Não tenho a pretensão de pensar a edição, de a historiar, de acrescentar muito a um dicionário que possa fazer valer aos pós-graduados em «estudos editoriais» ou afins. Mas gostaria de poder deixar algumas menções para a espuma dos dias. Há o risco de a edição ser pensada apenas pelos pontos evidentes e esquecermos aqueles que, quase sub-repticiamente, tanto fizeram por ela.
O caso que aqui trago é disso evidência. Alguém deve um dia dar a importância devida ao trabalho da Guilhermina Gomes à frente do Círculo de Leitores e da Temas e Debates. O Círculo era uma instituição. Assim, com a força que só o substantivo instituto dá. Porque foi, em tempos em que o país se subdesenvolvia e apenas Lisboa e Porto subdesenvolviam menos, a livraria de todos nós. Digo nós porque tenho quarenta anos mas ainda fui dos que ia à Fontenova ver um livro e ele estava atrás do balcão da D. Natércia. Pelo que fui dos que recebia a revista e a folheava abismado com a beleza das capas, dos títulos, das ideias, das coleções. Uma coisa única aquela visita do senhor Granja, a apontar os pedidos do meu pai e, a partir de certa altura, a somar-lhe os meus. Foi no Círculo que li o meu primeiro livro para crescidos: O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Tinha 14 anos e uma vontade enorme de crescer junto com as páginas brancas do IOR de 70 gramas (ou seria de 80?). E foi nesse livro que senti que Saramago matou com demasiada rapidez o homem. (E esta frase dúbia diz muito se for o Homem também.) Demorou muito nos tempos que são só ficção porque não há registos — mesmo que ficcionados, já o sabemos — e depois nos últimos três anos a coisa fez-se em poucas páginas. Fiquei triste. Porque queria saber mais da vida revelada e menos da vida oculta. Mas que sei eu hoje, depois de 25 anos e sem o ter relido? (Já tenho o que fazer nos próximos dias.)
Depois o Círculo acabou ou quase. E foi um fim que me deixou feliz, porque sinal de um desenvolvimento do país — com livrarias, fnacs e bertrands da vida. Mas Guilhermina Gomes continuou — e que bom e que bem. E a Tema e Debates ganhou a importância que o Círculo tinha, retirando Danieles Steeles e Stephenes Kings da equação. Fez-se assim uma das melhores chancelas de não-ficção. Os nomes são tantos que seria fastidioso enumerar. Mas basta dizer Jared Diamond. Daniel E. Lieberman. James A. Robinson. António Damásio. Barbara Demick. Daniel C. Dennet. Jesse Bering. Ou Stephen Emmot, que tem um dos livros mais avassaladores alguma vez editados em Portugal: Dez Mil Milhões. Façam um favor a vocês mesmos e corram a lê-lo, por favor.
Ou Timothy Garton Ash, agora. Liberdade de Expressão. Uma obra monumental, sem os excessos — embora nada seja excessivo na liberdade de expressão, mas isso seria outra crónica — de Mick Hume, e com tudo — tudo — o que importa saber sobre um tema tão importante. Eu sei, é o universo, é a física, a consciência, as nações, a sobrepopulação, a religião, o corpo humano, a civilização. Isto para indexar os temas a alguns dos autores citados. Mas sem a liberdade de expressão nada poderia ser lido. Nem debatido. Temas para debate são sempre bons — mesmo quando concordamos em discordar.
Liberdade de Expressão de Timothy Garton Ash, com tradução a partir do original inglês de Jorge Pereirinha Pires.
Publicado em fevereiro de 2017 pela Temas e Debates, depois de impresso nas oficinas gráficas da Porto Editora, na Maia.