No dia em que Vergílio Ferreira faria 100 anos, e em que se iniciam as comemorações do seu centenário, recuperamos alguns excertos do texto «Defesa da Língua», com o qual contribuiu, a pedido de Vasco Graça Moura, para a coletânea Estão a Assassinar o Português, publicada pela editora pública em 1983, reunindo depoimentos de 17 autores «acerca da sua experiência de escritor[es] preocupado[s] com a principal ferramenta do ofício, a língua em que se exprime[m].».
DEFESA DA LÍNGUA
«Defender a língua é, de um modo geral, uma tarefa ambígua e até certo ponto inútil. Mas também é quase inútil e ambíguo dar conselhos aos jovens de uma perspectiva adulta e no entanto todo o adulto cumpre o que julga ser de seu dever. (…) no que se refere à língua o choque ou oposição situam-se normalmente na linha divisória do novo e do antigo. Mas fixar no antigo a norma para o actual obrigaria esse antigo (…) a recorrer a um mais antigo até ao limite das origens da língua. (…) Que se imagine um bom caturra do século XXIII em face de uma transgressão de hoje que o uso venha a consagrar. Naturalmente a valorizaria justamente pela consagração de tal uso, emendando por ela as transgressões de então. Assim a própria língua, como ser vivo que é, decidirá do que lhe importa assimilar ou recusar. Porque a inúmeros giros de frase e vocábulos a língua mastiga-os e deita-os fora. E a outros absorve-os e integra-os no seu modo de ser. (…) Hoje que a facilidade de comunicação é total, compreendemos como é inglório o combate contra a infecção. Ela é menos, aliás, também por isso, uma fatalidade que se sofre do que um cosmopolitismo que se procura. (…) A língua viva, como o jovem, realiza-se no equilíbrio ou no confronto de duas forças que o dinamizam — a da regra e a da infracção. Há casos em que o erro é evidente e assim quem nele persiste é excluído do convívio geral. (…) E todavia, algo de fascinante (direi de «útil»?) há, apesar de tudo, nessa marginalidade. Ela faz-nos ao menos propedeuticamente relativizar o que pressupomos como absoluto, ela apela para a transgressão que é uma voz audível no marasmo e na rotina, ela compõe a diversificação humana, ampliando-lhe o espectro da sua realidade. E só quando o crime a limite nós a recusamos drasticamente. (…)
Toda a língua tem o seu código próprio que é genericamente inviolável. Esse é o que na escola se procura ensinar e preservar. (…) os limites extremos desse código são de um modo geral intransponíveis. E toda a disciplina da língua tem aí a sua razão de ser. Não podemos todavia esquecer que além de um código uma língua é de si uma matéria «plástica» como o sabem os «estilistas» e nós com eles. Há uma «norma» e mil «desvios» possíveis. Saber, todavia, em que media esses desvios podem ou não tocar os limites do código, só o próprio artista o sabe — e nós com ele, se o seu desvio nos atingiu. Eça de Queirós é o exemplo conhecido do artista que infringiu certas normas da língua mas que com essas infracções, ou apesar delas, conseguiu efeitos estéticos profundamente inovadores. De todo o modo, incomodando os puristas da língua, Eça não transpôs nunca os limites do código. Mas e se um artista os transpusesse? Se com essa transposição ele criasse também efeitos estéticos? Se eles se tornassem impressivos para nós a tal ponto que só numa análise minuciosa nos déssemos conta da transgressão? Porque enfim todo o artista é em potência um assassino da língua para que ela viva mais forte; como na palavra evangélica só perdendo a alma nós a podemos salvar.
(…) Assim entendemos que o tratamento plástico da linguagem codificada não implica o desconhecimento do código mas sim a tentativa da sua superação. Como um pintor começa normalmente pelo desenho académico, pelo código de uma pintura «clássica» (e assim sabemos como facilmente ele retorna a esse desenho, se o desejar) também o escritor que pretenda sublimar ou violentar o código de uma língua sabe como se escreve adentro das regras estritas desse código e o pode provar — e o prova — numa simples carta ou exposição «normal» que escreva ou realize.
(…) Assim as relações com uma língua são múltiplas e várias e o problema da sua «defesa» difícil de solucionar. Fácil é, todavia, opor a isto — que é uma questão de criatividade artística — o uso fácil e medíocre de fórmulas, vocábulos, giros de frases que têm que ver, (…) não com uma reacção activa, mas com uma total passividade e falta de dignidade na afirmação do que é nosso, ou seja do que é nós. Vale-nos que a própria língua, que é a profundidade de nós próprios, reage normalmente a esse desapossamento ou invasão de elementos intrusos, reafirmando-se a si como individualidade autónoma e implícito orgulho ofendido. E se tais elementos acabam por fixar-se é porque a língua os acabou por reconhecer como úteis ou indispensáveis. Assim a nossa luta será sempre entre a permanência e a renovação, entre o antigo e o novo. E do tempo dessa luta, desejável e necessária, só o tempo, como se disse, ou seja, a própria língua poderá decidir.
Vergílio Ferreira, in Estão a Assassinar o Português,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983.