Irene do Céu Vieira Lisboa nasceu a 25 de dezembro de 1892 em Casal da Murzinheira, no concelho de Arruda dos Vinhos. Era filha de um advogado e proprietário rural, já na casa dos 60 anos, e de uma camponesa muito jovem, a quem a criança foi tirada ainda muito pequena. Irene, passa então a viver com o pai na quinta da madrinha, senhora já idosa, junto de quem o advogado, que começara por ser procurador, foi ganhando uma confiança permissiva.
Entre os 6 e os 10 anos, Irene, está interna num austero colégio de freiras, de que guarda uma «lembrança penosa», como escreverá mais tarde.
Passa depois para um outro colégio, «mais alegre, moderno, cosmopolita», onde apesar de não ter roupas bonitas como as outras raparigas e de não gostar dos seus cabelos espetados, é relativamente feliz.
Paira, no entanto, sobre as recordações que deste tempo regista, a imagem de um pai que lhe faz medo, que não sabe nunca o que lhe dizer, e a sensação de ser uma «menina de velhos», que não sabe bem qual é o seu lugar.
Um pouco mais tarde, o pai casa com uma rapariga muito mais nova do que ele, que se se faz acompanhar pela mãe, mulher ambiciosa e sem escrúpulos. Por ação destas mulheres, que veem Irene, como um empecilho, a ligação da jovem Irene ao pai, já complicada, agudiza-se por intrigas que a adolescente não poderá controlar. Irene acabará por ir viver com a madrinha na casa de Lisboa.
Durante algum tempo frequenta o liceu, até que, privada do amparo da madrinha, fica entregue a si mesma.
Irene Lisboa acabará por fazer o Magistério Primário e distingue-se nos estudos de Pedagogia. Permanecerá como bolseira na Bélgica e na Suíça, escreverá vários ensaios neste domínio, divulgará novas metodologias, a de Montessori, por exemplo, e debruçar‑se‑á sobre temáticas específicas, como a do desenho infantil ou as técnicas do ensino do cálculo.
Irene Lisboa exerce a sua profissão de professora primária, até ser afastada por motivos políticos, passando então ao funcionalismo.
Começa a publicar regularmente em 1926 quer sob a forma de colaboração dispersa em publicações importantes da época como a Presença, O Diabo, o Sol Nascente ou a Seara Nova, quer em volume.
Podemos tentar ordenar a obra literária de Irene Lisboa em três linhas fundamentais: escrita para a infância, quadros da vida comum e escrita autobiográfica. Claro que esta arrumação dos títulos de Irene Lisboa em grupos não é evidente, porque eles se cruzam constantemente. E já agora anote-se ainda uma precisão: os livros Um Dia e Outro Dia e Outono Havias de Vir… são também difíceis de enquadrar num qualquer esquema. Estes são livros em verso. Mas serão livros de poesia? Não é seguro. A própria Irene Lisboa assinala a ambiguidade destes textos quando escreve em epígrafe a Outono Havias de Vir…:
«Ao que vos parece verso chamai verso, e ao resto chamai prosa.»
Mas agora mais importante do que marcar diferenças entre as três linhas fundamentais da escrita de Irene Lisboa é revelar o que as unifica, ou seja, o que em cada um dos livros, faz pensar em coisas que encontraremos depois nos outros. A obra de Irene Lisboa faz‑se a partir de um grande centro, a própria pessoa que a escreve.
No que se chamou de escrita para a infância, a riqueza dos textos vem de que a uma tradição de Literatura Infantil — cujos modelos seriam os irmãos Grimm, Christian Andersen e Selma Lagerloff mas também contos tradicionais portugueses — se vem juntar a intervenção de uma autora-narradora que, assumindo plenamente o seu papel, conta vários tipos de histórias.
Assim em 13 Contarelos, em Queres Ouvir? Eu Conto e em Uma Mão Cheia de Nada… temos histórias originais, construídas por uma narradora-adulta a pensar em leitores‑crianças, ao lado de histórias que Irene Lisboa ouviu contar quando era pequena e agora relembra, ou de outras que, em criança, construiu para povoar o seu universo de fantasia.
Uma das outras vertentes da obra de Irene Lisboa é aquela em que a escritora aproveita o que via à sua volta, transformando-o depois numa galeria de tipos populares, rurais ou citadinos, observados com detalhe que a leva, em certos casos, a multiplicar os textos à volta de uma figura-tipo (sobretudo nas fabulosas mulheres a dias que retratou).
Cronista atenta da vida e da sociedade do seu tempo, Irene Lisboa foi pintando quadros da vida comum. O núcleo de livros que isto reflete é formado pelos volumes Esta Cidade!, O Pouco e o Muito (Crónica Urbana), Título Qualquer Serve para Novelas e Noveletas e Crónicas da Serra.
Num breve relance sobre estes livros, a partir dos respetivos títulos, imediatamente se pode intuir uma característica que lhes é comum: todos observam um real feito de nadas, de coisas aparentemente banais ou insignificantes, que se limitam ao registo, por pinceladas curtas, de cenas ou quadros do quotidiano. Uma das consequências disso é a dificuldade de Irene Lisboa classificar estes textos; veja-se esta hesitação, sobretudo, no nome dado ao livro Título Qualquer Serve para Novelas e Noveletas, porque aqui se prevê já que interessa mais o que se conta do que um seu enquadramento em categorias fixas. Repare-se também que além da indiferença quanto ao título, ainda hesita em classificar o texto: novelas ou noveletas?
É evidente, por outro lado, que estas designações dão conta de um mundo de textos de curta extensão, não chegando nunca Irene Lisboa a escrever um romance, como amigos e críticos lhe sugeriam. Talvez se possa perceber esta sua posição, se nos detivermos nesta passagem que Irene Lisboa escreveu na Introdução a Esta Cidade:
«Recolho neste volume umas tantas observações sobre casos que conheci, que me pus a desfiar e a reconsiderar tranquilamente. Tirei deles novelas? Creio que não. Fiz deles histórias pitorescas ou morais? Também não o creio. Pu-los simplesmente em letra redonda, contei-os. Contar é ainda um meio de dar ao corpo, um esboço de estrutura completa dos assuntos. Mas tendo eu atualmente a curiosidade persistente do que me rodeia, em vez de tentar o romance, isto é, a sua amplificação e derivações, lembrei-me de narrar. Porque hei-de eu romancear? Conto, exercito-me a analisar os casos e as criaturas.»
Percebe-se que o mundo exterior é muito importante como manancial de elementos em que se banha a escrita de Irene Lisboa. Mas qual é o seu lugar enquanto pessoa que escreve, nesse mundo tão diverso, e ao qual reage tão complexamente?
O mundo é um ponto de referência essencial, um porto seguro em que pode ancorar um eu tantas vezes fechado sobre si mesmo, sobre a sua casa, sobre a sua mente, numa atitude defensiva. A variedade do que nele observa prova à narradora-autora que ela própria existe, e mais, que vê e sente para lá de si mesma. Por isso talvez é que se acentuam múltiplas facetas do que é visto, tão depressa positivo como negativo, sujeito a um apertado crivo, combinando uma aproximação sensorial com um filtro que procura a todo o custo afastar o sentimento, sem nunca o conseguir.
Quanto à escrita autobiográfica de Irene Lisboa situam-se obras como Começa uma Vida, Voltar atrás para quê?, Solidão, Apontamentos e Solidão II. Aqui há que distinguir que os dois primeiros livros são reconstituições da infância a partir da idade adulta. Já os dois volumes de Solidão e Apontamentos aproximam-se de um diário em que quem escreve regista, em anotações breves, o seu dia a dia.
Solidão, Apontamentos e Solidão II são os livros em que a voz do eu se espraia, enfim, numa escrita de dimensão íntima, mesmo se a mescla de assuntos vários aponta para uma fuga à expressão da própria pessoa. Isso corresponde à vontade da escritora, que, reiteradamente, afirma o seu método de escrever em notas, fragmentos, pequenos textos, como por exemplo nesta passagem de Solidão:
«Vêm-me continuamente ao espírito fragmentos de coisas que se deviam escrever… de coisas isentas de paixão, agradáveis, praticáveis, talvez apenas de observação.»
São também obras compostas de textos curtos, de apontamentos em que Irene Lisboa dá conta dos pequenos factos de um quotidiano solitário mas não alheio a coisas aparentemente insignificantes, como a inclinação do Sol visto da janela, ou os movimentos e as cores de quem passa. Registam-se também conversas havidas, pensamentos sobre o que vai lendo de outros autores, ou reflexões sobre a própria escrita.
Se a solidão se enquadra num quotidiano em que muitas falas se ouvem, a verdade é que ela persiste sempre e é aguda e angustiadamente sentida. Há que não esquecer, porém, que contra a maré das modas e mesmo das contrariedades pessoais, a escrita persiste para Irene Lisboa, como um exercício diário de quem cultiva um campo. Recordemos este excerto de Solidão:
«Levantei-me. Pensei no que poderia escrever mais. Fui lá dentro. À cata de assuntos? Reparei na bandeira fosca de uma porta, que o luar tornava azulada. Pintura! Pintura! Nós pintamos, olhando… Aquilo pareceu-me um quadro. Uma transparência, um colorido e logo uma porção de imagens… Ilusões. Luz. Sorri ao vidro. Depois abri a janela. A lua estava mesmo em frente.»
Ignorada pelo público, sujeita às hesitações e às dificuldades dos editores, os livros de Irene Lisboa — quer os que assinou desde sempre com o seu nome quer os que assinou sob o pseudónimo de João Falco — foram, em geral, bem acolhidos pela crítica.
Nos últimos anos da sua atormentada vida, Irene Lisboa, partilhou uma casa com a família da sua dedicada amiga Ilda Moreira, que ilustrou alguns dos seus livros, e repartiu o tempo entre essa casa da Rua de São Bernardo e as temporadas no campo ou na serra.
Escrevendo sempre.
Depois de uma prolongada doença, Irene Lisboa morre em Lisboa, em novembro de 1958, um mês antes de completar 66 anos.
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Irene Lisboa, de autoria de Paula Morão.