José M. Rodrigues nasceu em Lisboa, em 1951, mas foi em Évora que cresceu «feliz» e onde aprendeu a ser crítico e a «isolar o olhar em detalhes». Foi na pacatez alentejana que José M. Rodrigues encontrou pela primeira vez a paixão pela luz e pela sombra numa meninice «muito rica em termos criativos e experiências arrojadas sobre a existência».
Partiu depois para Paris onde diz ter sido educado nas salas de cinema «no escuro, como uma espécie de câmara escura», experiência que viria a utilizar no futuro. Na Cidade Luz ouviu músicas novas e ficou espantado ao ver «tanta gente com ideias brilhantes e a fazer coisas extraordinárias». A Holanda foi a paragem que se lhe seguiu, «por simples coincidência». Aí foi cofundador da Perspektief, uma Associação de Artes e onde tomou consciência que era fotógrafo. Então a «imagem passou a ser infinita».
José M. Rodrigues é um dos grandes da fotografia atual. Ao fotógrafo – que tem a sua obra representada em várias coleções privadas e públicas, entre as quais, Culturgest, Museu de Serralves, Centro Português de Fotografia, Dutch Art Foundation, Van Reekum Galerie (Apeldoorn), Prentenkabinet (Leiden), La Bibliotheque Nationale (Paris) – não lhe interessam as técnicas. José M. Rodrigues prefere utilizar o olhar e o pensamento. E se há lugar onde gostava de estar representando esse lugar seria a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Até porque foi bolseiro da instituição: «ajudou-me imenso na minha investigação pessoal. É um lugar tremendo para a cultura e podia ter feito mais pela fotografia portuguesa».
Começou por admirar o trabalho de Roger Fenton, August Sander, Edward Weston, Harry Callahan e Man Ray entre tantos outros. Hoje dá destaque ao trabalho de Rinco Kauvachi, Viviane Sassan, Paulo Nozolino, Augusto Alves da Silva ou Augusto Brázio, mas José M. Rodrigues deixa a advertência: «talvez para a semana a lista fosse outra».
Em 1999 recebeu o Prémio Pessoa pelo conjunto da sua obra artística e pela sua contribuição às artes, o que lhe deu «um certo crédito, de responsabilidade assumida». Para José M. Rodrigues, importante é o trabalho. «Esse é o prémio divino da dedicação da minha existência. Viver é uma aventura em todos os sentidos que estou a enquadrar permanentemente. Bem ou mal.»
O sonho é uma constante na sua obra, uma obra que procura «a delicadeza das formas naturais, relacionada com as do olhar, misturando elementos que respondem a tensões presentes na natureza ou nos humanos». E se houve encontro humano determinante neste percurso esse encontro foi com os filhos. Com eles «deixei de ser amador para me tornar um artista profissional. Acabei por ser mais eu mesmo».
Com o «olhar seguro para o infinito elástico» José M. Rodrigues afirma que foi rebelde à sua maneira e que o seu limite é apenas e tão só a morte «no sentido único ou real».
Foi à obra deste fotógrafo que a Imprensa Nacional dedicou o número 5 da «Série Ph.», com introdução de Rui Prata e coordenação de Cláudio Garrudo. No dia da apresentação do livro (via canais digitais) José M. Rodrigues disse estar grato à fotografia por lhe ter dado este livro. E resumiu assim:
Na verdade, para quem expõe pouco um livro é muito importante. Questiona se o conteúdo está ou não em sintonia com quem não conheces e queres comunicar, através desses pedaços de segundos do meu olhar. Tenho dificuldades com isso, são muitos anos para tão poucos segundos para levar a cabo as fotografias para esta coleção que põe em evidência aquilo que sou, aquilo que fiz e fico tremendo perante essa dimensão acima do ser que sou perante a realidade de partilhar com outros olhos que as vão ver.
Imprensa Nacional (IN) — Ph.05 José M. Rodrigues é o quinto número da «Série Ph.», coleção de fotografia contemporânea portuguesa publicada pela Imprensa Nacional. Faltava no mercado português uma coleção assim?
José M. Rodrigues (JM.R) — Sim, é importante. Havia uma necessidade de divulgar a fotografia portuguesa tanto a nível nacional como a nível internacional. É essencial. Sobretudo fotógrafos como eu, que estão isolados por diversas razões. O meu trabalho, por exemplo, precisa de uma concentração muito pessoal, intimista, que não pode ser perturbado por fatores exteriores. A obra num dado momento é tão vasta que precisa de ser inventariada e mostrada ao grande público. Senão, torna-se muito complexa. Como eu, existem mais fotógrafos nas mesmas condições.
IN — Neste livro temos fotografias que pertencem a anos e a trabalhos diferentes. Como foi gerido o processo de seleção?
JM.R — Uma delicadeza pura, visual, pensando em todo o trabalho de vários períodos, e o que ele representa melhor através do tempo e no tempo real em que vivo. Tentou-se encontrar fotografias que representassem um todo das várias épocas e que ao mesmo revelassem a evolução e a continuidade. Não necessariamente os registos mais importantes, mas sim as representações de grupos em que se pudesse ver o processo como cheguei a determinadas etapas de algumas fotografias, que podem ou não estar aqui reproduzidas. Um olhar de outra pessoa foi muito enriquecedor, igualmente importante o tempo dilatado. O autor está ligado a algumas fotografias de uma forma estranha, que pode ou não ser essencial para uma seleção deste género. Neste caso, sinto que teve um fim positivo.
IN — Houve alguma fotografia em particular que tenha tido pena de sacrificar?
JM.R — Uma não, muitas! São cinquenta anos ligados à fotografia. É toda uma vida de imaginários entre sombras e luzes exposta nua e crua através de uma síntese. Há períodos que gostamos mais do que outros segundo as vivências emocionais. É uma pura ação abstrata do imaginário. O que é bom. Tenho a sensação de que poderia fazer mais três ou quatro livros. Mas este exercício também é uma síntese mental. É como uma fotografia. Tem que conter todo o conteúdo numa composição aberta aos olhares que a querem ver. Neste caso no livro.
IN — Que outros nomes gostaria de ver representados nesta coleção sobre fotografia?
JM.R — Não é a minha função e, para dizer a verdade, tinha visto muitas poucas exposições. Não estou a par do que se tem feito e não quero fazer uma seleção por amizades. Saio pouco de casa ou do meu atelier. Vivo no meio do campo. E aí, cada vez mais dentro do atelier e ligado à natureza, espero eu. Mas há toda uma história da fotografia portuguesa que tem que passar por esta coleção. Fazem parte do nosso trajeto. Um grande trabalho a fazer.
IN — Como é o seu atelier de trabalho?
JM.R — O atelier é o sítio onde verdadeiramente estou sozinho com a fotografia. Com o antes, que mete medo, e o depois. É o prolongamento da minha relação com o que fotografo. Depois de fotografar, esqueço esse momento e torna-se como uma outra experiência, o reencontro, quando estou de novo confrontado com o que fotografei. Sempre fiz todo o processo, desde a revelação ou tratamento da imagem até à impressão. Outra hora na câmara escura e agora na câmara clara. No atelier posso estar tempos sem fazer nada, pensando ou não no meu trabalho. É o espaço de meditação. Desde que comecei a fotografar sempre tive um atelier, ligado à câmara escura, onde podia ver as minhas provas e improvisar sobre elas em experimentações ou fazendo construções sobre o que tinha fotografado a qualquer hora do dia ou da noite. Pôr em causa ou não, como uma questão física de resposta ao que tinha fotografado. Rasgando e misturando céus ou o que lhe esteja relacionado com o que tinha sentido no ato de fotografar ou no ato de imprimir. Como se fosse um ajuste de contas com a paragem do tempo que está relacionado com o que fotografei quando encontra o seu próprio caminho e se desliga de mim. Sou muito preciso nesses momentos. Um controlador implacável.
IN — Prefere trabalhar na câmara escura ou a câmara clara?
JM.R — Quando chego a um resultado é uma atitude que não tem a ver com a técnica. Nem me interessa. O processo faz parte do meu corpo (ser). Adorava estar no escuro e ver a aparição lenta da imagem. Um poder enorme de concentração derivada da ausência de luz e uma confrontação enorme com a prova fotográfica, ou seja, a equação dos tons entre o preto e o branco. O cheiro do revelador é perfumado, a água, que eu tanto fotografo, misturava-se com a imagem em banho-maria para estabilizar a temperatura e na diluição dos químicos que me ofereciam o encontro que tinha tido de uma outra maneira com o fotografado. Há um contraste com as duas ações distintas que se tornavam independentes e se uniam. O ato de fotografar e o novo encontro na câmara escura como se fosse um roubo à Terra do que tinha fotografado. O pensamento livre durante o processo na revelação alquímica pura fazia um todo de mim que criava uma forma de mostrar também a melhor forma de solucionar questões puras no processo criativo e não só. Um ato religioso. Meditação. E muito pessoal. Um pastor que cuidava das ervas onde a luz ia ser refletida. Libertação. Mas agora prefiro a câmara clara.
IN — Qual a sua máquina fotográfica atual?
JM.R — É uma máquina digital (Sony) simples de alta resolução. Tive uma outra (Canon) que com o tempo se tornou obsoleta e muito pesada. Não ligo ao material que utilizo, meros instrumentos de utilização. O que tinha de outras épocas está completamente desatualizado. Eu e as máquinas temos uma certa idade.
IN — Muitos músicos arranjam «petits noms» para os seus instrumentos. Por exemplo o B. B. King tinha a sua inseparável guitarra Lucille. Nomeou alguma das suas máquinas com algum «petit nom»? Se sim, podemos saber quais?
JM.R — Como não ligo muito às câmaras, não tenho. Houve uma altura nos anos 80 e princípios de 90 que fotografei muito com a minha ROLLEIFLEX. Aí criei uma relação quase amorosa com a máquina.
IN — Como acompanha a revolução do digital — muito concretamente ao que à fotografia diz respeito?
JM.R — O digital veio resolver os meus problemas de saúde que tinham aparecido com a câmara escura. A fotografia digital foi um encontro difícil, a que me adaptei sem me aperceber. Agora não quero outra coisa, passou a ser feito tudo às claras. Chamo câmara clara à câmara escura. Tirei tudo o que tinha nas paredes para tentar arranjar a mesma concentração que tinha no escuro e não me dispersar. O processo é complexo e de alta precisão. O que me agrada muito. A fotografia tem muitas variantes e quantas mais eliminarmos melhor. Dá segurança e liberdade de ação. É curioso, ao mesmo tempo, quanto menos se utilizar melhor.
Aprendi a fotografar a cores. Estranho, quando vejo uma imagem pela primeira vez, sai a cores como um resumo da construção de milhares de algoritmos que representam o preto e branco que juntos oferecem outra vez uma fotografia a passar por filtros nas cores primárias. Compreendo melhor a minha curiosidade sobre a luz e a sombra. Compreendi através do digital, porque utilizo mais o preto e branco. Passei um período que pensava estar a fotografar a cores, mas só utilizava duas nuances a cores que era quase como se estivesse a fotografar a preto e branco. Vejo a imagem num instante. Mais rápido que uma Polaroid. O tratamento da imagem no digital, com a experiência que tenho do analógico, ajuda-me. A base é a mesma, e essa tenho-a muito forte. Contudo deixei de ser um purista e desenvolvi mais o que já tinha em paralelo da experimentação. Paulatinamente, abri um mundo novo que completou o fotógrafo que sou. Muito leve, leve, leve e agora estou enraizado no digital.
Gosto mesmo de imprimir. Passo algumas vezes dois, três dias com uma fotografia. Durmo com ela. No analógico não tinha duas fotografias iguais. No digital são puramente, precisamente semelhantes. Dantes era um colecionador de grãos de prata. Agora sou uma espécie de matemático que lida com soluções. A escala dentro do digital passou a ter uma grande importância. Percebi quando tenho que imprimir uma fotografia em grande formato ou em pequeno e dar intimidade se quero que uma fotografia seja vista por só uma pessoa ou partilhar o conteúdo em grupo.
IN — Sente alguma nostalgia a este propósito?
JM.R — Não. Estou contente com os meios atuais e a liberdade que me dão. Não faço fotografias com as máquinas ou técnicas. Utilizo o meu olhar e o pensamento. Chego lá com o olhar. Não me interessam técnicas.
IN — José M. Rodrigues nasceu em Lisboa em 1951. Mas Évora apareceu-lhe no caminho. Como é que isso aconteceu?
JM.R — Simples razões familiares, quando criança e depois de amizades e estados ligados à paisagem. O Alentejo ocupa uma grande parte de Portugal, quase que não teve grandes obras e tem pouco mais de meio milhão de pessoas. Eu queria era ter um sítio prático onde pudesse estacionar o carro e partir no outro dia outra vez, para fotografar. Voltar para depois poder revelar as minhas fotografias e vê-las em papel impressas. Isso para mim é importante. Agora, com a idade que tenho, preciso mais de estacionar o corpo, já não viajo tanto como outrora.
IN — Como foi crescer no Alentejo?
JM.R — Muito bom. Aprendi a olhar a ser crítico e a isolar o meu olhar em detalhes. Muito ligado à natureza. Cresci feliz com o que encontrei e a diversidade do que fui descobrindo. Piscando olho sim olho não, comecei a fazer o meu próprio cinema. Os meus amigos de então foram importantes como ponto de partida e luta do encontro com a sociedade complexa em que vivíamos. Aí encontrei pela primeira vez a minha paixão pela luz e a sombra. Isolar o essencial. Tive e tenho alguns bons poucos amigos dessa época.
IN — Como era Évora nos anos 1960, a nível cultural e artístico?
JM.R — Uma aventura que nós próprios criávamos para sobreviver. Uma sociedade fechada em si, cheia de frustrações e sem possibilidades de evoluir. Por isso a nossa vivência desenvolveu-se numa imaginação criada por nós e muito original. Tudo o que não gostávamos era contra nós. Tínhamos que ter uma atitude muito responsável logo muito novos, uns pequenos homens a partir dos 13 anos. A nossa vida foi muito rica em termos criativos e experiências arrojadas sobre a existência.
IN — Quando é que começou a interessar-se pela fotografia de autor?
JM.R — Parti para Paris muito cedo. Aí fui educado nas salas de cinema no escuro como uma espécie de câmara escura que viria a utilizar no futuro. Ouvi música e fiquei espantado de haver tanta gente com ideias brilhantes e a fazer coisas extraordinárias. Quando fui para a Holanda, por simples coincidência, apercebi-me que a minha fotografia não era só para mim e queria comunicar com o mundo à minha volta. Tomei consciência que era fotógrafo. Que seria o mais importante na minha vida. A imagem passou a ser infinita. O olhar passa por ela em várias latitudes e em momentos não esperados.
IN — E quais os primeiros fotógrafos autores que começou por admirar?
JM.R — Os primeiros são Roger Fenton, August Sander, Edward Weston, Harry Callahan, Man Ray, Minor White, Diane Arbus, Arnold Newman, Bill Brandt e Ralph Eugene Meatyard.
IN — Aconteceu-lhe não respeitar o trabalho de um fotógrafo à primeira vista e à segunda, ou à terceira já lhe dar valor? Se sim, quem por exemplo?
JM.R — Não me lembro. Sou muito cauteloso com a fotografia e com o que vejo. Com o tempo fiquei aberto para o que tinha que estar preparado para ver, é um «toma lá, dá cá». O problema é estar preparado para receber no momento certo. Isso sim, é muito importante.
IN — Como é que a sua família reagiu quando lhe disse que em vez de engenheiro, médico ou advogado queria ser artista, fotógrafo?
JM.R — Não me questionaram. Não acharam bem nem mal. Foi uma decisão muito pessoal. Já estava tomada há muito tempo. Sempre tive uma ligação com a sombra e a luz que a produz. Os meus olhos tornaram-se os meus companheiros de vida. Estiveram sempre comigo.
IN — A palavra «fotografia» vem do grego [fós] («luz») e [grafis] («estilo», «pincel») e significa «desenhar com luz e contraste». Ocorre-lhe uma definição melhor? Se sim, qual?
JM.R — A luz e a sombra são parte da representação de algo ligado à condição humana só ou à natureza, por isso acho bem a palavra «fotografia». A sombra foi seguramente a primeira fotografia. Nasci com a palavra «fotografia» com «ph» quase à nascença. Não consigo imaginar outra definição. Gosto muito da palavra «photographia», como ela é.
IN — É possível gostar-se de uma fotografia sem a perceber?
JM.R — Não temos que perceber, mas sentir e cada um à sua maneira. Uma fotografia tem uma vida própria e distinta. Vários significados parados no tempo e adapta-se muitas vezes para quem está a olhar, com luz de diferentes densidades. Isso faz com que seja uma boa fotografia. A paragem no tempo é essencial para o pensamento humano. Tem lógica própria. Muitas vezes vai-se adaptando as circunstâncias do seu tempo ou ao contrário com a sua própria claridade.
IN — Um dos principais manifestos surrealistas portugueses, Erro Próprio, de António Maria Lisboa, com prefácio de Mário Cesariny, é uma obra importante para si e para o seu trabalho. Quer explicar-nos porquê?
JM.R — É a liberdade de pensar como uma pessoa livre sem restrições e encontrar a imaginação pura e crua. É poder fotografar e refletir sem estar preso na fotografia. Brincar com a forma e sentir uma tristeza profunda com a realidade. Abriu-me caminhos sem censura própria e mostrou-me que a imaginação é um estado que se tem que ter muito cuidado: é aliciante, mas não perdoa quando a enganas. Bom para um fotógrafo que trabalha com imagens. Não nos podem roubar a nossa mente. É um bem precioso que transportamos para toda a parte, invisível para os outros e uma realidade para o transportador.
IN — O sonho é sempre uma constante para si?
JM.R — Quando não sei o que fazer posso parar e partir para o estado de pensar. Penso que vou pensar. Para não me aborrecer. Dá-me gozo. Quero dizer sonhar. Refletir é um presente. O estado febril que de aí vem é sublime. Gostaria que fosse uma constante.
IN — Existiu algum encontro que tenha sido determinante para a sua carreira, para o seu percurso? Refiro-me a pessoas.
JM.R — Os meus filhos, criei um sentido de responsabilidade até então desconhecido. Deixei de ser amador para me tornar um artista profissional. Acabei por ser mais eu mesmo. O olhar seguro descontinuado para o infinito elástico. Quero dizer agressivo. O próprio ver assumidamente inserido na sua mente. Nos bons e nos maus momentos. «São rosas senhor são rosas…» Não sei por que penso nesta frase.
IN — O que é mais importante para um artista como o José M. Rodrigues: a criatividade, a disciplina ou a técnica?
JM.R — A técnica ajuda a disciplina porque não se pensa nela, a disciplina ajuda a criatividade porque marca um lugar onde tudo vai acontecer por ordem e a criatividade estou só a olhar para detrás dos meus olhos na transparência do que está na frente deles. As distâncias do olhar aproximam-se da perspetiva que desconheço. Espaços iguais? Simetria? Não sei. Está tudo ligado para nos mostrar o espaço com luz. Cada momento é outro e mais outro, mas todos ligados entre si são matéria.
IN — Qual a importância do «estado de espírito» para a concretização de uma obra?
JM.R — O estado de espírito é a imagem que navega as diferentes tonalidades que estão ligadas entre o mais escuro e o mais claro. Não sabemos qual delas é a sombra do mais positivo ou negativo dentro do processo. Qual delas marca a sombra do nosso corpo projetada no papel fotográfico. Dança pura e simplesmente no espaço. A luz dá-lhe a forma para ter a importância que merece.
IN — E qual a importância do invisível nos seus trabalhos?
JM.R — O ato de fotografar é invisível e rápido. O pensamento prolonga-o. É um momento irreversível, completamente parado, interno. Estarei eu a perder-me a mim próprio cada vez que fotografo? Ou encontro-me reconstruindo a nossa existência através de outros momentos invisíveis para nós, com a qual vou mantendo um diálogo contínuo, que conheço?
IN — Numa fotografia, o que é mais importante: a verdade ou a beleza?
JM.R — Nem quero provar nada e tenho medo do belo. Procuro a delicadeza das formas naturais, relacionada com as do olhar, misturando elementos que respondem a tensões presentes na natureza ou nos humanos. Pelas formas aí encontradas, aprendo a dar o valor e o rigor de «puxar» para os limites a perfeição de cada um. Interesso-me pela repetição e multiplicação da forma para atingir a perda do significado e encontrar a síntese da essência.
IN — Em Sete Cartas a Um Jovem Filósofo, Agostinho da Silva escrevia: «A vida, para a vida, é sempre longa; mas para a Arte é sempre breve, só quando não se faz nada há sempre tempo.» O que representa o tempo nas suas fotografias?
JM.R — O caminho é feito com a reflexão refletida e um tempo de exposição. A evidência deixa então de existir. As margens andam de lado para lado. A água e o movimento congelam. O ar aquece. As plantas e nós temos medo. A alma aumenta de volume. O lugar encontra-se. O olhar fica por detrás dos olhos. O detalhe é o tira-teimas. Os pés são o sinal de equilíbrio, abençoado. As botas protegem todo o corpo. O enquadramento é como o de um pastor. A medição é uma unidade e o tempo volta a ser. É só isto. «Só quando não se faz nada há sempre tempo». Uma fotografia.
IN — Tem uma cor preferida? Qual? E porquê?
JM.R — O azul, porque é a cor que começa a dar forma e a organizar os espaços, quando o dia nasce e as trevas desaparecem, e a noite e o dia, o negativo e o positivo e o preto e o branco deixam-se de encontrar e são substituídos. Outras cores ajudam-nos a compreender o espaço. A multiplicação desdobra-se. A cor domina os volumes para que nós os possamos identificar. O labirinto perde a sua função e nós somos um minotauro disfarçado entre tantas formas. Aí tomo por modelo a noite e fotografo a preto e branco algumas vezes. Tenho a memória das cores sem as ver.
IN — Viveu em Paris, França, entre 1968 e 1969, em plena «revolução». Que memórias guarda destes tempos parisienses?
JM.R — Dos períodos mais importantes da minha existência. Em Paris, pela primeira vez, comecei a habituar-me ao escuro, no cinema. Depois de ver cinema e ouvir jazz, iniciei a marcação do espaço, vendo sequências e sombras a mover-se com a luz no meio. A música, os cantos ajudaram-me a voar com o que sentia. Foi como se estivesse numa cidade de autorreeducação. Aprendi a viver comigo próprio e a tomar conta do que sentia. Escolhi o quartier latin para viver mesmo no meio da confusão organizada. Encontrei pessoas apaixonantes, restaurantes de todos os países, museus como nunca tinha visto e galerias.
IN — Foi de seguida viver para a Holanda, onde estudou fotografia na Escola de Fotografia em Haia, ligada à academia de artes?
JM.R — Na Holanda foi muito diferente de Paris. Amesterdão nessa altura era muito livre, mas não tinha a vida cultural francesa. A mudança foi brusca e difícil. Comecei a ter os meus primeiros ateliers, como não falava a língua ajudou-me a concentrar mais naquilo que tinha a fazer e, num determinado momento, casei-me. Ter filhos veio questionar a ligação aos lugares onde me encontrava, deu-me uma disciplina que precisava. Ligou-me à terra. Entretanto, fui ao encontro da vida cultural e aí fiquei muito contente com o que fui encontrando. Estudar a fotografia deu-me asas para a liberdade que precisava. Uma sociedade de uma escala pequena com grandes horizontes. Vivi no meio deles.
IN — Ainda na Holanda foi cofundador da Perspektief, uma associação de artes. Em que consistia este projeto?
JM.R — Um grupo de fotógrafos que queria ver a situação da fotografia de uma maneira diferente, a criação à frente do testemunho, as exposições a partir do conceito de projetos pessoais, divulgação através duma boa revista, e intercâmbios a nível global. Conhecer o que estava a ser fotografado e intercâmbio de ideias. Veio no momento preciso na Holanda. Para mim teve um significado especial. Conhecer outros fotógrafos com as mesmas intenções, as normas de apresentação dos trabalhos e sobretudo ajudou-me a libertar do que tinha aprendido de fotografia por onde tinha andado. É tão bom estudar e depois saber aproveitar o que realmente precisas. Queria saber tudo sobre fotografia, prejudicou-me um pouco com o espírito de experimentar novas técnicas e outros meios, mas aí libertei-me.
IN — A sua obra está representada em várias coleções privadas e públicas, entre as quais, Culturgest, Museu de Serralves, Centro Português de Fotografia, Dutch Art Foundation, Van Reekum Galerie (Apeldoorn), Prentenkabinet (Leiden), La Bibliotheque Nationale (Paris)… Onde é que gostava de estar representado que ainda não esteja?
JM.R — A [Fundação Calouste] Gulbenkian. Fui bolseiro da instituição, ajudou-me imenso na minha investigação pessoal. É um lugar tremendo para a cultura e podia ter feito mais pela fotografia portuguesa.
IN — O que gostava que acontecesse ao seu arquivo fotográfico? Já pensou nisso?
JM.R — É uma preocupação séria que já há algum tempo me preocupa. Tem que ir para um lugar onde não apanhe pó. Tenho pedido ajuda a algumas pessoas e quando chega a hora da verdade, fujo. Terei que tomar decisões o mais depressa possível, dada a minha idade.
IN — Tem recebido inúmeros prémios, em Portugal e no estrangeiro. Entre eles o prestigiado Prémio Pessoa, pelo conjunto da sua obra artística e pela sua contribuição às artes em Portugal. Que importância atribui aos prémios?
JM.R — Pouca. Dão um certo crédito de responsabilidade assumida. O trabalho é o importante. Esse é o prémio divino da dedicação da minha existência. Viver é uma aventura em todos os sentidos que estou a enquadrar permanentemente. Bem ou mal. Não consigo viver sem a fotografar, é um ato de amor e de proteção de todas as fotografias que fiz e as que estão à espera que faça.
IN — Como observa a evolução da história da fotografia em Portugal?
JM.R — É grande e desconhecida. Quando cheguei a Portugal em 1982, para ir aos encontros de fotografia de Coimbra, encontrei o António Sena, de quem gosto muito, e disse-lhe que não podia acreditar não haver fotografia portuguesa. Ele olhou-me seriamente e disse-me que eu é que não a conhecia. Fiquei surpreendido de termos uma história tão forte em qualidade a passar por tempos tão difíceis. E realmente está cheia de bons fotógrafos. Atualmente também fico muito surpreendido com o pouco que tenho visto, com os trabalhos de certos fotógrafos que põem em causa o nosso olhar e nos mostram outros horizontes sobre a existência. Filhos do Arco, Atelier de Lisboa. Há fotógrafas(os) muito verdadeiros com o que fazem. Novas linguagens, nova maneira de pensar, que me dão um prazer ver e com o qual aprendo novas maneiras de olhar, de apresentar e publicar os trabalhos.
IN — Para si, quais são os grandes nomes da fotografia na nossa contemporaneidade?
JM.R — Entre outros, Rinco Kauvachi, Paulo Nozolino, Augusto Alves da Silva, António Júlio Duarte, Augusto Brázio, Rineke Dijkstra, Cristobal Hara, Wollgang Tillmans, Padro Letria, Koos Breukel, Edward Burtynsky, Marijke van Warmerdam, Sophie Calle, Adam Broomberg & Oliver Chanarin, Garcia Alix e Viviane Sassan. Talvez para a semana pensasse numa lista diferente.
IN — Rui Prata, na abertura que faz a este livro dedicado à sua obra, refere que:
Rodrigues está afastado das correntes da fotografia humanista, que ainda predominavam à época, e confessa-se um apaixonado da liberdade em todos os sentidos. Provavelmente, foi esse desejo de viver em liberdade que talhou parte do seu percurso de vida e a construção da sua obra.
Pode comentar esta afirmação?
JM.R — Fui um rebelde à minha maneira. A aventura humana interessa-me muito, mas não para fotografar. Ajuda-me a interrogar-me sobre o nosso destino e a visualizar os espaços e a maneira como vivemos. Até aí a realidade dentro dela quero viajar de uma outra maneira e questionar de onde vimos, para onde vamos e porque não me mato (prefácio de Mário Cesariny, Erro Próprio) que li em 1969 e que me serviu de tábua de salvação até agora. Questiono sempre o que faço. Isso leva-me a outros equilíbrios de enquadramento, encontros rudes com o que vejo. No princípio, quando há como uma harmonia que desaparece com o facto consumado-fotografado, tenho uma atitude de sonho ou de uma grande contemplação. Aí posso rasgar ou dar um novo enquadramento que não tem nada a ver com o lugar original. É por isso que as sombras encontram mais facilmente o caminho da perspetiva no meu trabalho. Ou criada por mim ou pela natureza.
IN — O texto de Rui Prata intitula-se «Experimentar até ao limite». Qual é o seu limite, José M. Rodrigues?
JM.R — Experimentar na fotografia é uma ação contínua. Ver limites faz parte da contínua verificação se tudo existe ainda à minha volta. Um quadrado ou um retângulo pode inesperadamente conter uma pressão sobre fotografias que estão retidas não sei aonde, mas que luto para as ver pela primeira vez, para afirmar que afinal a sombra existe com a projeção da luz ou vice-versa. O meu limite é a morte no sentido único ou real.
IN — Atribui-se a Franz Kafka a afirmação: «quem conserva a qualidade de ver a beleza, não envelhece». É este o segredo?
JM.R — Não sei. Mas penso que tenho essa predisposição enraizada pela luta contínua do olhar. É um estado natural fantástico, mas há tantas voltas a dar que eu diria quem conhece o mal está mais bem preparado para ver a beleza ou o bem e então aceitar o tempo como ele é. Envelhecer é uma chatice, mas para refletir uma riqueza. E isso dá-me um grande prazer. Uma boa fotografia está depositada por detrás dos meus olhos, no subconsciente. É um olhar interior que eu não controlo nem para o bem nem para o mal.