Parte muito significativa da obra pessoana pauta-se pelos seus outros-de-si, que são os heterónimos. Com eles Fernando Pessoa quis criar nem mais nem menos do que personagens dramáticas, cuja definição estrutural foi declarada pelo próprio.
A definição que Pessoa nos forneceu do significado da heteronímia faz referência às personagens shakesperianas. Assim como o Rei Lear não é Shakespeare, mas sim uma personagem autónoma cujos pensamentos, emoções e sentimentos não são os de Shakespeare, no propósito de Pessoa as personagens Caeiro, Campos e Reis são personagens autónomas cujas emoções, sentimentos e pensamento não são os de Pessoa. A grande novidade destas personagens de ficção é que são personagens criadoras. Ao contrário de Rei Lear, que exprime a sua vida através das ações da sua vida, os heterónimos pessoanos exprimem a sua vida através da criação poética.
Os heterónimos de Pessoa são pois o resultado de uma operação criativa altamente sofisticada, uma espécie de raiz quadrada do ato poético. São criaturas de ficção que utilizam a ficção da arte.
Dotado de uma consciência crítica hiperlúcida, que lhe permitiu sempre uma autoanálise muito detalhada, Fernando Pessoa recusou-se sempre a explicar as motivações da heteronímia, preferindo explicar o seu mecanismo e morfologia.
«A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais, ele, o autor real, nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o ‘medium’ de figuras que ele próprio criou.
Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com quem as escreve. Ele nem concorda com o que nelas vai escrito, nem discorda. Como se lhe fosse ditado, escreve; e, como se lhe fosse ditado por quem fosse amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que escrevesse o que ditava, acha interessante o que, ditado, vai escrevendo.
O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser outrem.
Que esta qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada dissociação da personalidade, o autor destes livros nem o contesta, nem o apoia.
De nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade de si próprio, que concordasse com esta, ou com aquela, teoria, sobre os resultados escritos dessa multiplicidade.
Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira; o que admira é que haja coisa alguma que não cause estranheza. Algumas teorias, que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas por uma ou outra destas personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos, passaram consubstancialmente pela sua própria personalidade, se é que esta existe.
Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem — não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.»
Com a criação de Alberto Caeiro, Pessoa quis criar um pólo de referência para as suas outras personagens maiores. Assumindo à letra a definição da obra pessoana como drama em gente, pode dizer-se que Caeiro é o chefe de uma pequena companhia teatral que representa a sua peça no palco da poesia.
Caeiro foi o mestre de Campos, de Reis e do próprio Pessoa, e a obra dos outros criadores é sempre submetida ao seu juízo e à sua autoridade. Mas de onde provém esta supremacia que faz de Caeiro um mestre e dos outros seus discípulos?
Se quiséssemos ler a sua figura em termos psicanalíticos, poderíamos avançar a hipótese de Caeiro ser a figura do Pai e o seu carisma provir de lhe ter sido atribuído esse papel. Em termos culturais Caeiro desempenha as funções de mestre em virtude da sua supremacia intelectual tanto numa capacidade criativa como numa capacidade especulativa.
Autodidata, substancialmente monocórdico, desprovido de sopros líricos, Caeiro evidencia-se pelo seu olhar sobre o mundo, pela sua capacidade reflexiva, pela formulação de uma filosofia que consiste numa aparentemente simples decifração do real, mas que na verdade é complexa e ambígua. A ficha biográfica de Alberto Caeiro resume-se assim:
Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, em 1889, onde morreu tuberculoso, em 1915, depois de ter passado quase toda a vida no Ribatejo, na quinta de uma velha tia. Não teve profissão alguma e possuía apenas uns rudimentos de instrução. No seu isolamento campestre escreveu quase toda a sua obra, desde o Guardador de Rebanhos e o Pastor Amoroso a uma parte dos Poemas Inconjuntos, que viria a acabar em Lisboa antes de morrer. Apesar da sua jovem idade, foi considerado Mestre quer por Álvaro de Campos e Ricardo Reis, quer pelo próprio Fernando Pessoa que afirma, na célebre carta a Casais Monteiro, referindo-se ao momento da criação de Caeiro: «Aparecera em mim o meu mestre.».
No entanto, além da biografia que Pessoa lhe construiu, o retrato de Caeiro foi-nos legado pelos outros heterónimos. Oiçamos como Alberto Caeiro foi descrito por Álvaro Campos:
«Conheci meu mestre Caeiro em circunstâncias excecionais — como todas as circunstâncias da vida, e sobretudo as que, não sendo nada em si mesmas, hão de vir a ser tudo nos resultados.
Um primo meu levou-me um dia de passeio ao Ribatejo, conhecia um primo de Caeiro e tinha com ele negócio. Encontrei-me com o que havia de ser o meu mestre em casa desse primo.
Vejo ainda, com claridade da alma, que as lágrimas da lembrança não empanam, porque a visão não é externa… Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo. Depois os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma.
O cabelo quase abundante era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era. A voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo — nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezes. O olhar azul não sabia deixar de fitar. A testa, sem ser alta, era poderosamente branca. As mãos eram um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga. A última coisa em que se reparava era a expressão da boca, um sorriso de existir e não de falar, como se falar fosse, para este homem, menos que existir.
Meu mestre, meu mestre, perdido tão cedo!
O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é, por temperamento. Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação.
O meu mestre Caeiro, como não dizia senão o que era, pode ser definido por qualquer frase sua, escrita ou falada, sobretudo depois do período que começa do meio em diante do ‘Guardador de Rebanhos’. Mas, entre tantas frases que escreveu e se imprimem, entre tantas que me disse, a que o contém com maior simplicidade é aquela que me disse em Lisboa. Falava-se de não sei quê que tinha de ver com as relações de cada qual consigo mesmo. E eu perguntei de repente ao meu mestre Caeiro: ‘está contente consigo?’. E ele respondeu: ‘Não: estou contente’. Era como a voz da Terra que é tudo e ninguém.
Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve. Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é estúpido mas humano, e é assim. Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.
Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia, a não ser aquela consolação que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me dá. Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro, ou dos seus versos; e a própria ideia do nada — a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade — tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis.»
Depois de revisitar Caeiro pela pena de Campos nas suas Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, vejamos a descrição de Caeiro pela pena de um outro heterónimo: Ricardo Reis.
«A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar.
Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história. O mesmo breve episódio, improfícuo e absurdo, que deu origem aos poemas de ‘O Pastor Amoroso’, não foi um incidente, senão, por assim dizer, um esquecimento.
A obra de Caeiro representa a reconstrução integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra, porém, e o seu paganismo, não foram pensados nem até sentidos: foram vindos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão. Dizer mais fora explicar, o que de nada serve; afirmar menos fora mentir. Toda a obra fala por si, com a voz que lhe é própria, e naquela linguagem em que se forma na mente; quem não entende não pode entender, e não há pois que explicar‑lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma que ele não fala.
Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio nem cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso impercetível e profundo, como aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o desenvolvimento lógico das civilizações. Foi um progresso de sensações, ou, antes, de maneiras de as ter, e uma evolução íntima de pensamentos derivados de tais sensações progressivas. Por uma intuição sobre-humana, como aquelas que fundam religiões, porém a que não assenta o título de religiosa, por isso que repugna toda a religião e toda a metafísica, este homem descreveu o mundo sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém uma interpretação.»
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Fernando Pessoa, de autoria de Maria José de Lancastre