«[…] Julgo de meu dever levar ao conhecimento de V. Ex.ª alguns factos e circunstâncias, que ocorreram nesta Repartição por ocasião do calamitoso incêndio, que na tarde e noite de anteontem destruiu o belo edifício do extinto Colégio dos Nobres, onde se achavam estabelecidas as Escolas Politécnica e do Exército, para que V. Ex.ª, se sirva elevá-los à presença de S. Majestade. Apenas se deu o sinal do fogo fui informado logo de que era no Colégio, saí imediatamente a certificar-me da verdade, e vendo já bastante fumo sobre o telhado da casa dos Atos, e noutro imediato, voltei no mesmo instante a este estabelecimento, e dando ordem para que se suspendessem os trabalhos nas diferentes oficinas, e me acompanhassem todos os empregados e operários, saí com a bomba que há nesta casa, e com uns cem homens todos empregados dela se principiaram a fazer os possíveis esforços para atalhar o incêndio, e para salvar os objectos, que pareciam mais arriscados. Alguns empregados tinham já saído espontaneamente para acudir a tamanho perigo. Ainda sob a impressão dolorosa de tão grande desastre, não posso deixar de dizer a V. Ex.ª que tenho a satisfação de poder assegurar que todos os Empregados da Imprensa Nacional e até os jornaleiros estranhos, que nela se ocupavam, rivalizaram em zelo e em infatigável actividade e descrição neste apertado lance das tarde até à meia noite a maior parte deles e alguns até à manhã do dia de ontem não cessaram de prestar os mais valiosos serviços. Tinha eu previamente ordenado que ficassem no estabelecimento alguns homens e os fieis dos armazéns para tomarem conta dos objectos que se fossem salvando; estes mesmos empregados quando podiam dispensar-se nos seus respectivos postos ajudaram a conduzir as coisas, que se iam sucessivamente subtraindo ao incêndio. Logo que se principiou o salvamento tive a prevenção de colocar-me à porta do Colégio, para fazer que tudo fosse conduzido para a Imprensa Nacional. Julguei que era muito conveniente (e o resultado o mostrou), que se não distribuíssem tantas coisas por diferentes lugares, e que era fácil acontecer em ocasião de tanto tumulto e confusão. Neste importante serviço foram os empregados da Imprensa logo seguidos e coadjuvados pelos lentes, por grande n.º de alunos das suas escolas e por muitas outras pessoas, entre as quais havia bastantes distintas pela sua posição social, como deputados, oficiais militares, funcionários públicos, etc. Não devo omitir que alguns lentes, o inspetor dos incêndios, alunos e empregados das escolas se achavam já no local do desastre, trabalhando em tudo, que as circunstâncias indicavam como mais convenientes. Depois de ter estado a bomba da Imprensa por algum tempo a operar contra o incêndio, quando este tomou maior desenvolvimento, que pareceu impossível de atalhar-se no próprio edifício, e que ameaçava os da vizinhança veio a bomba para a frente da Imprensa, e aí se empregou em aguar os telhados, janelas e paredes, para prevenir, que o incêndio se lhe comunicasse. Recolhiam-se nos armazéns os diferentes objectos que entraram incessantemente. Na oficina tipográfica e na casa da minha habitação se prestaram os socorros possíveis a algumas pessoas que tinham ficado mal tratadas no seu generoso empenho de acudir ao incêndio. Entre estas vieram mais gravemente injuriadas o sr. José Feliciano de Castilho, e uns cinco marinheiros franceses contusos e dois ingleses. Ao sr. Castilho prestou logo os auxílios da arte o Sr. António Henriques da Silveira. Os marinheiros franceses foram tratados pelos seus respetivos cirurgiões, e visitados pelos comandantes dos navios a que pertenciam. S. Majestade el rei o sr. D.Fernando, que por muito tempo esteve no lugar do incêndio dignou-se a subir à oficina, para visitar os feridos, tratando com a maior afabilidade os oficiais que lhe assistiam, e dirigindo a todos expressões da sua usual benevolência. Não houve felizmente desgraça que fizesse recear perigo de vida. Alguns oficiais franceses, que suponho serem comandantes dos navios, cujas tripulações acudiram ao incêndio, tiveram a obrigante urbanidade de vir ontem agradecer o acolhimento, que aqui se dera aos seus marinheiros, quando todo o favor era da parte deles, e da nossa um dever de gratidão esse acolhimento, sentindo eu que as circunstancias só me permitissem fazer tão pouco. O sr. chefe do estabelecimento maior da 1.ª Divisão militar, veio a este estabelecimento oferecer-me quaisquer auxílios de força armada, que eu julgasse necessário para guardar os objetos salvados, e conforme a minha insinuação mandou estacionar na Imprensa um piquete comandado por um oficial, que fez colocar sentinelas no lugares convenientes. Antes de vir esta força um outro oficial, que não menciono porque não o conheço tinha posto à minha disposição alguns soldados para este fim. Igualmente me foram oferecidos soldados pelos srs. capitães Batalha e Barrote, que também aceitei. Os soldados da Guarda Municipal fizeram um serviço tão pesado como valioso; porque se conservaram por muitas horas no seus respectivos postos. O Exmo. comandante da Guarda Municipal passou toda a noite neste estabelecimento. Devo dizer a V., que numa ocasião de tamanho apuro, em que era necessário olhar para tanta coisa, e tomar imediatas providências em diversos lugares deste vasto edifício, eu não poderia ter conseguido os resultados que se alcançaram, se não fosse incessantemente coadjuvado pelo zelo dos empregados desta contadoria, que me substituíam em toda a parte, em que me era impossível aparecer. Segundo tenho ouvido dizer aos lentes das duas escolas, salvaram-se com poucas exceções, e essas de menor importância, todos os objetos que lhe pertenciam. Todas as máquinas e utensílios da aula de Física e Química, os instrumentos astronómicos, os livros das duas Bibliotecas, os papéis dos dois Cartórios, as imagens, vasos sagrados e alfaias da igreja se salvaram, e tudo foi recolhido neste estabelecimento onde se acham na melhor ordem possível, sendo principalmente para admirar, que tantas máquinas delicadas com aparelhos de vidro e tantos objetos de vidro não sofressem dano considerável, sendo nesta parte muito considerável, digo muito insignificante a perda. Tal foi o cuidado e inteligência das pessoas que fizeram este importante serviço. S. Majestade el rei o sr. D. Fernando dignou-se ontem visitar segunda vez este estabelecimento para ver os efeitos salvados, e mostrou muita satisfação por encontrar tantos e em tão bom estado. S. Ex.ª o sr. ministro dos Negócios Estrangeiros, e o Exmo. Sr. Barão de Telheiras, aqui estiveram também ontem dando ordens e direções oportunas. Ontem e hoje têm-se ocupado os lentes das duas Escolas com os seus empregados em acondicionar todas as coisas do melhor modo possível, em escolher os livros e papéis dos seus respetivos cartórios, sendo de esperar do seu assíduo empenho, que até amanhã fique ultimado este trabalho no qual os tenho coadjuvado e coadjuvarei por todos os meios ao meu alcance. Por esta ocasião julgo dever dizer a V. Ex.ª, que alguns dos operários deste Estabelecimento ficaram tão fatigados e mal tratados, que não puderam hoje empregar-se nos seus trabalhos ordinários, em consequência do que me determinei a dar numa pequena gratificação aos que julgo estarem no caso de a merecer e precisar mais pelas suas circunstâncias, convencido de que esta resolução está de perfeito acordo com as benévolas intenções do Governo de S. Majestade. Tais são as ocorrências, que me parecem dignas de mencionar-se; é possível, que alguma coisa me tenha esquecido, ou que não chegasse ao meu conhecimento o que devesse referir-se; em circunstâncias de tal natureza há sempre dificuldade invencível em recolher informações e narrar todos os factos com exactidão; espero portanto que V. Ex.ª se dignará relevar qualquer omissão involuntária a este respeito. […] Lisboa etc.ª 24 de Abril de 1843. Ilmo. e Exmo. sr. António Bernardo da Costa Cabral = O Administrador Geral = José Frederico Pereira Marecos.»