«(…) Quanto à influência que os brasileiros têm exercido sobre os portugueses, numa espécie de volte-face da colonização, será proveitoso recordarmos, dentro do campo da literatura, quanto tantos autores contemporâneos ‘devem’ aos escritores brasileiros e ao seu uso do português. Quem não conhece a influência dum Manuel Bandeira, duma Cecília Meireles, dum João Cabral de Melo Neto, dum Drummond de Andrade, em cuja famosa ‘pedra’ tropeçamos tão frequentemente nos textos de alguns dos nossos melhores poetas do pós-guerra? E o que dizer da influência de escritores-linguistas como Guimarães Rosa ou de estilistas como os do Grupo Noigandres? De facto, quanto não assimilaram os portugueses dos seus colegas brasileiros? E também: quanto não assimilaram dos espanhóis? E dos franceses? E quanto não deve Fernando Pessoa à língua inglesa e sua literatura? E quanto não devem a essa e à norte-americana as nossas mais jovens revelações literárias que as redescobrem agora nos seus elegantes textos?
Realmente: quanto não assimilamos todos uns dos outros?
Mas uma coisa é a assimilação, a permuta e até a circularidade; outra é a poluição. A nossa língua não empobrece nem degenera com a incorporação controlada de ‘sangue novo’ vindo de ‘outros corpos’ linguísticos. Ela empobrece e degenera quando não se renova, quando estagna, quando se esvazia. O verdadeiro perigo está na poluição da palavra, no seu uso insignificativo. A poluição da palavra, da fala, da língua, é um fenómeno que se tem vindo a agravar com a excessiva quantidade de informação que circula nas sociedades industrializadas. Esse excesso de informação redundante, alienante, a todos confunde e atinge principalmente aqueles que não têm preparação para destrinçar, para escolher e rejeitar, ou seja, para se libertarem do supérfluo.
Se a escolha ainda é possível, então tudo não está ainda perdido. Se ainda é possível distinguir, ainda é possível pensar-se em termos de uma ecologia da palavra, que implica uma reformulação da nossa maneira de viver e que terá de ser tão radical quanto é vasta a escala do problema.
Se tudo isto não é demasiado utópico, então ainda há realmente esperança. E então façamos um pedido: não nos tirem o gosto pela aprendizagem em nome do imobilismo e da falta de imaginação!
Junho de 1981»
Ana Hatherly, «Para uma Ecologia da Palavra»,
in Estão a Assassinar o Português! 17 Depoimentos.
Coleção «Temas Portugueses», Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983