(continuação da 3.ª parte)
A FORMAÇÃO LITERÁRIA DOS ALUNOS
Prelo (P) — É professor catedrático. Já deu aulas em muitos sítios. Qual é o papel dos professores na educação literária dos nossos alunos?
Carlos Reis (CR) — É um papel fundamental. Aquém ou além de metodologias, de estratégias pedagógicas, de manuais… E este papel fundamental não é só de um professor de literatura é o de todo o professor: mostrar ao aluno que está apaixonado pela matéria que ensina. Isso é a primeira coisa, é o primeiro estádio onde o professor triunfa ou falha. Se eu ensino literatura e não mostro aos meus alunos que sou apaixonado por literatura, não consigo transmitir aquilo de que gosto. É fundamental para cativar o estudante.
P — Nota muita diferença entre os alunos de Coimbra atual e os alunos da Coimbra do seu tempo de estudante?
CR — Sim, muitas! A começar pelo facto de na Coimbra do meu tempo de estudante serem 8 mil estudantes e agora são 20 e tal mil. Noto também que as atitudes culturais, no sentido geral, não no sentido elitista do termo, são diferentes, apesar de eu conhecer relativamente mal o que é que os estudantes fazem na sua vida extra aulas. Os estudantes hoje têm uma vida boémia muito mais intensa do que a que eu tinha no meu tempo. A universidade de Coimbra, para o bem ou para o mal, tem uma capacidade de atração muito grande sobre estudantes estrangeiros. Nesse ponto de vista a Universidade de Coimbra é também muito interessante. A Universidade de Coimbra tem as vantagens e as desvantagens de ser uma universidade relativamente grande, para a dimensão portuguesa, numa cidade pequena. Coimbra compara-se com Salamanca ou com Oxford, não se compara com Lisboa ou Nova Iorque. Portanto, a convivialidade académica, independentemente da praxe, que é uma questão que eu abomino, tem condições que são especiais, e isso é uma mais-valia.
P — Acha preocupante a forma como os jovens escrevem e falam atualmente, ou acha que é uma evolução natural da língua?
CR — A questão dos «k» das mensagens SMS e das redes sociais? É uma realidade com a qual nós temos de saber conviver. Uma realidade que acabará por atingir inevitavelmente, se é que já não atingiu, a própria linguagem da literatura. Temos de ver os lados positivos. Nós estamos a falar para um blogue. Hoje um jovem tem mais possibilidade de publicar eletronicamente do que tinha há 30 anos. Isso é um benefício, ele hoje publicou um texto e esse texto pode ser lido naquele momento, ou pouco depois, em Timor, ou no Brasil, ou na Ásia. Hoje em dia existem interações com os outros que a publicação convencional não tinha.
P — Os seus alunos escrevem bem português?
CR — Atualmente só dou aulas a alunos de pós-graduação e os meus alunos escrevem bem português. Não vou dizer que escrevem mal… Uma vez, ou outra, há um problema mas, também não devemos ser fundamentalistas quanto a isto. Todos nós, por vezes, temos dificuldades quanto à língua: não sabemos bem se a vírgula está bem ali; se a palavra se escreve com «z» ou com «s». Mas há que ser exigente. Se eu não sei como se escreve tenho de ir verificar como se escreve.
P — Que futuro preconiza para a licenciatura em Letras?
CR — Um futuro não massificado. Até há 10, 15, 20 anos ia-se para Letras para se ser professor. Agora a situação de um professor é muito diferente. A demografia está aí com os seus problemas: o número de crianças é cada vez menor, o número de escolas é cada vez menor, o número de salas de aulas é cada vez menor, e portanto, o país não precisa de tantos professores como precisava há 30 ou 40 anos atrás. Talvez venha a precisar no futuro, se entretanto se perder, de uma forma muito brusca, esta ideia de que é preciso estudar Letras para se ser professor. Não é a única saída. Hoje, é preciso estudar Letras por outras razões. Vou contar-lhe um episódio que para mim ficou-me como modelar. Quando eu tinha funções públicas uma vez recebi um executivo de um banco importante. Curiosamente não um banco português. A nossa conversa correu muito bem, e, no final, perguntei ao meu interlocutor qual era a sua formação. Respondeu «Filosofia». E eu fiquei muito espantado com aquilo. Hoje, já não me espantaria tanto. Há grandes empresas, grandes bancos, grandes seguradoras que sabem que ter nos seus quadros uma pessoa com formação em Humanidades é muito importante. Não é para citar Platão ou ler versos de Camões nas reuniões, mas é por terem outra cabeça.
P — Está a falar de uma questão de sensibilidade?
CR — Exatamente! Sensibilidade e valores… Eu penso que muitos problemas que estamos a viver hoje em dia advêm do facto de se ter perdido, em relação à vida, à sociedade, aos outros, aos idosos, aos animais, à natureza, muito de uma atitude ética perante a vida. Falo dos valores do Bem e do Mal, dos valores da justiça, da solidariedade. Estes valores estão na Literatura e aprendem-se também na Literatura. Não é só para isso que ela existe evidentemente, mas acho fundamental continuar a resguardar isso. Evidentemente, que no futuro as humanidades têm de ter em conta que as narrativas não se contam só nos romances do século XIX nem nas epopeias do século XVI. Hoje em dia, contam-se nas séries de televisão. A publicidade, por exemplo, é um lugar de fecundação de imagens e de figuras retóricas. Há, portanto, outros discursos que estão aí, que têm uma componente estética, que têm uma componente paraliterária, que têm uma componente ficcional. As Humanidades, aquelas que alguns chamam novas Humanidades, servem para isso também.
O PRÉMIO RUY CINATTI
P — O professor preside também ao Prémio Literário Ruy Cinatti, uma iniciativa da Imprensa Nacional-Casa da Moeda que visa selecionar e premiar anualmente uma obra de prosa ou poesia inédita de um autor Timorense. Que balanço faz deste prémio passados três anos?
CR — O balanço de uma produção residual mas não necessariamente negativo. Nós temos que colocar as coisas em perspetiva. Timor está muito longe, e não está muitas vezes tão próximo da língua portuguesa como nós quereríamos, Timor é um país que tem um cenário dialetal complexo e há muita população em Timor que não fala português. O que se quer também com o prémio é que a língua portuguesa continue viva e ativa. E uma forma de o fazer é estimular os poetas, os novelistas e os romancistas em Timor.
P — Então acha que está a ser bem-sucedido?
CR — Sim, está a cumprir o propósito. Claro que este é um caminho longo, um caminho difícil mas que a Imprensa Nacional está, permita-me a expressão, «a fazer o seu dever». E quem faz o seu dever faz o que deve fazer.
A POLÉMICA EM TORNO DO AO90
P — Também sempre foi favorável e um acérrimo defensor do novo acordo ortográfico. Quais são as vantagens que vê no novo Acordo?
CR — Para as crianças que estão a aprender é uma aprendizagem mais próxima da oralidade. Creio que isso é uma vantagem, aliás, as reformas ortográficas, os acordos ortográficos tem muito a ver com isso. A reforma de 1911, independentemente, das suas bondades ou dos seus defeitos, foi uma reforma que se quis democratizadora, por razões que têm muito a ver com a situação política que se estava a viver, embora ela já estivesse a ser preparada antes da República. No caso queria-se afastar um bocadinho mais a língua da etimologia, que era certamente muito importante, mas pouca gente sabe de etimologia. Neste momento a tendência é essa também. Essa é uma vantagem. Infelizmente, os momentos e as dinâmicas políticas não tiraram disso o partido necessário. O Acordo Ortográfico não quis nem tem de querer unificar a língua portuguesa, deve querer aproximar e, sobretudo, também se fala muito pouco sobre isto, terminar com uma situação que existia, que era a seguinte: o português tinha duas normas oficiais — a portuguesa e a brasileira. Com o Acordo Ortográfico [o português] deixou de ter duas normas oficiais. Se as mantivesse, o caminho por onde seguiria amanhã teria de ser ter uma norma oficial angolana… e depois uma norma oficial moçambicana… e assim por diante. No concerto internacional das grandes línguas de cultura essa era uma fragilidade porque, independentemente de nas línguas haver — e há, no inglês por exemplo — oscilações ortográficas, não havia, como havia em português duas normas ortográficas oficiais. Isso era uma fragilidade. Portanto, por estas duas razões (uma da ordem da aprendizagem, outra da ordem da política de língua) vejo vantagens no Acordo Ortográfico. Apesar disso, respeito todas as posições. Infelizmente, em Portugal, os poderes políticos nunca pegaram nesta matéria como deveriam ter pegado. Foram omissos, foram preguiçosos, foram timoratos, adiaram, fingiram que não viram… Isso, evidentemente, deu lugar a equívocos! Posso dizer um: há dias eu vi num documento que vinha de um organismo público a palavra facto escrita sem «c», é um fenómeno de hipercorreção. A palavra facto não perde o «c» em português de Portugal, como também não ganha um «c» em português do Brasil. Isto decorre justamente de nunca ter havido uma orientação, uma explicação, uma pedagogia bem feita, tolerante, aberta, respeitadora de todas as posições. Mas as coisas correm no seu tempo e para mim hoje o Acordo Ortográfico é uma realidade adquirida.
P — Gosta muito de escrever, mas tem resistido à tentação de escrever no sentido literário do termo. Porque que é que nunca se aventurou?
CR — Talvez porque conheço bem demais, por deformação profissional, muitos mais projetos falhados do que projetos conseguidos. Talvez porque a minha tendência fosse para imitar, de uma forma muito caricata, o Eça e o Eça é inimitável. Talvez porque acho que é muito difícil inovar para além de muito do que já está feito. É muito difícil trazer alguma coisa de novo, de viver essa ilusão e depois ter a desilusão de verificar que, afinal de contas, não se conseguiu. Mas há escritores que deram esse salto.
P — O Carlos Reis pertenceu à comitiva que acompanhou o Saramago a Estocolmo. Acha que vai acompanhar mais alguma?
CR — Se me convidarem eu vou. A pergunta é: acha que mais algum escritor português vai receber o Prémio Nobel? Para falar francamente acho que o Lobo Antunes tem a dimensão para receber o Prémio Nobel, a Sophia de Mello Breyner Andresen era uma escritora com a dimensão para receber o Prémio Nobel, o Jorge de Sena também. Simplesmente, temos de ter a noção das coisas. O Brasil nunca ganhou um Prémio Nobel. Quando o Machado de Assis morreu já havia Prémio Nobel. O próprio Pessoa quando morreu já havia Prémio Nobel. Aliás, Pessoa diz numa carta «quando eu ganhar o Prémio Nobel….». A língua portuguesa, como dizia o Machado de Assis, infelizmente é uma língua escusa, uma língua um pouco retirada, um pouco afastada. O Prémio Nobel depende muito, no melhor sentido do termo, da forma como se promove um escritor. Não basta ser um grande escritor. É preciso que ele tenha também a dinâmica própria para poder ganhar um Prémio Nobel. Eu penso que depois de Portugal ter ganho o Prémio Nobel em 1998 é muito difícil que tão cedo venha a receber outro. Infelizmente, porque isto não tem a ver com a qualidade dos escritores. Se acontecer, mesmo que não vá lá, ficarei muito contente. Seja ele quem for.
P — Para terminar, enquanto autor dos blogues Figuras de Ficção e Queirosiana, que conselho dá a este novo blogue da Imprensa Nacional-Casa da Moeda?
CR — Que seja o mais provocatório possível, provocatório e exigente também; que se abra; que fomente a participação dos outros; que conheça — eu também não conheço exaustivamente — a lógica do blogue (não é a de uma revista nem a de um jornal); que perceba que uma palavra posta lá pode ser lida, naquele momento, no outro lado do mundo. Isto é um desafio extraordinário! E eu acho extremamente interessante que uma casa como esta se abra a este tipo de linguagem.