Um pedido de silêncio, uma guitarra portuguesa, um poema, uma voz poderosa, por vezes um xaile e muito, muito sentimento. Símbolo de um país, de um povo e de uma língua, o fado pertence já ao erário do mundo. Foi a primeira expressão artística a ser declarada Património Imaterial da Humanidade em Portugal (2011), pela UNESCO.
O fado é hoje uma música do mundo que é portuguesa.
Cantam-se as tristezas, as saudades, as dores, também as alegrias, e os encontros e desencontros da vida de todos os dias.
Poetas Populares do Fado Tradicional é uma recolha criteriosa de poetas populares da cena fadista, levada a cabo por Daniel Gouveia e Francisco Mendes, para incorporar a coleção da Imprensa Nacional «Biblioteca do Fado».
Aqui uma pequena amostra.
Cena fadista
Foi na Travessa da Palha,
que o meu amante, um canalha,
fez sangrar meu coração;
trazendo ao lado outra amante,
vinha a gingar, petulante,
em ar de provocação.
Na taberna do Friagem,
entre muita fadistagem,
afrontei-os sem rancor;
porque a mulher que trazia
com certeza não valia
nem sombra do meu valor.
A ver qual tinha mais brio,
cantámos ao desafio
eu e ess’outra qualquer;
deixei-a a perder de vista,
provando ser mais fadista,
mostrando ser mais mulher.
Foi uma cena vivida,
de muitas da minha vida
que não se esquecem depois;
só sei que de madrugada,
após a cena passada,
voltámos a casa os dois.
Gabriel de Oliveira
p. 24
A voz de Portugal
Ter um fado igual ao meu
Ó Coimbra quem te dera
Na Mouraria nasceu
Teve por mãe a Severa
Fado lindo do Mondego
Cantado por noite fora
À alma tira o sossego
Que de tanto ouvi-lo chora
O de Lisboa é mais triste
É mais castiço, mais faia
A alma não lhe resiste
Ouvindo-o logo desmaia
Por mim ou outro cantado
Na Mouraria ou Choupal
São lindos todos os fados
São a voz de Portugal
Fernando Teles
p. 34
Há um manifesto paralelismo entre a letra que se segue e a famosa canção Olhos Castanhos, celebrizada por Francisco José:
Cor dos olhos
Dizem que os olhos leais
São os castanhos? Pois bem
Conheço uns olhos fatais
Que são castanhos também!
Olhos negros, negra cruz
Quem o disse, com certeza
Não vê que a noite sem luz
Também tem sua beleza
Olhos azuis, falsidade!
Errou quem isto escreveu
Nunca pode haver maldade
Nos olhos da cor do Céu!
Com os olhos verdes, cautela!
Ninguém se deixe embalar
Lembram o Mar! E a procela
É irmã gémea do Mar!
Não há resposta acertada
Que traduza bem a cor
Dos olhos da nossa amada
Se andamos cegos de amor!
Domingos Gonçalves Costa
p. 207
As tuas mãos guitarrista
São tuas mãos, guitarrista
Que as cordas fazem vibrar
Que me fizeram fadista
E não deixam que resista
Ao desejo de cantar
A guitarra quer-te tanto
Tem por ti tal afeição
Que te deu consentimento
P’ra desvendares o tormento
Que guarda no coração
Em teu peito tem guarida
Em tuas mãos seu penar
Se tu não lhe desses vida
Ficava p’ra ali esquecida
E não voltava a trinar
E se a tens abandonado
Não seria mais fadista
Mesmo que fosse cantado
Morria com ela o Fado
Sem tuas mãos, guitarrista.
Maria Manuel Cid
p. 228
São 217 poemas compostos pelos autores:
Carlos Harrington (1870-1916), Avelino de Sousa (1880-1946), Gabriel de Oliveira (1891‑1953), Fernando Teles (1891-1958), Silva Tavares (1893-1964), Linhares Barbosa (1893-1965), Henrique Rego (1893-1963), Frederico de Brito (1894-1977), António Amargo (1895-1933), Amadeu do Vale (1898-1963), Armando Neves (1899-1944), Carlos Conde (1901-1981), Clemente Pereira (1903-1986), João da Mata (1906-1947), Radamanto (1908-1972), Conde de Sobral (1910-1969), Domingos Gonçalves Costa (1913-1984), Artur Soares Pereira (1921-2011), Maria Manuel Cid (1922-1994), Lopes Victor (N. 1922), Moita Girão (1923-2013), António Vilar da Costa (1924-1988), Artur Ribeiro (1924-1988), João Dias (1926-1979), Jorge Rosa (1930-2001), Isidoro d’Oliveira (1934-2013) e Manuel Andrade (1944-1966).