Em abril de 1884 Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens iniciavam a grande viagem «De Angola à Contracosta». Este gigantesco empreendimento inseria-se na corrida à exploração de África em que Portugal se via envolvido devido à concorrência colonial de outros países europeus, sobretudo desde meado do século XIX. Foi neste ambiente que nasceu a 29 de abril de 1884 em Ançã, concelho de Cantanhede, o futuro grande historiador da Expansão Portuguesa: Jaime Zuzarte Cortesão.
O filho de Augusto Cortesão e Norberta Zuzarte teve uma infância tranquila e desafogada, marcada pelo sentido poético da mãe e pela atividade do pai: médico e filólogo. Aos 6 anos de idade mudou-se, com a família, para São João do Campo no concelho de Coimbra, onde frequentou o liceu. Terminados os estudos secundários inscreve-se na Universidade onde fez o primeiro ano em Grego. Abandonou no entanto este curso e inscreveu-se em Direito, que preferiu ao de Belas-Artes, que também o atraía. Não foi no entanto esta a sua última orientação pois após dois anos de frequência decidiu-se pela formatura em Medicina. Para o efeito inscreveu-se na Faculdade de Medicina, transferindo depois a sua matrícula para a Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Foi nesta cidade que Jaime Cortesão se manifestou pela primeira vez numa ação política de envergadura ao participar na greve académica de 1907 contra a ditadura de João Franco. Foi ainda no Porto que fundou a revista Nova Silva juntamente com Leonardo Coimbra, Cândido Basto e Álvaro Pinto e começou a colaborar com as revistas Ilustração Popular e A Vida.
Em 1908, Jaime Cortesão, aderiu ao Partido Republicano, relacionando-se com Bernardino Machado. Um ano antes da Implementação da República deslocou-se para Lisboa onde se matriculou na Faculdade de Medicina para terminar o curso com 18 valores, apresentando a tese A Arte e a Medicina — Antero de Quental e Sousa Martins. Ainda em 1910 regressou a São João do Campo onde se consagrou à Medicina, mas sem grande entusiasmo. O que o entusiasmava mesmo era a política, tanto que em 1911 se candidatou a deputado pelo círculo de Coimbra. Não foi eleito. No ano seguinte casou com a sua prima Carolina Ferreira e regressou ao Porto onde abandonou a prática da Medicina para se dedicar ao ensino da História e da Literatura no Liceu Rodrigues de Freitas. A sua principal ocupação manifestou-se então na Renascença Portuguesa. Em 1960, pouco antes da sua morte, recordaria assim este movimento:
«O denominador comum que agregou homens de tendências tão díspares que participaram na Renascença Portuguesa era a necessidade, sentida por todos, de dar um conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana que acabava de fundar um novo regime em Portugal.»
Jaime Cortesão participaria ainda em A Águia e, mais tarde, fez parte da direção da revista Seara Nova. Em 1915, Jaime Cortesão integra-se na Junta Revolucionária do Porto que participou no movimento para a queda da ditadura de Pimenta de Castro. Na sequência desta ação é eleito deputado, regressando a Lisboa. Com o eclodir da Primeira Grande Guerra iniciou uma campanha favorável à entrada de Portugal no conflito e a sua atitude intervencionista ganhou um grande fôlego quando os soldados portugueses se juntaram à França e a Inglaterra. Estávamos em 1916. Jaime Cortesão ofereceu-se como médico miliciano voluntário. Partiu para França, juntou-se às tropas e foi gaseado. Recebeu depois um louvor e a Cruz de Guerra. Passado pouco tempo do seu regresso da guerra foi preso devido à hostilidade contra os sidonistas no poder.
Libertado na sequência da reação dos republicanos liberais, após o assassinato de Sidónio Pais, a sua atividade desde o início de 1919 — ano em que é nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Portugal — visou contribuir de forma muito concreta para a formação de uma consciência cultural e cívica dos Portugueses dentro dos princípios progressistas da República. Preocupado em tornar a Biblioteca Nacional um importante e dinâmico centro cultural, aquela instituição passou a ser um centro de convívio e de trabalho entre uma escola de intelectuais de rara envergadura no nosso país de que se destacam nomes como Raúl Proença, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoaes, Raul Brandão ou Leite de Vasconcelos.
Em 1921 Cortesão é eleito membro da Academia de Ciências e em 1923 é convidado por Álvaro Castro para Ministro da Instrução, mas recusa o cargo. Este período caracterizou‑se por uma vida mais estável que terminaria em fevereiro de 1927. Um ano antes estabelecera-se a ditadura militar, e logo na primeira revolta dos liberais encontramos Cortesão como dirigente da Junta Revolucionária do Porto. Após a repressão deste movimento e da demissão do cargo que ocupava, iniciou um longo e dramático exílio por vário países. Jaime Cortesão conheceu o exílio de 1927 a 1957.
Viveu em Espanha, França e, a partir da década de 40, fixou residência no Rio de Janeiro, na Rua Ibituruna. A partir de 1952 Jaime Cortesão pode voltar a visitar Portugal com um passaporte diplomático brasileiro, até que regressou definitivamente em 1957. A sua figura tornou-se um símbolo de referência e de evocação da liberdade, e que, apesar da sua idade, constituía uma ameaça latente para Salazar. Em finais de outubro de 1957 o diretório da oposição republicana escolheu-o como candidato à Presidencia da República para as eleições que se iriam realizar no ano seguinte. Embora tenha recusado tão honrosa nomeação continuou como um dos mentores da oposição. E voltou a conhecer a prisão pela 4.ª vez em novembro de 1958, aos 74 anos. Mas logo uma grande campanha de solidariedade, sobretudo vinda do Brasil, cedo o fizeram libertar. Nesse mesmo ano foi eleito presidente da Direção da Sociedade Portuguesa de Escritores, sucedendo a Aquilino Ribeiro, e onde manteve uma intensa atividade. Morreu a 14 de agosto de 1960. Tinha 76 anos.
A obra que Jaime Cortesão nos deixa é uma das mais vastas entre as dos escritores portugueses do século XX. Cortesão é particularmente conhecido pela sua atividade de historiador. A maioria dos seus estudos focou a história do Brasil colonial em todas as suas épocas mas incidiu com particular destaque no descobrimento, nas ações de desbravamento dos bandeirantes, no estabelecimento das fronteiras em 1750 e na cartografia antiga. A Expansão Portuguesa em geral, desde as Canárias até à Austrália, mereceu-lhe também toda a sua atenção. Muitas das suas investigações sobre alguns documentos tão importantes como a Carta de Pero Vaz de Caminha, o Tratado de Tordesilhas ou o Tratado de Madrid são das mais profundas até agora realizadas. Valiosa e ampla, da sua investigação histórica resultaram, além de excelentes páginas em obras coletivas, os volumes: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil, Pauliceae Lusitana Monumenta Historica e Os Descobrimentos Portugueses, esta última a cúpula da sua obra. Seria, porém, um erro ignorar toda a riqueza da sua multiforme criação literária.
Jaime Cortesão, estreou-se com um volume de poesia A Morte e a Águia, em 1910. Escreveu os contos, D’aquém e d’além Morte e pouco depois decidiu-se a experimentar o género dramático. Daí resultaram três obras que conheceram um êxito assinalável: O Infante de Sagres, Egas Moniz e Adão e Eva.
Mas a genialidade de Jaime Cortesão não se esgotou aqui. Foi mestre nas suas facetas de memorialista e de especialista de terras e de gentes. Faceta, aliás, que continua muito mais viva que a de poeta, contista ou dramaturgo. Cortesão é autor daquele que é, provavelmente, o mais vivo e precioso de todos os testemunhos escritos em português sobre a vivência da Primeira Grande Guerra, onde participou como voluntário na campanha da Flandres. Nas Memórias da Grande Guerra — 1914-1916, Jaime Cortesão declara enfaticamente:
«Direi apenas o que vi e ouvi. Sofri demasiado para poder mentir.»
A descrição de terras e gentes foi, de facto um dos domínios em que a mestria de Jaime Cortesão foi insuperável. Além da já mencionada Memórias da Grande Guerra há, pelo menos, mais três obras onde tal expressividade é mais flagrante. Itália Azul, as colaborações para três dos volumes de Guia de Portugal, sendo o ponto mais alto neste tipo de literatura alcançado com o conjunto de 66 artigos que escreveu de forma irregular entre 1952 e 1960, sempre que viajava por terras portuguesas e que foi publicando em vários jornais. Estes 66 textos estavam a ser preparados para serem reunidos num volume intitulado Terras e Homens de Portugal. Paisagens, Costumes, História e Arte. O volume acabaria por ser publicado postumamente com o título Portugal – A Terra e o Homem. Jaime Cortesão cultivou ainda o ensaio, a crítica literária, a literatura infantil e a tradução. Traduziu, por exemplo, O Crime de Silvestre Bonnard, de Anatole France, ou Contos de Luar, de Camille Flammarion.
O cidadão, artista e historiador Jaime Cortesão viveu e sofreu intensamente os dramas de Portugal e do Mundo durante a primeira metade do século XX. Foi talvez por isso que a sua obra nos ficou como um legado paradigmático de um humanismo avançado e virado para o progresso autêntico e, sobretudo, para a compreensão do papel e da força dos Portugueses na história. É justo terminar o programa de hoje com palavras dele, retiradas das Cartas à Mocidade. Palavras que são, só por si, o testemunho da grandeza de um homem que quanto mais se conhece mais se admira:
«Se és ambicioso podes ganhar glória, dinheiro ou poderio, com pequeno custo. Escritor, basta-te lisonjear o mau gosto do público e as suas piores inclinações. Político, enfileira‑te nos partidos e dobra-te às imposições das clientelas. Jornalista, serve as oligarquias do dinheiro e das paixões populares. Profissional, abre balcão e faz da tua profissão apenas um negócio. És, enfim, um habilidoso animado pela cupidez: oprime os fracos, abusa da ignorância, aproveita as condescendências da moral comum, explora a miséria , a estupidez ou os vícios humanos, e depressa chegarás aos fastígios ilusórios que não alcançam os que trabalham com esforço rude e com desejo de Justiça. Esses são em verdade, os caminhos mais fáceis. À tua volta os teus falsos amigos, quantas vezes os teus próprios pais e parentes impelem-te docemente e juncam de rosas a lisa estrada para que ela te apeteça mais. Pois eu digo-te: se te meteres por aí degradas-te à condição repugnante de certos animais inferiores que mudam a cor conforme o meio e parasitam para poder viver. Ao contrário o Homem superior, o mais forte, o mais belo é aquele que mais desinteressadamente serve a comunidade. E uma sociedade será tanto mais sólida e perfeita quanto maior o número de espíritos que a servem com puro desinteresse.»
Obras de Jaime Cortesão publicadas pela Imprensa Nacional
Vol. 1 | OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES — I
Coordenação e apresentação de José Manuel Garcia
1990 | 226 pp. | 972-27-0422-2 | 1002395 | Esgotado
Vol. 2 | OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES — II
1990 | 242 pp. | 972-27-0422-2 | 1002396 | € 13,63
Vol. 3 | OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES — III
1990 | 342 pp. | 972-27-0422-2 | 1002397 | € 16,15
Vol. 4 | HISTÓRIA DA EXPANSÃO PORTUGUESA
Coordenação e apresentação de José Manuel Garcia
1993 | 510 pp. | 972-27-0535-0 | 1002428 | € 19,68
Vol. 5 | INFLUÊNCIA DOS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES NA HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO
Coordenação e apresentação de José Manuel Garcia
1993 | 120 pp. | 972-27-0536-9 | 1002429 | € 8,08
Vol. 6 | A EXPEDIÇÃO DE PEDRO ÁLVARES CABRAL E O DESCOBRIMENTO DO BRASIL
Coordenação e apresentação de José Manuel Garcia
1994 | 192 pp. | 972-27-0698-5 | 1002447 | € 12,12
Vol. 7 | A CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA
Coordenação e apresentação de José Manuel Garcia
2010 | 256 pp. | 978-972-27-1854-7 | 1017423 | € 22
Vol. 9 OS DESCOBRIMENTOS PRÉ‑COLOMBINOS DOS PORTUGUESES
Coordenação e apresentação de José Manuel Garcia
1996 | 218 pp. | 972-27-0765-5 | 1002457 | € 15,15
Vol. 11 | HISTÓRIA DO BRASIL NOS VELHOS MAPAS
Prefácio de Joaquim Romero de Magalhães
Tomo I | 2009 | 472 pp. | 978-972-27-1795-3 | 1007632 | € 30
Tomo II | 2009 | 464 pp. | 978-972-27-1796-0 | 1007633 | € 28,37
Vol. 20 | A POLÍTICA DE SIGILO NOS DESCOBRIMENTOS
Coordenação e apresentação de José Manuel Garcia
1997 | 128 pp. | 972-27-0791-4 | 1002470 | € 12,61
Vol. 24 | PORTUGAL — A TERRA E O HOMEM
Apresentação de Urbano Tavares Rodrigues
3.ª ed. — 1995 | 272 pp. | 972-27-0264-5 | 1002461 | € 13,63
Vol. 27 | POESIA
Prefácio de David Mourão-Ferreira
Posfácio de A. Cândido Franco
1998 | 346 pp. | 972-27-0928-3 | 1002506 | € 19,68
Vol. 28 | TEATRO
Prefácio de Luiz Francisco Rebello
1998 | 298 pp. | 972-27-0899-6 | 1002499 | € 16,15
Vol. 29 | … D’AQUÉM E D’ALÉM MORTE
Prefácio de António Cândido Franco
2000 | 156 pp. | 972-27-1043-5 | 1002533 | € 15,15
Vol. 32 | EÇA DE QUEIROZ E A QUESTÃO SOCIAL
Prefácio de Carlos Reis
2001 | 160 pp. | 972-27-1082-6 | 1002542 | € 15,15
Vol. 33 | CARTAS À MOCIDADE E OUTROS TEXTOS
2011 | 104 pp. | 978-972-27-1933-9 | 1018098 | € 25
L’EXPANSION DES PORTUGAIS DANS L’HISTOIRE DE LA CIVILISATION
1983 | 88 pp. | 1001858 | € 7,07
Nota: esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Jaime Cortesão, de autoria de José Manuel Garcia.