Ficha
«Acabo de receber do Brasil o dicionário português Aulete, o dicionário predileto que pertenceu ao meu pai. São dois grossos volumes encadernados à moda de Portugal, e editados pela Imprensa Nacional de Lisboa, no ano de 1881.
Quantas recordações esses dois volumes me trazem à mente! Quantas lembranças queridas de minha juventude esses dois livros não avivam agora — agora que o tempo, a distância e a fatalidade me separam daquele santo homem que os tinha sempre ao seu lado, sempre ao alcance da sua mão, para as consultas rápidas do seu trabalho! Quantas saudades esse dois livros queridos não aviventa, hoje — quantas reminiscências não despertam em meu coração!
O Aulete morava na secretária de meu pai, ao lado direito, perto do Código Civil Brasileiro. E como era mais cómodo e mais estético — os dois volumes ficavam em baixo do Código. Homem de ordem extraordinária, meu pai não permitia que o Código ficasse escorando os dois gordos livros da nossa língua. Terminada a consulta — o Aulete ia para a sua casa, a lombada escura do lado de fora, num contraste chocante com a encadernação escarlate do Código.
Abro hoje aqueles volumes com uma comoção irreprimível. Lá estão, marcados os vocábulos que vieram à discussão ou os que suscitaram dúvidas e polémicas; os exemplos que ele escreveu à margem, com a sua letra fina e talhada; os apontamentos, as anotações, os lembretes — tudo agora perpassa diante dos meus olhos rasos de lágrimas.
Às vezes, na peroração de um discurso que meu pai ditava, minha pena titubeava. Era a dúvida. Como ‘s’ ou com ‘ç’? A pouca idade não me animava a confessar a ignorância. A pena fica suspensa, trémula, numa angústia. Meu pai percebia. Nem dizia palavra. No calor do discurso, sossegava. Os braços desciam. Sofreava magnanimamente um gesto de desdém ou impaciência. E olhava, mudo, sem uma palavra, sem uma admoestação, o Aulete debaixo do Código. Eu já sabia. Agarrava o volume numa ânsia e tremendo o folheava até encontrar o vocábulo desejado. Meu pai sorria. Não se amuava. Dizia que eu precisava estreitar minhas relações com o compadre Aulete, tornar-me sociável, oferecer-lhe jantares de leitura, copiar-lhes os ditos de espírito, decorar-lhes os ensinamentos sapientíssimos como um ‘menino inteligente!’…
Aqueles dois livros eram a bíblia do meu cérebro pagão, que como o cérebro de todas as crianças educadas em colégios de jesuístas, era um cérebro bronco e estreito.
Discutia, queria litígios literários, polémicas. Meu pai sorria sempre. Tinha o costume de não discutir. E não discutia sob pretexto algum. Olhava para o Aulete. Era o último argumento. O último e o primeiro. Eu precisava de ceder. E cedia com o castigo de copiar de esfrangalhado a esfacelado. Eu já sabia. Da página 668 à página 681. Esfrangalhado, esfrangalhar, esfrega, esfregação, esfregadela…
Ah! Que saudades! Quem me dera poder hoje repetir aquelas penitências de crianças! Quem me dera poder na vida prática, ter também aquele olhar dulcíssimo a olhar o Aulete e impor sorrindo as penas de um código escrito pelo coração!
A experiência da idade cultiva em nós mesmos um sentimentalismo acre por tudo quanto já passou e não volta mais. Fica em nossos corações como numa urna sagrada, a recordação de nossa infância, que a luta, os vai-e-vens da fortuna, e o destino incoercível — desencantam friamente.
Mas não faz mal. Eu terei para sempre, como companheiros esses dois livros que foram os prediletos do meu pai. Eles hão de acompanhar meus passos em todas as jornadas da minha vida. E quando me faltem forças, quando a coragem me abandonar, quando a esperança for a ave que desterra nas invernadas do ano — eu verei aqueles dois olhos dulcíssimos a olhar os livrões da nossa língua — na doce repreensão que me incitava ao trabalho e ao estudo.
E eu ouvirei de novo, para as penas de minha inexperiência, aquelas palavras queridas de castigo:
— ‘Vá lá, meu filho, desta vez de esfrangalhado a esfacelado’.
Ah, que saudades.
Hollywood, março de 1930.»
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