Não sei quando me chegou aos olhos pela primeira vez. Mas já seria editor, acho. Ou pelo menos já o seria quando percebi quem era, o que fazia, como nos assombrava com os seus bonecos, os seus desenhos, os seus retratos. Não lhes dizia pinturas, percebia-se que isso era para gente crescida. E Paula Rego foi sempre uma menina — a menina mais traquina que o país conheceu.
A meninice dela não era idílica. Essa menina não nos trazia sonhos, trazía-nos a vida como ela é. Não nos lembrava a inocência, antes as dores do crescimento, como a infância é um território inexplorado porque felizmente esquecido. Era uma mulher presa nos demónios de criança que todos temos mas que, por isso mesmo, nos libertava sempre que contemplávamos um quadro que pintara.
Talvez tenha sido em 2005. Ou 2007. Já não sei. Não quero ordenar as memórias, elas valem mais desordenadas. Mas lembro-me de saber da sua pintura e dos seus estudos para «A Metamorfose» e de ter acabado de editar nas Quasi uma edição nova pela mão sapiente de João Barrento. Olhei o quadro, olhei os estudos, olhei o livro e pensei: «por que não?»
E foi sim. Conseguido o contacto da agente, marcámos em Londres, no seu atelier, um encontro. Lá se fotografava para o catálogo que, alguns meses depois, sairia na Phaidon, realçando os modelos de gesso que criava para, depois, pintar os tais «retratos». Autênticas obras de arte, também. Chegados, tirámos da mochila o computador portátil. Estava encantada por ver portugueses a chegarem para a visitar, notava-se. E mais ficou quando percebeu que já lhe trazíamos uma ideia do livro que queríamos fazer, juntando os seus esboços e o texto de Kafka. «Nunca ninguém fez isso por mim.» Eu não imaginaria ser possível outra forma — era a «princesa das raposas», diria Adília Lopes, outra menina traquina. Disse logo que sim, sem mais. E nós ficámos ali, sem saber. Levantou-se e quis passear-nos pelo atelier enquanto nos preparava um chá. Na banca onde ia lavar uma das chávenas estava mais um modelo em gesso. E ainda hoje a vejo sorrindo: pegou no bebé de gesso e, apresentando-o, disse de olhos maliciosos: «é para pintar». No fundo da banca outra coisa ainda se via. Os olhos ficaram ainda mais maliciosamente sorridentes: «isto depois vem para aqui», disse enquanto pegava no cordão umbilical, também em gesso, e o juntava ao umbigo do bebé. Soubemos ali que aquilo era só um recreio. E que a menina seria sempre uma menina.
Uns meses depois visitámo-la na sua casa no Estoril, para lhe oferecer o livro já pronto e assinar os exemplares da edição especial. O sol caía no pátio enquanto estava sentada à mesa da sala de jantar. Estava um dia lindo. Mas percebi que não era ali que gostava de brincar. Foi mais uma vez de uma simpatia inexcedível. Mas estava nitidamente ansiosa para voltar para o seu recreio — aquele onde se juntam cordões umbilicais aos bebés mais tenebrosos da nossa esquecida infância.