casa onde estivessem as sumidades da arte, ficava sem valor, porque só os da Nacional têm valor… para a entrada.
Acontece porém, muitas vezes, ou talvez dizendo melhor, esse exame não tem valor algum, porque o que sempre pega (e isto é que é sempre), são os pedidos, os empenhos, as cunhas, como se diz em calão tipográfico. Tu podes saber unicamente pôr letras em pé, seres muito estúpido, mas se arranjaras uma cunha boa, entras com certeza.
— Então se tiver mérito só?
— Ah!… Isso só… não serve!… O que se quer são cunhas… muitas cunhas…
— Mas para entrar para a escola também são precisas cunhas?
— Ah!… Para aí então não são só cunhas, é preciso ser pelo menos, pelo menos… bacharel!…
— Bacharel!? — exclamou o rapaz com os olhos quase a saltarem-lhe das órbitas, de espantado que ficou.
— Sim, homem! Então julgavas que era só o teu examesito de português e de francês, o suficiente para entrar para aprendiz de compositor?!… Estás enganado!… É necessário, pelo menos, saber bem francês, inglês, espanhol, italiano, alemão, grego, chinês, turco, russo; perceber de história pátria, história de Roma, história da Carochinha; desenhar como Gustave Dauré, pintar como Rubens, saber química, física, botânica, e depois disto tudo, ter cunhas…
— Com os demónios!… Parece-me que o pai está a brincar comigo!…
— Não estou, não. Pergunta, e verás.
— E depois de saber isso e entrar quanto se vai ganhar?
— Parece-me que se entra ganhando um tostão por dia…
— Está feito!… Já é de sobejo para um jantar de galinha, porque essas com dez reis de milho ficam jantadas.
— Sim, lá isso é.
— Mas aprende-se depois a arte?
— Aprende-se o quê?
— A arte, a ser tipógrafo!
— Não, homem!… O que se aprende é a ser… indolente!
— Indolente!?…
— Já se vê. Então que diabo queres tu que aprenda um rapaz, na costumeira de fazer tudo pachorrentamente, sem lhes darem pressa e demais a mais, com métodos ronceiros do tempo d’el-rei D. Marmello? A maior parte deles, quando saem da escola, para as oficinas, são uns completos açordas que nada sabem e andam muitas vezes a perguntar aos outros, como se faz isto ou aquilo.
— O pai deixa-me abismado!…
— Pois olha que te estou dizendo a verdade. E ainda te vou dizer mais: se algum sai cá para fora, a trabalhar nas casas que há por aí, então é que é ver asneiras!…
Vêm cheios de prosápia, dizendo à boca cheia, todos cheios de presunção: ‘Eu aprendi na Imprensa Nacional’ mas se os visses trabalhar, fartavas-te de rir!… Nem uma imposição sabem fazer!…
— Pois senhores, o que o pai me tem contado é deveras assombroso. Sempre julguei que ao menos a escola servisse de alguma coisa.
— Ah! Lá isso serve!… Sempre tem para ali empregados, meia dúzia de indivíduos, que precisam ganhar dinheiro!
— Ah! Sim, só para isso!…
— Para mais nada.
— E o Estado a pagar.
— Está claro.
— O que me rala é não haver alguém que olhe para isso!
— Quem querias tu que olhasse?
— O administrador ou quem dirige a casa!
— Mas eu não te disse já que o administrador não percebe nada de tipografia?!… Eu até julgo que ele nunca entrou numa casa dessas, antes de ser administrador daquela!… É médico e mais nada.
— Com que então um médico é que está à testa de uma tipografia!?… Bonita coisa!?… Algum dia vou encontrar o pai a dirigir o Hospital de S. José!… Ah!… Ah!… Ah!…
— Ora! Ora!… Não digas isso a brincar que talvez tivesse mais jeito para isso do que o outro tem para administrar a Imprensa!…
Tu verias como tratava tão bem os doentes, que nunca mais voltavam ao Hospital. Fazia-os sair todos pela Porta do Carro!…»