A obra de Maria Ondina Braga encontra-se desde há muito esgotada no mercado editorial português. A reedição, pela Imprensa Nacional, dos títulos desta escritora, tão desconhecida quanto original, assume-se como prioritária e perfeitamente enquadrada na missão de salvaguarda patrimonial de que a editora pública está incumbida.
O primeiro volume da coleção «Obras Completas de Maria Ondina Braga», Autobiografias Ficcionais, que contempla os títulos Estátua de Sal, Passagem do Cabo e Vidas Vencidas, já se encontra disponível e é lançado hoje, em Braga. A edição conta com prefácio do professor José Cândido de Oliveira Martins, onde se pode ler:
Naturalmente, na escrita das obras agora editadas neste volume presenciamos uma voz narrativa que seleciona e recria, de forma efabuladora e memorialística, um alargado conjunto de vivências. Assistimos, deste modo, a um claro exemplo de construção literária, num jogo entre biografia e ficção, o «perfume da ficção», iludindo as fronteiras respetivas, num complexo processo de reinvenção estética de uma vida (life-writing) — quem fala na narrativa não é (ou é, numa criativa metamorfose) quem é na vida. Decididamente, estamos perante uma voz que se disfarça e ficcionaliza, como é próprio de uma escrita de índole autobiográfica e literária. Nestas narrativas, estamos assim perante uma voz feminina que procede a múltiplas evocações de experiências vividas, em diversas partes do mundo, que a marcaram indelevelmente e que constituem matéria fundamental da sua escrita. Acontece que as vivências de um percurso biográfico são sujeitas a um processo de transfiguração literária, através de diversas práticas de autorrepresentação, próprias da chamada escrita de si, em que confluem a autobiografia, o memorialismo, o confessionalismo, a crónica autobiográfica, o relato de viagens (travel writing), entre outros géneros e registos afins da uma escrita do eu.
Numa parceria com a Câmara Municipal de Braga (cidade natal da escritora), a coleção é coordenada pela professora Isabel Cristina Mateus (Universidade do Minho) e pelo professor José Cândido de Oliveira Martins (Universidade Católica Portuguesa), que prefacia a presente edição.
Quanto ao volume 2, é esperado para o próximo ano, e vai dedicado a biografias femininas (Mulheres Escritoras e o inédito Retratos com Sombras). No volume 3 sairão os romances Nocturno em Macau; Angústia em Pequim e A Personagem; nos volumes 4, 5 e 6 sairão as narrativas breves (A China Fica ao Lado, Os Rostos de Jano, A Revolta das Palavras, Estação Morta, Amor e Morte, O Homem da Ilha, A Casa Suspensa, Lua de Sangue, A Rosa de Jericó, A Filha do Juramento, O Jantar Chinês e Quando o Claustro é sem Ninguém (este último, um conto inédito). No sétimo e derradeiro volume está prevista a publicação de correspondências, entrevistas, textos de imprensa e comunicações públicas.
A organização destes 7 volumes contará com nomes como Maria Araújo Silva (Universidade Sorbonne — Paris IV), Claire Williams (Universidade de Oxford — St. Peter’s College), Dora Gago (Universidade de Macau) e Maria Graciete Besse (Universidade Sorbonne — Paris IV).
Maria Ondina Braga (1922-2003) é a escritora mais cosmopolita da literatura portuguesa do século xx. Nascida em Braga, norte de Portugal, cedo deixa a cidade natal para tomar os caminhos do mundo. Foi precetora de crianças em Inglaterra, onde conclui estudos de língua inglesa na Royal Society of Arts, e em França, onde prossegue estudos na Alliance Française. Foi professora em Angola, Goa, Macau, Pequim, além de tradutora. O seu percurso de vida e literário confunde-se com a ideia de deslocação ou viagem, numa cartografia que passa pelos quatro continentes, do Brasil ao Sri Lanka ou Singapura. Esta condição itinerante e multicultural constitui a marca de água de uma escrita que experimenta vários géneros, da crónica ao conto, das memórias ao romance, além da poesia e diários ou notas de viagem. Com destaque para a autobiografia e autoficção, além das biografias breves de várias mulheres escritoras (algumas delas inéditas): Virginia Woolf, Irene Lisboa, Selma Lagerlöf, Katherine Mansfield, George Sand, Rosalía de Castro, Sei Shonagon e Anaïs Nin, entre outras. Colaborou em vários jornais (Diário de Notícias, Diário Popular, A Capital) e em revistas (Panorama, Mulher, Ação e Colóquio/Letras). «Penso que a única coisa que me deu gosto na vida, o que na verdade me interessou, foi escrever», afirmou a escritora em entrevista a Maria Teresa Horta. A sua obra foi distinguida com o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Literatura ITF/dst.