«O interesse no espanhol excede todas as outras línguas estrangeiras», pelo menos nos Estados Unidos da América. Quem o diz é Darlene J. Sadlier, Professora Emérita no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Indiana-Bloomington, instituição situada no midwest dos Estados Unidos da América.
Darlene J. Sadlier é também autora de um dos mais recentes títulos da coleção «Plural» da Imprensa Nacional: A Diáspora em Língua Portuguesa, Sete Séculos de Literatura e Arte, brilhantemente traduzida para a língua portuguesa, como a própria refere, por Frederico Pedreira (Prémio INCM/VGM 2016).
A Diáspora em Língua Portuguesa é muito provavelmente a primeira grande análise, atual e detalhada, das diferentes (e por vezes incompatíveis) produções culturais da diáspora imperial portuguesa no seu apogeu.
O material é amplo, vastíssimo e percorre sete séculos de historiografia, correspondência, teatro, poesia, ficção, artes plásticas e cinema. Darlene J. Sadlier foi-o recolhendo ao longo dos anos. De certa forma este livro é o resultado (o resumo e o reflexo) dos mais de 30 anos em que Darlene J. Sadlier foi professora e investigadora no programa de licenciatura e pós-graduação em Língua Portuguesa.
Darlene diz que «teve a sorte de ensinar» no Indiana: «O Indiana tem bibliotecas extraordinárias com coleções impressionantes de livros e manuscritos em língua portuguesa» — obras que lhe foram essenciais na escrita deste livro.
Embora tenha viajado bastante para fazer as suas investigações, de ter conhecido diferentes museus e arquivos, diz que a maioria das viagens e das descobertas que fez aconteceram no Indiana, sentada na biblioteca de raridades, a The Lilly Library, ou na biblioteca central, a The Herman B Wells Library — ambas grandes repositórios de livros e manuscritos dedicados, em parte, ao mundo da língua portuguesa: «Entre os mais importantes acervos para a minha pesquisa são aqueles de Charles R. Boxer e Bernardo Mendel», acrescenta.
Neste estudo Darlene J. Sadlier analisa também os movimentos de exploração e colonização levados a cabo pelos portugueses nas diferentes partes do império, aprofunda o comércio de escravos no Atlântico, bem como o regresso das populações a Portugal no rescaldo da independência africana. E para esta americana, especialista em literatura de viagens, não há grande diferença entre a colonização levada a cabo pelos portugueses e a colonização levada a cabo por outros povos: «Para mim, colonização é colonização. Não há dúvida que há diferentes métodos utilizados para explorar e subjugar uma população mas o ato em si é o que é», refere.
Mas afinal de que falamos quando falamos da diáspora em língua portuguesa? De uma geografia? De uma comunidade? De uma ligação? De uma pátria? E qual o papel das mulheres na construção artística (e não só) desta imensa diáspora?
Aproveitámos a vinda a Portugal [aquando do lançamento do seu livro na Biblioteca da Imprensa Nacional, apresentado por Teolinda Gersão] e conversámos com esta professora americana, que não acredita que Donald Trump seja uma ameaça para a diáspora portuguesa na América até porque Darlene J. Sadlier tem sérias dúvidas de que o atual presidente americano saiba o significado da palavra diáspora. «Como se sabe, a obsessão dele é o movimento das pessoas que vão atravessando a fronteira entre México e os Estado Unidos», ironiza.
PRELO (P) — O que acha da versão portuguesa do seu livro A Diáspora em Língua Portuguesa, Sete Séculos de Literatura e Arte, publicado pela Imprensa Nacional? Está satisfeita com o resultado?
Darlene J. Sadlier (DJS) — Estou mais do que satisfeita. É um livro lindamente produzido pela Imprensa Nacional com uma excelente tradução de Frederico Pedreira. Fico sobretudo grata porque a editora reproduziu todas as imagens que aparecem na versão original, incluindo as gravuras a cor. E por falar em cor, a capa vermelha do volume é espetacular. Uma bela produção!
P — Este é um livro sobre viagens a cantos remotos do mundo, em que os viajantes descobrem novos povos e paisagens, experienciam mudanças de identidade e contudo não deixam de ansiar pelos lugares que deixaram para trás, escreve na introdução ao seu livro. Que mais pode esperar o leitor desta sua obra?
DJS — O que me interessa é a literatura e as artes produzidas como resultado dessas viagens e desses encontros ao longo desses sete séculos. Entre as muitas obras de arte chamo atenção para as imagens de portugueses nos lindos biombos Namban do Japão; a imagética jesuítica na cerâmica chinesa (uma indústria que inspirou uma fábrica de chinoiserie em Lisboa); as estátuas de São Francisco Xavier com olhos asiáticos; as esculturas de africanos e as cerâmicas de indianos no antigo Jardim do Ultramar. Há obras mais contemporâneas que incluem as tapeçarias de Goya Lopes com imagens do tráfico de escravo entre África e o Brasil, assim como os filmes sobre encontros lusófonos de Pedro Costa, Walter Salles, João Botelho e Sarah Maldoror, entre outros.
P — E no que respeita a Literatura?
DJS — A área de literatura é muito vasta sobre este assunto. Além de obras canónicas como Os Lusíadas e Peregrinação, incluo também textos menos conhecidos como diários sobre viagens, na África no século XIX, e os boletins literários da Casa dos Estudantes do Império já do século XX.
P — A palavra mais importante deste livro é, sem dúvida, a palavra «diáspora», usada em particular na expressão «diáspora em língua portuguesa». Quer falar-nos um pouco de como e quando chegou a este conceito?
DJS — Ensinei durante vários anos em cursos universitários sobre a temática da viagem, um assunto que é central nas literaturas em português. Inclui todos os géneros literários: poesia, romance, diário, historiografia, etc. O que vimos foi o mesmo interesse ou necessidade de sair — seja instigado pela conquista, pela saudade, por forças económicas, pela opressão política, pelo simples desejo de conhecer um país onde se nasceu — que foi o ímpeto do filme A última vez que vi Macau, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata — ou de conhecer a terra dos antepassados — como se vê em A casa-comboio, de Raquel Ochoa.
P — Afinal, o que é a diáspora em língua portuguesa? É uma geografia? Uma comunidade? Uma ligação?
DJS — É tudo isso. A diáspora que descrevo baseia-se no movimento e encontros históricos e imaginários de populações que falam a língua portuguesa nos países associados ao antigo império.
P — Explica que, segundo o The Oxford English Dictionary, a palavra diáspora, significa «dispersão», tendo origem no termo grego diaspeirein, que significa «espalhar» ou «dispersar». Acha que esta definição da palavra diáspora se mantém atual?
DJS — A origem da palavra não muda mas o conceito de quando e como se usa está, de facto, a mudar.
P — Para si qual a melhor palavra que define a diáspora em língua portuguesa atualmente?
DJS — Creio que não há uma palavra só!
P — O seu livro abrange obras literárias e artísticas relacionadas com a diáspora portuguesa ao longo de sete séculos. Como conseguiu ter acesso a tanto «material» disperso por todo o mundo?
DJS — Temos uma excelente biblioteca na Universidade de Indiana que contém uma das maiores coleções de obras em língua portuguesa dos Estados Unidos. Isto relaciona-se com o facto de que Indiana tem um dos programas mais antigos de licenciatura e pós‑graduação em português nos Estados Unidos.
P — Que obras podemos encontrar na Universidade de Indiana?
DJS — Além da coleção na Herman B Wells Library, temos acervos de Brasiliana na Lilly Library, que é uma biblioteca de raridades. Entre os mais importantes acervos para a minha pesquisa são aqueles de Charles R. Boxer e Bernardo Mendel.
P — Por que outros sítios passou a sua pesquisa?
DJS — Também fiz muita pesquisa no Museu de Arte Antiga, Museu da Marinha, Fundação Oriente, Museu de S. Roque, entre outros. Fui a Macau e ao Brasil para outras investigações.
P — Porque foi importante para si decompor a diáspora? No seu livro caracteriza vários tipos de diáspora. Tem um capítulo dedicado à Diáspora Imperial e outro à Diáspora Luso-Africana… Temos várias diásporas?
DJS — É um livro organizado cronologicamente e cada capítulo tem um foco. A diáspora luso-africana faz parte da diáspora imperial mas eu queria dar mais ênfase nas obras e artes que focalizam a população africana e assuntos como o trânsito de escravos, escravidão e racismo. Por exemplo, a iconografia da África nos mapas do século XVI mostra como o país foi imaginado pelos cartógrafos portugueses. Num mapa há cenas bucólicas com um castelo e pequenas figurinhas negras — tudo escondendo a realidade da «porta de não retorno» por onde passaram escravos a caminho das minas e fazendas do Brasil. É neste capítulo que comento a obra poética de Domingos Caldas Barbosa que nasceu ao bordo de um navio indo de Angola para o Brasil. Como adulto, saiu do Rio de Janeiro para Lisboa, onde se tornou um dos poetas mais populares do século XVIII. Os lunduns dele são um excelente exemplo de uma lírica híbrida, com influências de África, Brasil e Portugal.
P — Este é um livro sobre os portugueses mas não só. Como define a noção da identidade, ao longo dos séculos, da diáspora em língua portuguesa?
DJS — Escrevi sobre populações que associamos com o antigo império e por isso Portugal e os portugueses são foco principal. A parte inicial do livro é sobre as viagens para África, Índia, Ásia e o Brasil. Mas o foco do livro engrandece com o aparecimento das escritas e das obras artísticas dos países que os portugueses colonizaram e que, de vez em quando, contestam a história oficial.
P — E voltando à ideia das várias diásporas…
DJS — Há diferentes diásporas em diferentes momentos: por exemplo, há uma enorme emigração económica de portugueses para o Brasil no início do século XX; outra migração de cabo‑verdianos para Portugal nos anos 60 e de brasileiros, angolanos e moçambicanos nos anos 80 e 90. Depois da saída do governo português de Goa, muitos goeses emigraram a Portugal. Mais recentemente, um grande número de portugueses saíram para Macau. Tento dar uma ideia desse extraordinário ir e vir de gente que fala português que se vê representado na literatura e nas artes.
P — Como caracteriza atualmente a diáspora em língua portuguesa?
DJS — Hoje em dia há organizações criadas para fortalecer a ligação sobretudo económica entre os países de fala portuguesa. Em Portugal há o Secretariado do Estado das Comunidades Portuguesas que reconhece a importância de manter contacto com as populações de fala portuguesa fora de Portugal.
P — E há também o conceito de Lusofonia.
DJS — Exatamente! Há o conceito da Lusofonia e há também festas culturais para chamar a atenção das comunidades de Macau, Goa e países da África. A União de Cidades Capitais da Língua Portuguesa seria mais um exemplo do interesse diaspórico. Embora muito debatido, há o acordo ortográfico. E, claro, a ideia da diáspora continua a ser representada em livros e em obras de arte. Neste meu livro comento vários filmes contemporâneos que tratam este tema: os filmes Casa da Lava e Juventude em Marcha, de Pedro Costa, Tabu, de Miguel Gomes, Terra Estrangeira, de Walter Salles, entre outros.
P — Qual o papel das mulheres na construção artística (e não só) da diáspora?
DJS — Umas das obras literárias mais importantes sobre o assunto são de mulheres portuguesas, como as célebres Novas Cartas Portuguesas das Três Marias. Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Dulce Maria Cardoso, Raquel Ochoa são outras mulheres que escrevem sobre as populações em movimento no mundo lusófono.
P — E ao nível das artes plásticas, as mulheres também imprimem a sua marca na construção desta grande diáspora? De que forma?
DJS — As obras têxteis da baiana Goya Lopes são entre os melhores exemplos que eu conheço.
P — Gil Vicente é dos escritores que melhor caracteriza o papel feminino no Portugal dos descobrimentos. Concorda? Porquê?
DJS — Ele comenta e satiriza o impacto sobretudo sexual que a ausência do marido tem na mulher. Isso vê-se muito bem na Farsa de Inês Pereira e no Auto da Índia. Inês fica trancada na casa enquanto o marido está na guerra; Constância aceita a atenção de dois homens bobos enquanto o marido fica fora.
P — A seu ver, que outros escritores e poetas o fizeram também?
DJS — Vou mencionar as Cantigas de Amigo porque têm umas das primeiras imagens de mulheres abandonadas por causa do fossado ou do serviço militar obrigatório. Camões também refere isso em Os Lusíadas no Canto IV onde as mulheres choram na doca ao lado do Velho do Restelo e rogam para que os marinheiros não saiam.
P — O que distingue a história da diáspora em língua portuguesa em relação às diásporas de outras línguas, em relação à espanhola por exemplo?
DJS — Talvez existam semelhanças… mas em termos históricos Portugal teve colónias durante mais tempo, e mantém contacto com as ex-colónias. As viagens fazem parte da imagem nacional de Portugal e não há nada semelhante no mundo hispânico, a meu ver.
P — Pensa que a colonização portuguesa distingue-se de outros tipos de colonização? Se sim, de que forma?
DJS — Para mim, colonização é colonização. Não há dúvida que há diferentes métodos utilizados para explorar e subjugar uma população mas o ato em si é o que é.
P — A seu ver é correto falar-se em «Descobrimentos»?
DJS — Hoje em dia estamos mais conscientes das possíveis implicações de palavras. Posso entender a reação às palavras Descobrimentos e Descobertas sobretudo de populações que foram exploradas pela colonização e não se consideram descobertas por ninguém.
P — E agora a pergunta da praxe, como é que uma norte-americana, se interessa pela língua portuguesa?
DJS — Tive uma dupla especialização em espanhol e português quando era aluna de licenciatura. Na época, o governo americano apoiava o estudo de línguas «críticas» mundiais que incluía a língua portuguesa. Depois, fiz o mestrado e o doutoramento em português e logo a seguir fui para o estado do Indiana onde fui diretora do programa de português por mais de 30 anos.
P — Qual é o estado do ensino (a nível do ensino superior) do português nos Estados Unidos da América?
DJS — Há muitos programas de português nos EUA embora nem todos ofereçam cursos avançados ou de pós-graduação em literatura e cultura.
P — Qual é o aluno tipo que se inscreve num curso de Língua e Cultura Portuguesas nas Universidades americanas? Se é que há um aluno tipo…
DJS — Em termos dos alunos de licenciatura, geralmente conhecem espanhol ou outra língua românica. Há alunos em departamentos como história ou antropologia, por exemplo, que querem especializar-se nos estudos que têm a ver com um país lusófono e fazem esses cursos nessa língua. Temos também programas de intercâmbio em Portugal e no Brasil que exigem um certo nível de proficiência linguística — pelo menos um ano de estudos antes de participar no programa.
P — Em geral, um norte-americano tem vontade de conhecer a língua portuguesa?
DJS — O interesse no espanhol excede todas as outras línguas estrangeiras. Há um maior interesse no português nas áreas dos EUA onde existem comunidades de falantes. No midwest, não existem grandes comunidades como por exemplo na costa leste; ao mesmo tempo, aqueles alunos que optam pelo português tornam-se altamente entusiasmados e são excelentes embaixadores da língua.
P — E para terminar, Donald Trump é uma ameaça para a diáspora portuguesa nos EUA?
DJS — Duvido que ele saiba o que significa «diáspora». Como se sabe, a obsessão dele é o movimento das pessoas que vão atravessando a fronteira entre México e os Estados Unidos.