Nota biobibliográfica de Bernardim Ribeiro por Marta Marecos Duarte
Duarte Bernardim Ribeiro terá nascido no Torrão, vila alentejana que pertence hoje ao concelho de Alcácer do Sal. Esta hipótese baseia‑se numa referência presente na écloga Jano e Franco. Numa das versões da écloga Basto, da autoria de Francisco de Sá de Miranda, amigo do autor da História de Menina e Moça, as palavras do pastor Bieito parecem também indiciar essa origem: «Tornaste me ora à lembrança/ Um amigo do Torrão». O facto de ter assinado várias composições incluídas no Cancioneiro Geral, publicado por Garcia de Resende em 1516, permite situar o seu nascimento entre 1480 e 1490.
Desta colaboração se pode depreender que Bernardim foi frequentador da corte de D. Manuel I, onde terá privado com Sá de Miranda. Ao contrário do introdutor do soneto em Portugal, Bernardim Ribeiro não foi um cultor da medida nova. Contudo, considera-se que a sua obra se aproxima do cânone renascentista, quer por dela fazerem parte diversas éclogas e uma sextina, géneros clássicos sujeitos a inovações nos séculos XV e XVI, quer pelos vários paralelismos que é possível estabelecer entre o seu legado e o de autores como Ovídio, Petrarca e Sanazzaro, que exerceram uma influência modelar sobre os autores quinhentistas. Além do referido, sobre Bernardim Ribeiro praticamente nada se sabe.
Durante muito tempo, a sua obra serviu para ilustrar factos que se acreditou terem feito parte da sua vida. Como afirma J. A. Cardoso Bernardes, «À falta de documentos, o estabelecimento desses dados [condição aristocrática, amores clandestinos, loucura] operou‑se através de uma verdadeira saga decifratória visando os anagramas das éclogas e de Menina e Moça». Foi sobretudo «o projecto de construção de uma história literária nacional» que obrigou a «que ao autor da História de Menina e Moça se tenha feito corresponder, desde cedo, o protótipo do luso genial e sensível». O protótipo que se esboçara nas cantigas de amigo e que se «projectaria depois no Romantismo e no Saudosismo» contribuiu para determinar o lugar indiscutível que a novela de Bernardim ocupou, ao longo do século XX, nos manuais escolares. A tematização da saudade que nela é feita foi também um fator determinante dessa presença, porquanto serviu de base a uma mitificação da identidade portuguesa como sendo singularmente marcada por este sentimento. Exemplo da decifração acima citada foi a interpretação levada a cabo por Teófilo Braga no ensaio Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, publicado em 1872. As perspetivas aí propostas são reformuladas anos depois num outro estudo, Bernardim Ribeiro e o Bucolismo. Com base num documento falso, Teófilo desvenda a Menina e Moça, estabelecendo, entre muitas outras, correspondência entre o par amoroso ficcional Bimarder‑Aónia e o poeta Bernardim Ribeiro e a sua prima D. Joana Zagalo. Sob as alegorias pastorais e cavaleirescas, «[t]ratavam‑se ahi amores do paço», refere.
O aparecimento da intriga de corte a que o poeta surge associado, à qual não é alheio o mistério que reveste o final das histórias da Menina e Moça, em particular a de Avalor e Arima, antecede em muito o final do século XIX. No século XVII, Manuel de Faria e Sousa, em Fuente de Aganipe (1644), divulgava pela primeira vez a lenda dos trágicos amores de Bernardim Ribeiro com a Infanta Dona Beatriz, segunda filha de D. Manuel I. Uma lenda que foi tida em consideração não só por Teófilo Braga, mas também por Alexandre Herculano e Almeida Garrett.
Em pleno século XX, desenvolveu‑se uma outra corrente biografista, também com repercussões na interpretação da obra. Trata‑se daquela que afirma o judaísmo, ou criptojudaísmo, de Bernardim, e que encontra base de sustentação na descoberta da edição de Ferrara da História de Menina e Moça. Foram os Usque, judeus portugueses exilados em Itália, que publicaram a editio princeps da novela portuguesa. Com que interesse? Porquê editar uma obra de carácter profano entre uma maioria de publicações de cariz religioso, dirigidas a leitores judeus? Perguntas como estas, acrescidas do facto de a novela figurar no Índice expurgatório de 1581 e de se revestir de elementos sugestivos de uma certa heterodoxia cultural e religiosa, paralelamente a uma significativa ausência de referentes associados ao universo do cristianismo, levaram José Teixeira Rego (1931) e Helder Macedo (1977) a atribuírem a Bernardim a condição de judeu, ou cristão‑novo. O primeiro lança ainda a hipótese de o poeta e Judá Abravanel, mais conhecido pelo nome Leão Hebreu, autor de Diálogos de Amor, obra publicada em Itália em 1535, serem a mesma pessoa. Assim, não dispondo por ora de documentação que nos conduza à elaboração de um retrato fiel do autor, atente‑se em algumas pistas que poderão ajudar a esbater parte do mistério em torno da sua biografia.
É provável que Bernardim Ribeiro tenha falecido entre 1530 e 1540. A referência em tempo pretérito a um certo Ribeiro, em várias éclogas de Sá de Miranda escritas entre 1532 e 1536, permite conjeturar essa possibilidade. Herculano de Carvalho foi dos primeiros a ter este dado em conta, lançando o debate sobre um verso contido num Epitalâmio pastoril de Miranda («De Ribero has sabido bien quién fué?»). Eugenio Asensio, ao fixar a data de escrita do Manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa da Menina e Moça entre 1540 e 1546, sugere também o falecimento do autor em data anterior a 1540. Segundo Pina Martins, um passo da écloga Alexo parece sugerir que Bernardim Ribeiro acompanhou Miranda na sua viagem a Itália, entre 1521 e 1526. Repare‑se nos versos que pensa aludirem à companhia de Ribero: «Al cantar que aqui cantámos;/ Fue […] de estraña parte/ Donde un tiempo ambos andamos/ I dir te he como pasó». Tal circunstância inviabilizaria a conexão do poeta com o cargo de escrivão da câmara de D. João III, atribuído a alguém com o mesmo nome, em 1524. Terá este sido apenas mais um dos homónimos do autor da Menina e Moça?
As alusões a Ribeiro nas éclogas de Miranda não ficam por aqui. Ainda em Alexo, o pastor Juan, referindo‑se ao canto de Ribero, termina a estrofe com uma acusação à «Gente de firmeza poca/ Que le dió tantos loores,/ I aora ge los apoca». O conteúdo destes versos indiciaria, por sua vez, uma situação de mudança relativamente ao apreço granjeado pelo poeta. Poder‑se‑á entender estas citações como pistas biográficas com a mesma certeza com que o fazemos em relação, por exemplo, à referência do poeta do Neiva a Garcilaso de la Vega, cuja morte é lamentada pelos pastores da Écloga V (Nemoroso), escrita um ano após o falecimento do poeta espanhol? Enquanto os esboços de uma possível biografia não assumem uma maior nitidez de contornos, debrucemo‑nos sobre as obras atribuídas a Bernardim Ribeiro.
Prosa
A novela Menina e Moça, cujo título varia nas edições e manuscritos quinhentistas:
«Obra intitullada saudades de/ Bernaldim Ribeiro q foy autor della» (Manuscrito Bernardiniano da Biblioteca Nacional de Lisboa), 1545‑1555.
«Hystoria/ de Menina e Moça, por Ber‑/ naldim Ribeyro agora de/ novo estampada e com/ summa deligencia/ emendada», Abraão Usque (editor), Ferrara, 1554. Impressão reproduzida em Colónia, na Alemanha, em 1559, por Arnold Birkmann.
«Primeira/ & segũda parte do/ livro chamado as/ saudades/ de Ber/ nardim Ribeiro,/ com todas suas o/ bras treladado/ de seu proprio original», André de Burgos (editor), Évora, 1557.
Considera-se que os capítulos XVIII‑LVIII da segunda parte desta edição, que não figuram nos restantes testemunhos quinhentistas, constituem uma continuação da obra que não é da autoria de Bernardim Ribeiro.
«Tratado de Bernaldim Ribeiro» (Manuscrito da Real Academia de la Historia de Madrid), datado de finais do século XVI.
Poesia
Duas trovas, três cantigas, três esparsas e quatro vilancetes, publicados no Cancioneiro Geral.
Cinco éclogas: Persio e Fauno, Jano e Franco, Silvestre e Amador, Jano, Agrestes e Ribeiro.
A sextina «Ontem pôsse o sol, e a noute».
Duas cantigas publicadas na edição de Ferrara da História de Menina e Moça.
O romance Ao longo de hũa ribeira, pela primeira vez atribuído a Bernardim Ribeiro na edição da Menina e Moça de 1645.