“A morte de Luís Dèrouet
Luís Derouet, morto no seu posto e vitima de um dos mais torpes atentados que se têm cometido em Portugal, era um antigo jornalista republicano que fizera as armas no mais combativo de todos os jornais da propaganda – O Mundo – e que, proclamada a Republica, em 1910, fora em substituição do malogrado jornalista monárquico João Costa, nomeado director da Imprensa Nacional. Não era um espirito de grandes vôos criadores; não era um artista; mas notabilizara-se, nos meios jornalísticos, pela sua inteligência lúcida, pela sua bondade natural, pela sua imperturbável serenidade, pelo seu equilibrio, pelo seu bom-senso, pelo seu espírito de organização e de método, qualidades que entre nós, portugueses, são mais raras e, por conseguinte, mais preciosas do que o próprio talento. Essas qualidades fizeram dele um admirável chefe de redacção em vários (p. 1) jornais republicanos; e fizeram dele, sobretudo, um administrador modelar do estabelecimento que dirigia, onde era querido de todo o pessoal – desde o superior até ao operário – e onde os seus dotes de organizador e de coordenador tinham vasto campo para manifestar-se, quer no desenvolvimento administrativo e técnico da própria instituição, quer em iniciativas ligadas às artes e às indústrias gráficas, como a grande exposição de ex-libris, encerrada precisamente no dia em que três balas de pistola prostraram o louvado republicano. Foi este o homem inteligente, conciliador e bondoso – escolhido para vitima de um atentado que revoltou a consciência da nação. Mataram-no na pujança da vida, aos cinquenta anos incompletos, quando tanto havia ainda por esperar dele, da sua acção construtiva, da sua energia serena, da sua metódica tenacidade. E nós perguntamos, com horror: porquê?
Os atentados contra pessoas, com as características de crimes sociais, não constituem, felizmente, um triste privilégio de Portugal. Dão-se com frequência – com maior frequência ainda – noutras nações dotadas de mais (p. 2) perfeitos instrumentos de defesa social e de sançõesmais severas para semelhantes crimes. (…) Mas, ao passo que estes crimes, em qualquer dos países citados, corresponderam a um claro objectivo político, atingindo, ou individualidades detentoras do poder, ou homens que representavam (…) importantes forças de opinião, – em Portugal os atentados pessoais, pelo menos nestes últimos tempos, têm assumido um carácter enigmático; não se sabe bem os motivos que os determinaram; nem se compreende que as vítimas desses actoso sangrentos sejam, precisamente, pessoas a quem se não conhecem ódios, que não dispoem de uma influencia política extensa, que não ocupam postos de ostentação ou de combate, cuja superioridade de espírito não é de molde a irritar ninguém, e que toda a fente conhece como bons cidadãos, honestos, prestantes, conciliadores e honrosos. Porque razão mataram Carlos da Maia? Machado Santos, politico já apagado e inactuante? Américo Olavo? E Luís Derouet? (pp. 3-4) Se eles eram reconhecidamente bons, se na sua esfera de acção não afrontavam nem prejudicavam ninguém, – que diabílico espírito de selecção invertida levaria os bas fonde do crime a escolher exactamente os melhores e os mais inofensivos de todos os republicanos, para sobre eles abater a mão sinistra dos seus executores? É isso que se não percebe; e foi isso, sobretudo, que profundamente abalou agora a consciência publica, dando lugar às mais variadas versões, tornando possíveis todas as conjecturas, e alimentando, em todo o país, boatos que seriam alarmantes, se não fossem, na sua maior parte, absurdos.
Eu tenho para mim – e com desassombro o digo – que são responsáveis da morte de Luís Derouet, e de muitas mais praticadas ou por praticar, todos aqueles que duma maneira ou doutra, pela sua acção ou pela sua complacência, têm contribuído para alimentar essa atmosfera de ódios, para criar esse espírito de agressão e de demolição, que caracterizam, infelizmente, no momento que passa, a sociedade portuguesa, e quem diz a sociedade portuguesa, diz as de muitos outros países. Há, (p. 4) por toda a parte, a ansia de derrubar – instituições, tradições, crenças, monumentos, homens – e esse furor destrutivo é o produto de uma longa e inconsciente obra de preparação, feita, dia a dia, hora a hora, nas assembleias, na imprensa, às próprias mesas dos cafés, por pessoas que seriam incapazes de matar, incapazes mesmo de inspirar um crime, mas que, falando e escrevendo, criam todas as condições de sugestão necessárias para que esse crime se cometa. Não são apenas as balas e os punhais que matam; é também o odio e a calúnia, armas incoercíveis, mas perigosas, de que muitos criadores da opinião e muitos agitadores políticos incoscientemente se servem, sem pensar que vão atingir, a distância, algumas vidas úteis, operosas e inocentes. Às forças da destruição, que se organizam na sombra, é preciso, sem dúvida, opôr forças construtivas e energias de defesa que as neutralizem, não apenas as energias de defesa material, que garantem a ordem nas ruas, mas, sobretudo, as forças de defesa moral, que asseguram a hormonia nos espiritos. Não nos esqueçamos de que, por vezes, a aparente disciplina das sociedades esconde uma profunda anarquia espiritual, e de que é nessa anarquia que se geram, espontaneamente (p. 5), os mais odiosos e os mais absurdos crimes. Um deles, foi o atentado que vitimou Luís Deouet. O malogrado director da Imprensa Nacional morreu assassinado, não apenas por um homem; mas por muita gente que, sendo por igual responsável, sinceramente ignora que o matou.
Julio Dantas” (p.6)