Uma narrativa pode ser uma reflexão sobre a realidade, a vida, o conhecimento. Mas também pode ser igual a um espelho onde tudo se torna virtual como se fosse o encontro com o nada, com a perda ou com a ausência.
O sentido das palavras acaba muitas vezes por se perder nelas mesmas, embora isso aconteça sem que sejam ainda o silêncio ou o esquecimento. Nas narrativas incluídas em O Outro Lado do Desenho procura-se finalmente encontrar o significado de algumas dessas palavras.
Fernando Guimarães tem publicado vários livros de poesia e de ensaio. Acabam de sair neste ano um livro seu de poesia intitulado Junto à Pedra e um de ensaio intitulado A Arte é Conhecimento?
Os seus livros mereceram vários prémios literários, nomeadamente o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho. Ao conjunto da sua obra ensaística foi atribuído pela Universidade de Évora o Prémio Vergílio Ferreira. Na área da narrativa publicou As Quatro Idades e na do teatro Diotima e as Outras Vozes. Saíram também em livro traduções suas de poetas ingleses, nomeadamente Byron, Shelley, Keats ou Dylan Thomas.
A terceira margem
Durante muitos anos tinha sido professor. Não só ensinara como resolvera muitas vezes as dificuldades que os seus alunos tinham e lhe apresentavam. Agora, devido à idade, já não dava aulas. Deixou de morar na cidade onde se situava a sua escola e foi viver para o campo, nas imediações de uma pequena aldeia. Escolheu‑a porque perto havia um rio.
Ele sabia muito bem que tinha sido tal circunstância que o levara a fazer essa escolha. É que estava relacionada com uma questão que desde há algum tempo ocupava o seu espírito que tantas vezes se habituara a debater‑se com problemas.
Todos os dias, ao nascer do sol, dirigia‑se até junto desse rio. Enquanto caminhava, olhava os campos que se estendiam ao seu lado e reparava sobretudo no modo como a luz do sol principiava a alongar a sombra das árvores. Nos ramos, por vezes, algumas aves estavam pousadas. Ouvia o seu canto. Mas conforme se aproximava do rio deixava de lhes prestar atenção. Sabia que aquilo que mais o podia interessar era outra coisa, precisamente aquele rio diante do qual iria parar e, sentando‑se numa pedra, ficar assim durante algum tempo.
Via as águas correrem, por vezes alguns remoinhos que se formavam um pouco mais afastados, as folhas caídas que se perdiam na corrente ou ficavam espalhadas, caídas na terra. Depois, prestava por momentos atenção às imagens refletidas, incluindo a sua. Tudo isto era o que qualquer pessoa descobriria se ali estivesse como ele: um rio e as suas duas margens. No entanto, tinha o pressentimento de que qualquer coisa se encontrava a mais, que ali estava presente e, ao mesmo tempo, invisível junto àquele rio. Era a sua terceira margem. E perguntava a si mesmo como isto seria possível, que espaço desconhecido podia ser aquele.
Há algum tempo tomara consciência de que qualquer coisa se passava ali com um rio que parecia igual a todos os outros, mas que, como se fosse uma malformação num corpo humano, acabava sem dúvida por contrariar a própria natureza. Era como um corpo doente, mas de uma doença impossível, porque continha em si mesmo algo que nunca poderia existir. O que nele havia em excesso era a perda da sua própria realidade.
Quem podia encontrar, chegar até essa terceira margem? Continuava a ver as águas que corriam, as árvores que nelas estavam refletidas ou se erguiam diante de si, as mesmas aves nos ramos. Admitiu que nunca conseguiria resolver tal dificuldade que dizia respeito a um lugar que todos os que por ali passassem reconheceriam naturalmente, sem que tivessem qualquer sobressalto ou surpresa. Mas o seu caso era diferente. Ao longo da sua vida sempre se preocupou em procurar explicações que se tornassem claras, racionais: era o argumento que vinha da antiga filosofia grega para explicar a impossibilidade do movimento, a tentativa sempre gorada para se conseguir a quadratura do círculo, a perfeita compreensão da zona intermédia entre uma série de aves que sucessivamente vão tornar‑se em peixes numa gravura de Escher.
Lembrava‑se também de um termo pouco comum, o de antifiguri, a que a antiga retórica recorria para designar uma expressão que se tornava absurda, o que não passava de uma ininteligibilidade. O antifiguri contribuía mesmo para que se obtivesse uma significação alegórica, isto é, um novo sentido. Mas que sentido era esse? O tempo foi passando e esta estranha preocupação que para ele se tornara obsessiva acabou por se desvanecer um dia. Levantara‑se mais cedo e, como de costume, encaminhou‑se para o rio aonde tantas vezes se tinha dirigido. Reparou que era cedo e, por isso, prolongou ainda mais a caminhada sem nunca perder de vista o curso do rio. Ao sentir‑se cansado deteve‑se para repousar um pouco. Inesperadamente, teve a impressão de que qualquer coisa se havia alterado. Foi quando compreendeu que a questão que tanto o preocupava era o resultado de uma imaginação que nele talvez acabasse por se tornar doentia. Ao olhar com mais atenção à sua volta reconheceu sem sombra de dúvida que havia apenas duas margens. Neste momento, ele encontrava‑se na terceira margem.
Fernando Guimarães, O Outro Lado do Desenho, pp. 23-25.