José Régio nasceu em Vila do Conde a 17 de setembro de 1901, ano em que Afonso Costa apresentou, na Câmara dos Deputados, uma moção no sentido de substituir as instituições políticas vigentes por outras de feição republicana. Régio começou muito cedo a perfilhar ideias republicanas, no seio de uma família de monárquicos. De resto, o seu percurso político será sempre muito claro, muito firme e não raro pejado de riscos.
Vila do Conde, com o mar e a praia, ficará para sempre a origem, a referência fundamental, o aconchego. Numa carta dali escrita, em 1928, a Carlos Queirós, Régio dirá:
«Sim, Você tem razão: eu, aqui, tenho o mar! Nas manhãs de sol procuro os sítios desertos da praia. E rolo-me entre as ondas e a areia — como um objeto que o mar desse à costa… Volto ao mar à tarde, e leio até escurecer. O mar, os livros e eu — não tenho outra companhia.»
José Maria dos Reis Pereira, de seu verdadeiro nome, era filho de José Maria Sobrinho e de Maria da Conceição Pereira. O pai, ourives, foi amigo de António Granjo, e embora de instrução formal limitada, mostrou sempre gosto pela leitura e, sobretudo, pelo teatro, ensaiando sucessivos grupos amadores vilacondenses. Dele virá José Régio a herdar um gosto profundo por esse mesmo teatro, que o levará mais tarde a considerar o seu como: «a parte mais original e densa da minha obra».
Da mãe, fina, sensível de educação rudimentar, viria Régio a herdar o seu pendor artístico. Dela dará, no 4.º volume do seu romance cíclico, A Velha Casa, um retrato fiel.
A infância de José Maria, na companhia dos irmãos, foi feliz e vigiada de perto pela mãe. Dos 12 para os 13 anos escreve o seu primeiro caderno de versos. Com cerca de 15 anos devora o Só de António Nobre, que o impressiona extraordinariamente. Mas o seu mundo — que ficará, para sempre, com o mar de Vila do Conde — era o da velha casa onde nasceu, situada na avenida que hoje se chama Avenida José Régio. No romance as Raízes do Futuro , 2.º tomo da soma romanesca intitulada A Velha Casa, Régio dedica algumas páginas ao velho domínio, símbolo, a um tempo, da sua infância cheia, de uma forma de felicidade para sempre fixada na memória de uma eternidade possível.
«Assim mais do que nunca se lhe tornara aquela casa um mundo: o seu verdadeiro mundo. Como quem vai, a certa hora sentar-se num certo banco de certo jardim público, ia, pelo entardecer, sentar-se com um livro na sala de jantar, a uma das janelas quase rentes ao quintal. (…) O que lhe mostrava a experiência é que ninguém, senão ele, é que sabia na casa, como ela tinha personalidade própria; como dessa personalidade compartilhavam todos os aposentos, tendo, embora cada um o seu aspeto funcional; e como não só a personalidade da casa era insubmissa às coisas e pessoas que a povoavam, mas antes acabava por pesar sobre os gestos, palavras, atitudes, sentimentos…»
Com a idade de 11 anos, Régio começa a frequentar o curso dos liceus no Instituto de Vila do Conde. A atmosfera e o comportamento dos habitantes da Velha Casa estavam impregnados de uma fé religiosa até certo ponto contagiante mas que, para José Maria, se foi tornando gradativamente questionável, pelo menos ao nível do intelecto. Dirá mais tarde na Confissão dum Homem Religioso:
«Na realidade, nem sei se rigorosamente se poderá chamar fé a uma aceitação de doutrinas, fábulas, mitos maravilhosos ainda não consciencializados, não examinados, não postos em causa. O que sei é que, tendo morrido meu avô, declarei a meus pais que não voltaria a comungar nem a confessar-me; e só iria à igreja se me apetecesse, quando me apetecesse.»
A religião era para Régio um dos seus apreciados aconchegos, um sentir-se bem, ao nível das emoções, sem necessária equivalência no plano do intelecto.
Em 1917, o adolescente José Maria vai, com o irmão Júlio, para o Porto, ali fazendo o 6.º e 7.º anos do liceu, que lhe permitirá em 1919 partir para Coimbra onde frequentará o curso de Filologia Românica na Universidade. No Porto, ficará semi-interno num colégio. São tempos penosos, sobretudo os momentos vividos no colégio, que o futuro autor de A Velha Casa transfigurará, de maneira poderosa, no romance Uma Gota de Sangue.
Já na cidade do Mondego, Régio passará anos felizes e frutuosos, de aprendizagem e criação, como relatará em Confissão dum Homem Religioso:
«Uma coisa sei de certeza: que nunca me arrependi de ter ido para Coimbra. Lá ganhei novos amigos. De lá saiu a Presença. Lá passei pelo menos alguns dos anos mais felizes da minha vida. E creio que a minha criação literária lucrou com a minha ida para Coimbra.»
Em Coimbra, no convívio com os colegas — alguns viriam a tornar-se nomes da literatura portuguesa do século XX — Régio, pela sua inteligência articulada e profundamente inquisitiva, rapidamente se impõe como figura central e vigorosamente influente. Travará relações de amizade, ou de mero intercâmbio social e intelectual, com um diversificado leque de personalidades, com algumas das quais iniciará a aventura da revista Presença. Entre eles estão nomes como: João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, Afonso Duarte, Fausto José ou Vitorino Nemésio.
Em 1925, José Régio conclui a sua licenciatura, com a apresentação de uma surpreendente dissertação, As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa que, mais tarde, ligeiramente remodelada se dará a conhecer ao público com o título: Pequena História da Poesia Portuguesa. No ano seguinte, em 26, publica o seu 1.º livro de poesia: Poemas de Deus e do Diabo. É ainda em Coimbra que José Régio começa a escrever, um pouco erraticamente, o seu Diário, que só virá a ser postumamente publicado. A 1.ª entrada, neste livro, tem a data de 6 de fevereiro de 1923, tinha Régio 21 anos; a última é datada de 3 de maio de 1966.
De Coimbra vem ainda outra data fundamental: o dia 10 de março de 1927, cujo 1.º número da revista Presença vê a luz do dia. A Presença seria uma das revistas literárias mais importantes do século XX português e foi também das primeiras em Portugal, pela pena de Régio, a dar ao cinema a atenção que ele merecia, outorgando-lhe o estatuto de grande arte, ao lado da literatura, da música, do teatro e das artes plásticas. Este amor empenhado e contínuo pela cinema Régio haveria de conservá-lo até ao fim da vida.
Assim como o teatro. Em 47, aliás, Régio assistiu, com não escondido regozijo, matizado de elegante modéstia, à inesquecível produção do Teatro Nacional D. Maria II, do seu drama Benilde ou a Virgem Mãe. Poucos anos depois, em 52, encenado no Théatre des Champs Elysées, em Paris, por um grupo de jovens franceses entusiastas, seria a vez de Jacob e o Anjo.
Saindo de Coimbra em 28, Régio exercerá, durante um ano, o cargo de professor provisório no Liceu Alexandre Herculano, no Porto. Ainda em 29 vai para Portalegre como professor, sendo, em seguida, nomeado para o Funchal, para onde, na realidade, nunca chegaria a deslocar-se: ficaria na cidade do Alto Alentejo até 1962, ano em que se aposentaria.
Portalegre, cuja aceitação não se fez rapidamente, «a pátria que há força escolhi», diria mais tarde, tornar-se-á o lugar dos grandes anos de criação. Grande parte do mais importante da sua obra foi ali concebida e realizada: Jogo da Cabra Cega, As Encruzilhadas de Deus, António Botto e o Amor, O Príncipe com Orelhas de Burro, Mas Deus é Grande, A Velha Casa I, II, III e IV, Histórias de Mulheres, El Rei Sebastião, As Monstruosidades Vulgares, entre muitas outras.
Posteriormente aos anos de criação e publicação literária, poder-se-iam ainda registar: Ensaios da Criação Crítica, A Velha Casa V e Cântico Suspenso. Já postumamente assinalar-se-iam, entre outros, os seguintes títulos: Música Ligeira, Colheita da Tarde, Confissão dum Homem Religioso, Escritos de Portalegre e várias livros com a sua vasta atividade epistolar.
Entre os seus correspondentes estão, além dos seus familiares e dos camaradas da Presença, nomes como Fernando Pessoa, António Sérgio, António Botto, Vitorino Nemésio, Tomás de Figueiredo, Raul Proença, João José Cochofel, Jorge de Sena, Sebastião da Gama, Luísa Dacosta. Muito longa seria a lista…
Voltando ainda a Portalegre… Como se disse atrás, a aceitação não foi fácil nem rápida mas acabou por se tornar profunda e produtiva. Em carta a Irene Lisboa, José Régio, nota a relação que estabeleceu com o Alentejo:
«Assim vivo eu muitas vezes durante a primavera, que explode violenta, caprichosa e dominadora neste Alentejo que, pouco a pouco, se tem vindo apoderando de mim. Parece que meu corpo nem pode com a vida que então rebenta em mim como em tudo: e ando desigual, inquieto, criador e indisciplinado, doente, embora duma doença fecunda que mais tarde aproveitarei.»
O Alentejo traz a José Régio a melancolia da solidão e as vantagens da mesma: ensina‑lhe a fazer o bom uso das doenças, como recomendava Pascal.
Mais tarde, já reformado, em novembro de 66, José Régio dá entrada no Sanatório do Lumiar, queixando-se de vários males, entre os quais lhe foi diagnosticada uma afeção pulmonar. A entrada neste estabelecimento salda-se por um tremendo trauma que leva Régio à beira do suicídio.
Regressará a Vila do Conde em março de 67. Durante os últimos anos de vida, Régio escreve e medita, no Diana Bar, da Póvoa de Varzim. Remete-se ao trabalho e dá à luz o volume Ensaios sobre a Arte, que inclui o notabilíssimo Em Torno da Expressão Artística, primeiro editado na década de 40. Em 68, dá à luz o último livro de poesia que publicará em vida: Cântico Suspenso.
No ano da sua morte, em 69, José Régio ainda vai a Portalegre por motivos de obras na sua Casa-Museu — onde reuniu uma importante coleção de iconografia religiosa — e toma parte nas ações relativas à campanha eleitoral para a eleição de deputados — que teria lugar em outubro desse ano — e polémica, com vigor, a propósito do filme Bonnie and Clyde…
Em carta a Eugénio Lisboa, datada de fevereiro de 69, comentava Régio os ataques de que, por então, se via alvo:
«Nunca o meu nome e o meu retrato andaram tanto nos jornais, e tudo isto redunda em reclame, e por mais ultrapassado que me queiram continuo impertinentemente sobrevivente. Oh céus! Que tempos estes!»
Ao fim da tarde do dia 9 de outubro de 69, Régio, de regresso a Vila do Conde, vindo do Porto, é acometido por um enfarte violentíssimo, de que viria a falecer na madrugada de 22 de dezembro, com serenidade e resignação.
A obra que José Régio nos deixou é rica, longa, profunda e obstinadamente prosseguida, na sua variedade de géneros e de modos. Escritor conhecido, até certo ponto estudado e desfrutando de uma certa popularidade, nem por isso foi sendo menos alvo constante de ataques de cada novo grupo ou movimento literário que surgia. A sua independência — política, artística, intelectual — fez-lhe pagar, ao longo do seu percurso, uma pesada fatura. Popular e impopular, amado e detestado, apreciado e frequentemente mal lido, eis o destino de tantos íntegros. De aí que tivesse de sair à estacada, para lutar pelos seus direitos, ou antes, pelos direitos que sentia merecer a sua obra. A seu pai, em carta de 56, escrevia:
«Eu lutar, luto. Pode, mesmo, dizer-se que a minha carreira literária tem sido sempre uma luta. Ainda agora estou a lutar nos meus artigos, pois estou em desacordo com várias coisas do meu tempo. Continuo a lutar pelas minhas peças e pelos meus romances.»
Todo o percurso literário do autor de Mas Deus é Grande parece ser a confirmação obstinada da afirmação de Delacroix: «Aquilo que instiga os homens de génio, ou antes, que lhes inspira a obra, é não tanto a preocupação com ideias novas, mas antes a sua obsessão com a ideia de que aquilo que já foi dito ainda o não foi suficientemente.»
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre José Régio, de autoria de Eugénio Lisboa.